Como a vida de Freud pode inspirar a sua
O austríaco é um dos personagens do livro da SUPER que mostra o que as biografias de 25 gênios de todas as áreas do conhecimento têm a nos ensinar
Não deve ter sido fácil ser neurocientista no fim do século 19. Freud bem que tentou, mas logo viu que não poderia obter resultados muito satisfatórios naquelas circunstâncias. O que não o impediu, contudo, de buscar verdades maiores sobre o maior dos mistérios: a mente humana.
A busca inicial pela rota científica mais concreta possível para compreender os estados mentais fazia sentido para ele. Embora se considerasse judeu, Freud jamais se viu atraído pela religião. Curiosamente, mais tarde, ele fundou uma linha de pensamento que beirava o dogmatismo.
Sigismund Schlomo Freud, ou Sigmund, como acabou adotando, nasceu em 6 de maio de 1856, na cidade de Freiberg, então parte do Império Austro-Húngaro (hoje parte da República Tcheca). Foi o primeiro de 8 filhos do terceiro casamento de Jakob Freud, um comerciante de lã. A mãe, Amalia Nathansohn, era 20 anos mais nova, e engravidou de Sigmund praticamente na mesma época em que se casara. Embora criado no judaísmo ortodoxo, Jakob acabou se afastando das tradições, embora fosse reconhecido por seu estudo da Torá (a “bíblia” judaica). A grana era bem curta. O casal vivia num quarto alugado na casa de um serralheiro quando Sigmund nasceu.
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mbora fosse o filho mais velho do novo casamento, o jovem Freud foi criado em seus primeiros anos bem perto de dois meio-irmãos adultos, fruto do primeiro casamento de Jakob. Quando eles imigraram para a Inglaterra, Sigmund perdeu seu melhor amigo de infância, o filho pequeno do mais velho dos irmãos. Em 1859, a família Freud se mudou para Leipzig e depois para Viena. Nos estudos, Sigmund se mostrou brilhante, e entrou na Universidade de Viena aos 17 anos, em princípio para estudar direito, mas acabou seduzido pelo curso de medicina. Passou a praticar psiquiatria por conta própria em 1886, depois de passar 5 anos na clínica do Hospital Geral vienense.
No mesmo ano, ele se casou com Martha Bernays, a neta de um rabino de Hamburgo. O casal teve 6 filhos, nascidos em rápida sucessão entre 1887 e 1895. No ano seguinte, Minna Bernays, irmã de Martha, iria morar com a família, depois da morte de seu noivo. Rumores se espalharam de que ela teria tido um caso com Freud, propagados de início por um dos seguidores (e depois rivais) mais notórios de Freud, Carl Jung. Com efeito, um registro de hotel suíço de 13 de agosto de 1898, assinado por Freud enquanto ele viajava com a cunhada, parece corroborar a história.
Em busca de alguma medida de compreensão da mente humana, Freud bebeu de muitas fontes. Era um leitor entusiasta do filósofo Friedrich Nietzsche e sempre leu William Shakespeare em inglês. Não há dúvida de que essas foram duas fontes importantes a moldar o pensamento de Sigmund.
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Seria em seu consultório, observando seus pacientes, que Freud desenvolveria o que ele chamou de psicanálise. Muitas ideias controversas – algumas refutadas, muitas em disputa – formam o arcabouço da teoria que ele formulou. Contudo, o fundamento mais básico foi um acerto fantástico: a compreensão da mente passava necessariamente pela existência do inconsciente.
As primeiras defesas de Freud do inconsciente apareceram em 1896, quando ele discutiu um dos processos que ele julgava fundamentais na formação da personalidade: a repressão de memórias traumáticas. O conceito foi mais elaborado nos livros A Interpretação dos Sonhos (1899) e Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905).
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Hoje, finalmente a neurociência chegou ao ponto que Freud queria mais de um século atrás, e alguns experimentos demonstraram conclusivamente a existência da mente inconsciente. Graças à capacidade de monitorar a atividade cerebral em tempo real, com aparelhos de ressonância magnética funcional, pesquisadores conseguiram identificar o momento exato da tomada de decisões motoras e constataram que ele acontece no cérebro alguns instantes antes que o próprio voluntário tome ciência dela. Ou seja, há uma parte de nós que decide as coisas antes que nós conscientemente achemos que as decidimos.
Só o fato de Freud ter conseguido antecipar essa constatação em mais de 100 anos já é fantástico. Mas ele fez mais que isso: com suas ideias, ele obteve uma legião de seguidores (até hoje há quem trate como simples “negação” qualquer posição que divirja da ideologia freudiana) e encorajou como ninguém as discussões sobre os mecanismos internos da mente – embora tenha sido um inimigo implacável e intolerante de ideias que divergissem da sua.
Em 1902, ele atingiu uma ambição antiga de se tornar professor universitário, movida pelo reconhecimento e prestígio que a posição lhe trazia. Daquele ano em diante, vários médicos vienenses que expressavam interesse no trabalho de Freud eram convidados a encontrá-lo em seu apartamento, nas tardes de quarta-feira, para discutir suas ideias. O grupo de discussão podia quase ser visto como a construção de um culto à psicanálise, embora, claro, revestido de um verniz racional. Em 1906, já eram 16 os membros participantes, e Carl Jung tomaria parte nele no ano seguinte, após troca de correspondência com Freud, e mais tarde replicaria a iniciativa em Zurique, onde trabalhava e vivia. Em 1908, o grupo das quartas-feiras ganharia um status mais formal, batizado como a Sociedade Psicanalítica de Viena.
O movimento continuou a crescer. Um periódico científico voltado à psicanálise seria lançado em 1909, editado por Jung, e no ano seguinte uma Associação Psicanalítica Internacional (IPA) seria fundada. O primeiro presidente seria Jung, com apoio de Freud.
E claro que, com o crescimento do movimento, começaram a surgir dissidências. E brigas. Nem todo mundo abraçava, por exemplo, a noção do famoso “complexo de Édipo”. A ideia central em torno do inconsciente, para Freud, é que ele reprimia todo tipo de impulso não aceito pela sociedade, e que o mais pungente desses impulsos seria o desejo de uma criança de ter relações sexuais com o genitor do sexo oposto. Durma-se com um barulho desses.
Em 1912, o então pupilo Jung já começava a publicar artigos sinalizando que suas ideias e métodos divergiam bastante dos de Freud. Para diferenciar-se ainda mais, ele decidiu abandonar o termo “psicanálise” e abraçar “psicologia analítica”. Para evitar dissidências, Freud e seus seguidores mais próximos criaram um comitê (do qual Jung não fazia parte), supostamente para salvaguardar a coerência teórica e o legado do movimento psicanalítico. Jung já não se sentia mais confortável com a situação, a ponto de abandonar a edição do periódico e renunciar à presidência da IPA.
Certo, mas de onde saiu a tal “coerência teórica” da psicanálise? Como aceitar uma postura tão dura, dogmática, de quem supostamente deveria ser um cientista?
“Freud tinha a rara capacidade de dizer o melhor que poderia ser dito no momento sobre um assunto e então seguir em frente sem olhar para trás”, diz Stanley Palombo, psiquiatra americano especialista em sonhos e no processo criativo. “Ele nunca deixou as limitações da ciência ou da filosofia de seu próprio tempo o impedirem de gerar ideias novas que as ajudasse a compreender as coisas. Estamos todos cientes de que Freud cometeu erros, mas seus erros foram motivados inteligentemente.”
Alguns nem tanto, como o entusiasmo por uma substância que, segundo ele, tinha os mais diversos usos medicinais: cocaína. Freud defendeu durante anos que ela podia servir como antidepressivo, analgésico e até mesmo tratar a dependência em morfina. Foi um usuário constante durante muitos anos e especula-se que muitas de suas ideias iniciais sobre psicanálise tenham sido desenvolvidas sob efeito da droga. Mas logo Freud se deu conta do engano e, antes mesmo da virada do século, parou de recomendá-la e usá-la.
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Em 1933, Freud podia até ser um psicanalista de renome no mundo todo, mas, quando Adolf Hitler ascendeu ao poder na Alemanha, pelo menos naquele país, o pensador se tornara apenas mais um judeu. Ironia que, apenas 3 anos antes, ele tenha sido agraciado com o Prêmio Goethe por suas contribuições à psicologia e à cultura literária alemã. Com o crescimento do movimento nazista, nasciam aquelas grandes manifestações em que se queimavam livros, e os de Freud estavam entre os “best-burners“. Sobre isso, ele teria dito: “Que progresso estamos fazendo. Na Idade Média, eles teriam me queimado. Agora, eles estão contentes em queimar os meus livros”.
Sua frase representa um gesto de ingenuidade incomum para um estudioso tenaz da natureza humana. Pois, em seu devido tempo, os nazistas estariam matando judeus com a mesma desfaçatez com que destruíam livros. Freud seguiu subestimando o poder da ameaça nazista até mesmo quando a Áustria foi anexada, em 1938. Só foi convencido a fugir de Viena e ir se refugiar na Inglaterra quando sua filha mais nova, Anna, foi detida para interrogatório pela Gestapo.
A fuga para Londres, contudo, não pôde impedir o encontro de Freud com a morte. O famoso psicanalista, sempre entusiasmado com os charutos, foi vítima de um câncer de boca. Uma vez constatado que não haveria mais o que fazer, em setembro de 1939, seu médico e amigo Max Schur o ajudou a cometer eutanásia. Duas doses de morfina em dois dias. No terceiro, Freud estava morto.
O QUE A VIDA DE FREUD TEM A NOS ENSINAR
A trajetória de Freud é uma importante história de alerta. Ela mostra como a intuição pode revelar alguns dos mais profundos segredos do âmago humano, mas também como temos de tomar um cuidado extremo para não ficarmos enamorados com ela a ponto de não enxergarmos outros sinais que nos permitam avançar.
Não resta dúvida de que o desenvolvimento da psicanálise – com seus acertos e erros – foi importante para o desenvolvimento do pensamento acerca do funcionamento intrínseco da mente. E Freud teve pontos de partida científicos sólidos. Tanto que, de início, buscou na neurologia – e não na psicologia – as respostas sobre o tema. Somente depois de constatar que o campo das neurociências então era insipiente demais para destravar os segredos da nossa própria vida mental, ele partiu para o campo da investigação por meio da terapia pela fala e, daí, formulou hipóteses válidas.
O problema foi o que ele fez delas a seguir. Em ciência, hipóteses são proposições extraídas da observação da realidade que precisam posteriormente ser corroboradas por experimentos. No caso de Freud, seus testes eram feitos por meio das histórias de vida de seus pacientes submetidos à psicanálise. Em alguns desses testes, suas ideias pareciam ser corroboradas; em outros, parcialmente; em mais alguns, ele acochambrava; e no restante, simplesmente o mais completo malabarismo era exigido. Em resumo, as hipóteses não justificavam o tanto de confiança que Freud depositava nelas.
No entanto, sua retórica era tão hábil que, a despeito das falhas, a assim chamada teoria psicanalítica ganhou rapidamente um sem-número de adeptos. Há quem diga que a principal contribuição de Freud ao pensamento humano tenha sido na literatura, e não na psicologia! De toda forma, alguns de seus seguidores, dentre eles notoriamente Carl Jung, não tardariam a enxergar rachaduras na torre de marfim de Freud.
Sua resposta foi criar um grupo politizado em defesa da psicanálise. Que reação mais anticientífica? Imagine se, diante da teoria da relatividade geral de Einstein, um grupo de físicos conservadores tentasse criar um comitê para manter os rumos da pesquisa firmemente norteados pelos conceitos newtonianos de espaço e tempo? Seria uma ação no mínimo retrógrada, para não dizer desonesta.
Então Freud foi completamente desonesto para proteger sua teoria? Não, não foi. Note que, no exemplo de Einstein e Newton, de fato apareceu uma nova teoria capaz de explicar mais fatos e abarcar mais fenômenos. No caso da psicanálise, nunca houve uma tese claramente superior capaz de “engoli-la”. Não por acaso, apesar de suas falhas (que hoje são reconhecidas e contornadas por uma parcela significativa dos profissionais de psicologia a seguir a linha freudiana), a psicanálise continua a prosperar – embora encontre resistências entre muitos neurocientistas.
O importante dessa história é: Freud, a exemplo de todos os gênios de todos os tempos, teve boas ideias e más ideias. Nem sempre a intuição leva ao destino certo, mas em muitos casos isso acontece. Ao apontar um novo caminho de investigação da mente, o pai da psicanálise já merece um lugar no panteão dos grandes. Seu problema foi não ter aceito que talvez parte de suas ideias merecessem mais reflexão. E ter tentado impor isso a outros, provavelmente numa batalha de egos com colegas que ele preferia ter como meros seguidores.
O brilhantismo tem um enorme valor, mas não nos torna imunes ao erro. É preciso acima de tudo humildade e flexibilidade para reconhecermos rapidamente quando estamos errados. Freud poderia ter ido ainda mais longe se exercitasse mais essas qualidades.
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