Caso Pedrinho e homens de vestido: “Mãe Só Há Uma”, de Anna Muylaert, é o retrato de uma geração
Depois de "Que Horas Ela Volta", o novo filme da diretora mostra a complexidade - e a identidade - da atual juventude brasileira
Anna Muylaert é um dos principais nomes do cinema brasileiro. Ela dirigiu Que Horas Ela Volta?, o filme nacional de maior impacto dentro e fora do Brasil, em 2015. O longa ganhou prêmios em Sundance, o festival cinematográfico mais hipster da atualidade, e de quebra reacendeu debates sobre o emprego das trabalhadoras domésticas, migração, maternidade e desigualdade social. Agora, prestes a completar um ano da estréia, a diretora lança seu novo longa, Mãe Só Há Uma – produção muito mais complexa que a anterior, e que retrata como poucas a geração milenial brasileira.
Se você está lendo essa matéria só para ver se vale a pena conferir o filme nos cinemas, vamos te poupar dos detalhes: sim, vale. O filme é a expressão de como parte da atual juventude brasileira encara as coisas, isso enquanto uma narrativa densa e tensa é formada. Se você precisa mais do que isso para investir o dinheiro no ingresso, tudo bem, seguiremos evitando o máximo de spoilers: a trama mostra Pierre, um garoto de 17 anos, interpretado pelo estreante Naomi Nero, que descobre ter sido roubado na maternidade. Daí que vem o título, Mãe é sobre um jovem tentando entender que há outra família da qual ele faz parte – e as consequentes negações que isso traz.
Roubo em maternidade pode lhe remeter a duas palavras: “caso Pedrinho”. Natural, foi assim que ficaram conhecidos os eventos de 2002 que revelaram como uma criança havia sido roubada na maternidade. O Brasil ficou em choque. Mas o novo longa de Muylaert mostra que, muito mais que uma nação, e do que os pais envolvidos, quem mais sofre nessa história toda é a pessoa raptada. Parece óbvio, mas não é. Pierre não encontrou sua família, ele encontrou uma família. Mudar de família, descobrir que você tinha outro nome, e se tornar próximo de pessoas que nunca viu é difícil pra caramba. E tudo só fica mais complexo quando se tem 17 anos – uma idade que já lhe traz problemas por si só. É aí que vive a grande sacada do filme, Pierre é só um adolescente, tudo que acontece depois é um reflexo de como alguém dessa idade enxerga as coisas.
Um bom exemplo disso é a impactante primeira cena do filme. Pierre vai a uma festa. Em poucos segundos está no banheiro da balada, transando com uma desconhecida. A câmera desce, e ele está usando calcinha. Nenhuma palavra havia sido dita ainda, mas o trecho resume uma parte importante da produção: a sexualidade da juventude atual. Pierre em momento nenhum se define. Ele não é gay, ele não é hetero, ele não é bi, nem trans, nem nada, nem tudo. Ele é ele. E isso não tem nenhuma relação com seu sequestro. Ele usa vestidos, passa maquiagem e se depila, muito antes de saber de seu passado. Ele faz isso porque está descobrindo sua sexualidade. O longa deixa isso muito claro. Mãe não é sobre como e com quem os jovens transam. Mas é sobre jovens, e eles transam. O tema é natural. Tão natural quanto o choque de gerações que decorrem disso. Pierre é um milenial, ele lida com sexo e gênero de maneira completamente diferente do que seus pais, que tem 30 anos a mais que ele. O pai biológico, interpretado com maestria por Matheus Nachtergaele, é a síntese dessa ideia. Em determinado momento, ele tenta entender o filho usando um vestido – mas claramente não foi educado, e nem educou, para entender isso.
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No fim de tudo, mais do que sobre roubos em maternidades e uma sexualidade mais fluída, Mãe é sobre identidade. O protagonista está formando sua personalidade, e não está nem um pouco interessado em permitir que outras pessoas interfiram nesse processo, sejam eles pais, mães, irmãos, amigos ou amantes. E tudo isso traz consequências. Dani Nefuso interpreta primorosamente as duas mães de Pierre, e as atitudes do protagonista afetam cada uma de maneira única – mas necessária para que o jovem se afirme para si mesmo. Pierre retrata a geração atual não porque todos os milenials foram sequestrados, ou usam vestido. Mas essas situações servem para explicitar como parte da atual juventude brasileira enxerga sexo, família, autoestima e amor. Mãe Só Há Uma é o tipo raro de filme que em poucos minutos transpõe a essência de um grupo. E em um país onde colegiais invadem escolas, talvez ele seja necessário.
Se você quiser saber mais, a própria diretora pode falar para você. Anna conversou com SUPER sobre os temas abordados no longa, sobre a crise política brasileira e o fato de agora fazer parte da Academia. Você confere a entrevista abaixo: