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Bandersnatch: como unir arte e liberdade?

O Black Mirror interativo é uma solução inteligente. Mas não resolve o problema de juntar um bom roteiro e o livre-arbítrio do espectador.

Por Joel Pinheiro da Fonseca
Atualizado em 15 jan 2019, 12h59 - Publicado em 15 jan 2019, 12h49

Histórias com múltiplos finais, que pedem ao leitor ou espectador que tome decisões pelo protagonista ou outros personagens ao longo da trama, levando assim a diferentes desfechos, não são novidade.

Livros de múltipla escolha faziam sucesso algumas décadas atrás, bem como jogos de computador estilo “adventure” (Full Throttle, Space Quest, Grim Fandango), no qual o aspecto “jogo” jamais se distanciava muito da narrativa de uma trama complexa. Ambos se encontram nesse meio do caminho entre uma história a ser contada (ou seja, uma progressão de atos concatenados de vários personagens que obedece a uma estrutura previamente pensada e alguma liberdade de escolha dos caminhos dessa corrente pelo leitor ou jogador). 

Hoje, ambos os gêneros (do livro-jogo e do jogo “adventure”) estão em baixa, restritos à cena independente, e é legal ver esse conceito voltando agora no formato de filme, num momento em que a tecnologia permite uma experiência muito agradável e fluida dele no áudio-visual. Bandersnatch é um primor de inteligência concentrada na narrativa e guarda a promessa de obras mais ousadas no futuro, mas também mostra o que são, na minha opinião, os limites da história de múltiplos finais.

*Spoilers abaixo*

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Como não poderia deixar de ser, Black Mirror brinca de misturar nosso mundo com o mundo fictício. E faz isso de duas maneiras: fazendo com que o mecanismo de múltipla escolha não seja algo extrínseco à trama, e sim parte dela. Na maioria das histórias de múltipla escolhas, os personagens agem como se fossem eles próprios escolhendo: para efeitos da história sendo contada, o leitor escolhendo os diferentes caminhos não existe. Em Bandersnatch, ele existe.

Enquanto o jovem Stefan, um programador nos anos 80, tenta criar um videogame baseado num livro de múltipla escolha (cujo autor enlouqueceu a matou a esposa), sua mente vai se deterioriando (da mesma forma que a do autor do livro décadas antes), e ele sente como se não fosse ele próprio que escolhesse suas ações. Nós, o espectador, somos a loucura/entidade/pessoa que o está controlando, e da qual ele se torna consciente em dado momento, tentando descobrir o que está acontecendo consigo. Uma grande conspiração ronda aquele programa e a vida de Stefan? Entidades paranormais? Uma civilização do futuro? Ou estaria ele apenas enlouquecendo com as pressões e as reflexões envolvidas na criação de um jogo tão complexo?

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Seja o que for, não é mais Stefan quem age: somos nós. Para mim, este é o maior acerto. Pois é graças a ele que a múltipla escolha deixa de ser uma mera gracinha, um atrativo arbitrário, e passa a ser parte da história. O momento mais brilhante desse mergulho do espectador na história é quando ele consegue entrar em contato conosco por meio de seu computador. Stefan pergunta quem é que está fazendo isso com ele, e uma das alternativas é justamente a realidade factual em que o espectador está: revelar a Stefan que ele está sendo controlado para fins de entretenimento de pessoas no século 21 da plataforma de streaming Netflix.

Esse toque extremamente metalinguístico, em que o espectador escolhe revelar a verdade literal ao personagem sobre sua condição, é muito bem sacado. Não leva, contudo, aos desfechos mais importantes da história, e sim a finais cômicos que interrompem a história no meio. Mesmo assim, valeu a experiência.O outro lado dessa moeda é que a estrutura de uma história de múltipla escolha se torna, ela própria, um objeto discutido naquela história. Afinal de contas, Stefan é fã do gênero e está tentando justamente fazer um jogo nesse formato, quando se descobre (ou alucina?) participando justamente de um jogo assim.

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Em um dos finais possíveis, depois da trágica morte de Stefan uma mulher nos anos 2010 tenta recriar seu jogo para o Netflix: ou seja, o que estamos jogando é a versão criada por ela do jogo de Stefan, e ela também está começando a enlouquecer…História e jogo são duas coisas difíceis de se combinar. Como equilibrar a ramificação potencialmente infinita de várias escolhas com os limites de memória, a capacidade de produção e a necessidade de se ter uma história minimamente contável?

O segredo, revelado numa viagem de ácido com um amigo, é uma pequena trapaça: dá-se ao jogador/espectador a ilusão de que ele está alterando o curso dos acontecimentos, mas na prática as diferentes escolhas acabam levando para o mesmo curso do rio. É basicamente o que temos em BandersnatchEssa tensão é inescapável. Narrativa e liberdade se excluem. Nossa vida não é um enredo, embora ao olhar para trás possamos escolher lê-la dessa maneira. Um enredo, por outro lado, precisa da determinação.

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Ter uma história para contar é ter atos e eventos imutáveis para narrar; se cada um deles pode ser ou não ser, a cargo do leitor, não existe história, mas uma página em branco. O personagem age de uma maneira porque ele tem um certo caráter; dado esse caráter, não poderia agir de outra forma. Nós não somos o personagem, e nossa escolha jamais refletirá a psicologia dele. Portanto, quanto mais poder se dá ao espectador, menos profundo será o personagem, pois suas ações não decorrerão de quem ele é, de uma personalidade unitária e coesa. Bandersnatch cria um jeito engenhoso de explicar isso (de fato, não é Stefan quem escolhe, somos nós), mas não deixa de sofrer desse mal.

É difícil se conectar com os personagens ali. Como controlamos Stefan, estamos sempre junto dele. Mas como o controlamos, ele também não existe como pessoa, ou é uma pessoa mutilada, cujas ações não são suas. E o restante do elenco aparece apenas na medida em que interage com ele, mal dando para criar uma relação.Conforme Stefan mergulha na loucura, pessoas podem ser mortas. Mas é difícil se importar com elas, dado que apareceram pouco e que a decisão sobre sua morte ou vida não decorre da trama mas de uma escolha frívola nossa enquanto tentamos nos divertir.

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Enquanto personagens, eles falham. Um dos personagens justamente faz o bom ponto de que nossas ideias sobre identidade individual não são reais. Isso pode satisfazer intelectualmente, mas nosso coração ainda procurará personagens e narrativas na arte. Um momento se eleva acima dos demais e consegue ser tocante: a memória de Stefan sobre uma eventualidade aparentemente trivial da infância (seu ursinho favorito fora perdido e ele não sairia de casa até encontrá-lo) que resultou na morte de sua mãe, trauma que ele carrega consigo até hoje.

Em um dado momento, no início do filme, ele relembra esse dia e somos apresentados ao menu da múltipla escolha: mas é um evento passado, e o passado já está definido, e por isso as duas alternativas são iguais, não há escolha possível aqui (mais uma sacada inteligente da série): Stefan causará problema em casa em busca do ursinho, sua mãe se atrasará e pegará o trem condenado. Talvez por isso mesmo — por ser imutável e imune até mesmo ao espectador — o evento seja marcante, ao passo que as várias possibilidades de morte trágica do pai de Stefan nos deixem impassíveis: “ah, vou cortar a cabeça dele só para chutar o balde e ver o que acontece”.

Mudar o passado é um anseio humano universal e impossível. Em um dos finais (que ao menos na minha experiência foi o final definitivo, depois do qual rolaram os créditos sem nenhuma opção de voltar e tomar decisões diferentes), Stefan mergulha no tempo e pode mudar aquela noite fatídica: fazê-lo e salvar sua mãe é consertar tudo que está errado consigo. Mas, é claro, isso sempre será uma ilusão: no mundo real, ele estava tendo um derrame e morrendo na cadeira de sua terapeuta. O sonho de mudar a própria história —  ato trivial para o espectador, que voltou e escolheu caminhos diferentes uma meia dúzia de vezes, sempre que o computador de Stefan pifava, que ele era preso ou morria — é um artifício que existe nos jogos, não na vida. Com alguma inteligência, pode existir também na arte. 


Joel Pinheiro da Fonseca, autor deste texto, é filósofo e colunista da Folha de S.Paulo e da revista Exame

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