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As peças do axé

Em cada esquina há um trio elétrico, uma dança e um bloco diferente. O Carnaval de Salvador é um mosaico de culturas e ritmos afro-brasileiros. Veja o que os baianos têm.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 31 jan 1998, 22h00

Valdemir Santana, de Salvador

Sabe o que os baianos tinham no Carnaval no século XIX? Acredite se quiser: ópera. “Não havia música carnavalesca”, conta o pesquisador Paulo Miguez, da Universidade Federal da Bahia. “Cantavam-se trechos operísticos na rua.” É que a influência do batuque negro ainda era tímida. A folia baiana sempre teve algum reflexo da cultura dos escravos, “pela forma de se exibir, desfilando e cantando, que lembrava os traços das festividades nigerianas do Damurixá e do Gueledé”, segundo o sociólogo Antônio Risério, autor de Carnaval de Ijexá. Só que, no começo, os descendentes de africanos ainda estavam confinados à periferia de Salvador.

Em 1895, sete anos depois da abolição da escravatura, a cidade parou, atônita, quando um grupo de negros da etnia nagô vestiu batas da África e desfilou, pelo centro, no Embaixada Africana, o primeiro afoxé. Na língua iorubá, da Nigéria, afoxé significa encenação ritual. Ele deu ao desfile um enredo e uma dança cadenciada, o ijexá, marcada pelo atabaque, tambor que se toca direto com a mão, e o agogô, duas campânulas de ferro percutidas com uma vareta de metal. A partir daí os afoxés tomaram conta do pedaço.

Até os anos 50, o Carnaval branco ocorria dentro dos clubes e o negro, na rua. Houve, então, uma revolução tecnológica, a do trio elétrico. Atrás dele, surgiram multidões enlouquecidas, pulando e misturando frevo, marchinhas e música popular em geral. Os negros ainda tentaram resistir, mas, em 1987, depois que o bloco Olodum aderiu ao caminhão eletrificado, a inspiração africana juntou-se à cultura pop dos trios. Nasceu, assim, o Carnaval do axé. Uma fusão escaldante de culturas e ritmos de várias origens, mas com a raiz africana dando o têmpero geral.

A usina de cultura afro-baiana

São sete dias de farra e não quatro, como em outras cidades. Ela começa antes, na quarta-feira, e invade a quarta seguinte, a de Cinzas, sem a menor cerimônia. O Carnaval baiano é assim, exagerado, e se renova a cada ano com a vitalidade extraída da raiz africana. Não por acaso, axé, palavra que significa força, energia e saúde em iorubá, virou símbolo da festa. Com 2,7 milhões de habitantes, 81% dos quais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), negros e mulatos, Salvador é indiscutivelmente a capital afro do Brasil, mantendo uma forte identidade local. A difusão da cultura norte-americana nos anos 70 trouxe forte influência da soul music e dos movimentos de afirmação racial, como o black power, mas os habitantes da cidade souberam incorporá-las às próprias tradições. “Os jovens que criam e dirigem hoje os novos afoxés e blocos afros”, afirma Antônio Risério, “foram os que viveram a passagem do soul ao ijexá, do black ao afro, do funk ao afoxé”.

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Para Paulo Miguez, as sucessivas transformações do Carnaval criaram uma “maior identificação da população com a festa, diminuindo a separação entre palco e platéia”. Tanto que o Rio promove espetáculos memoráveis – os desfiles das escolas de samba –, mas a cidade continua praticamente normal. Em Recife também há muita vibração, mas os cinemas abrem e há ônibus no centro. “Em Salvador fecha tudo”, diz Miguez. “O envolvimento com a festa é total.” São 1,5 milhão de pessoas na rua por dia.

Requebro sustentado

O Carnaval baiano sustenta um mercado próprio de trios elétricos, bandas, gravadoras (são 35, só em Salvador). Os sucessos regionais, que chegam a vender até 500 000 CDs por ano, agora estão sendo exportados para outras regiões do país. Em 1997, 62 trios e blocos famosos levaram a diversão baiana, fora de época, para cidades como Brasília, Campina Grande, Recife, Maceió e Goiânia. Neste carnaval se apresentarão 120 trios elétricos. E muita gente vai se contorcer com a dança do ventre, a coqueluche de 1998. Ela é a sucessora legítima da linhagem rebolativa que deu o requebra, o fricote, o galope, o deboche, o brown, o tortinho, o tititi, o tchaco, o quebra, o põe-põe – a lista é interminável –, a dança do bumbum, do sanduíche, da bicicleta, do trenzinho, do robô, da galinha, do crocodilo, do cachorro, da tartaruga, do macaco, da garrafa e, ufa, a do tchan – lembra, no ano passado? Os passos mudam, mas o espírito é o mesmo: sensualidade pura.

A sinfônica da loucura

Prático e eficiente, o trio elétrico é um grande palco que, transportado por um caminhão, é capaz de circular no meio dos foliões. Um, novinho, custa 500 000 reais. Veja como ele funciona.

Estourando os ouvidos

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O som das caixas pode ser escutado a 1 quilômetro. A prefeitura limita o nível de ruído a 115 decibéis, mas os trios têm potência para 150. Se ela fosse usada no máximo, arrebentaria os vidros e os tímpanos num raio de 100 metros.

Camarim relaxante

Lugar de descanso e concentração dos artistas. Mede 2 metros por 3,5. Acomoda até doze artistas. Têm ar-condicionado, isolamento acústico, sofás, espelhos e um banheiro anexo. Os músicos se revezam no descanso.

Palco elevado

Fica a 4,40 metros de altura, bem visível. Mede 3,20 metros de largura por 14 de extensão. O piso é de madeira, com revestimento emborrachado, antiderrapante. Acomoda doze músicos, quatro dançarinos e dois técnicos de som.

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Jamanta poderosa

A carroceria, com dois andares, carrega um gerador de 200 kilowatts, capaz de iluminar uma cidade de 100 000 habitantes, 86 amplificadores e 72 caixas de som. Leva também doze câmeras de TV, que filmam a multidão.

A dupla do trio

Em 1950, os violonistas e eletrotécnicos Adolfo Nascimento, o Dodô, e Osmar Macedo (à esquerda, acima), instalaram alto-falantes em um Ford 1929 e saíram por Salvador tocando frevo com cavaquinho e violão elétricos ligados à bateria do carro. Em 1951, passaram para uma pick-up Chrysler Fargo 1949, chamaram o amigo Temístocles Aragão, e a dupla virou trio. Aos poucos, o sucesso aumentou.

A consagração veio em 1973, com os versos de Caetano Veloso que diziam: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.” O Trio Elétrico Dodô e Osmar virou lenda. Os pioneiros morreram, mas os filhos continuam a tradição.

A geografia da confusão

Da Praça da Sé a Ondina, da Praça Castro Alves ao Farol da Barra, 1,5 milhão de pessoas brincam e assistem ao desfile dos blocos e trios. É uma passarela de 17 quilômetros. Veja as principais atrações.

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1. Alegria na praia

Orquestra percussiva de timbaus, um tambor derivado do atabaque, criada pelo músico Carlinhos Brown em 1993. Conta com 200 timbaus, um trio elétrico, uma ala de metais e bloco uniformizado de 2 000 passistas. Desfila quinta-feira à noite, desde a Praia da Barra até a Praia de Ondina. São 7 quilômetros. Arrasta milharesde banhistas.

2. Policamente incorreto

Misturando negros, mulatos e brancos, os Comanches, os Cheyennes e os Apaches do Tororó surgiram nos anos 60. Tidos como arruaceiros, foram limitados a 2 000 por bloco. Em 1973, os Comanches escandalizaram os politicamente corretos com o desfile Tributo ao General Custer, o general norte-americano que guerreou contra os índios sioux e cheyennes.Os blocos de índios circulam pelo Campo Grande durante todo o Carnaval.

3. A praça é do povo

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Da meia-noite da terça-feira gorda até as 9 horas da manhã da quarta de cinzas, dez a quinze dos trios elétricos famosos se apresentam em um superconcerto na Praça Castro Alves. É o momento culminante do Carnaval. Um de cada vez, tocam os sucessos e apresentam suas bandas. O repertório pode ir desde o Hino ao Senhor do Bonfim até a Ave Maria, de Gonnot.

4. Comunidade organizada

Bloco afro criado em 1979 por moradores do centro histórico de Salvador. Em 1983 começou a desenvolver idéias de organização comunitária. Foi o primeiro a desfilar com trio elétrico. Tem 3 000 sócios, cinco bandas, grupos de teatro e de dança, duas butiques e uma escola de percussão.Sai sexta, às 23 horas, do Pelourinho, cheio de colunáveis.

5. Graça e beleza

Apesar da influência matriarcal no candomblé, as mulheres são minoria no Carnaval organizado. O bloco mais famoso é o Didá, criado em 1992, com 3 000 membros, que já tem uma Escola de Artes e a Banda Didá. Sai do Pelourinho, no domingo, às 14 horas.

6. O afoxé da paz

Fundado em 1949, por um grupo de estivadores do cais impressionados pelo assassinato do líder pacifista indiano Mahatma Ghandi. Seu afoxé mistura candomblé e pacifismo e tem a cor branca como símbolo. São 3 000 componentes, todos homens. Desfilam com trio elétrico e carros alegóricos. Sai do Pelourinho na segunda-feira às 15 horas.

7. Vanguarda negra

Bloco afro criado em 1974, animado por ideais de afirmação racial. Já foi chamado de racista por proibir mulatos nos seus desfiles, acusação sempre rechaçada pelos líderes. Usa apenas percussão, rejeitando os trios elétricos. Sua coreografia inclui bailarinos de escolas de dança. Sai sábado, às 22 horas, no bairro da Liberdade.

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