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Ficção científica: “Entre o verde e o azul, até ficar castanho. De novo”

Um ponto de vista inusitado sobre o dia em que clonagem humana fizer parte da rotina, num conto de Amarilis Lage.

Por Amarilis Lage
Atualizado em 27 out 2020, 14h02 - Publicado em 28 mar 2018, 13h48

Já era quase meio-dia quando a enfermeira ruiva voltou, para monitorar o cardiotoco. Olhou o relógio sobre a maca, a garrafa d’água num canto da mesa, o par de chinelos no chão. Olhou de viés para a barriga, enorme. Mas para o rosto dela, não, nenhuma vez. Nem quando disse: “A senhora precisa de alguma coisa? Quer ver televisão?”

Não, obrigada, respondeu, com um sorriso que a enfermeira não viu, ou fez questão de não ver, enquanto preenchia o formulário preso à prancheta, prestes a se encaminhar para a porta. Já estava com a mão na maçaneta quando se lembrou de dar o recado: “Doutor mandou avisar que está um pouco atrasado, mas deve chegar em uma hora… Duas, no máximo”.

“Obrigada, Renata. Seu nome é Renata, não é? Eu me lembro de você, da outra vez”, disse ela, apoiando-se nos cotovelos, em busca de uma posição mais confortável ou, pelo menos, de um breve alívio entre as várias opções de desconforto.

“Eu também me lembro da senhora.” Havia uma censura contida no rosto sardento da enfermeira quando enfim olhou para a grávida sobre a maca. “Esta é a quinta vez? Ou já é a sexta?”

“É a quarta. E a última, se Deus quiser.”

“Tomara.” E bateu a porta.

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Entre o verde e o azul, até se tornar castanho. De novo
(Gabriela Sánchez/Superinteressante)

***

Ligar a televisão? Para quê? Para ver o próprio rosto, com a honrosa legenda “amor ou loucura?”? Padres, psicólogos, advogados, anônimos – todos tinham alguma opinião a emitir sobre o caso. Era preciso respirar fundo e focar no que importa. Um chute! Acariciou o lado esquerdo da barriga.

“Calma, meu amor. Já, já a gente vai se ver.”

Lembrou-se da manchinha rosada que o filho traria na nuca. Da curvinha do nariz. Dos olhos que oscilariam entre o verde e o azul, até a cor estabilizar em uma tonalidade de mel, por volta dos seis meses de idade. Isso sim importa. Mas eles não entenderiam. Falavam até em fazer passeata. Será por isso que o doutor se atrasou?

Foi um erro dar aquela entrevista. Agora isso estava claro. Mas o advogado tinha bons argumentos: a história ia chegar à mídia mais cedo ou mais tarde, era melhor já contar a própria versão dos fatos. Isso poderia até ajudar no processo. E ela, apesar do mau pressentimento, topou falar. Ficou aliviada ao saber que seria uma repórter, uma mulher. Mas tensa ao descobrir que a jornalista não era mãe. Se fosse…

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“… você não faria tudo que pudesse para salvar seu filho? Se você tivesse uma chance… Isso faz de mim uma pessoa louca?”, explicou, dolorosamente ciente do quanto soava desconexa.

A repórter lhe ofereceu um sorriso, em sinal de apoio. Mas seu olhar transmitia outra coisa.

***

Da primeira vez, o diagnóstico veio quando ele tinha um ano e meio. Câncer. Seis meses de vida, no máximo. Diante do médico, ela sentiu o filho evaporar de seus braços. Seis meses?!

Foram quatro. Acabou na véspera do Natal. A árvore continuou na sala, toda enfeitada, durante meses. Sob ela, os presentes que ele não pôde abrir. Papel dourado, fitas vermelhas. Ela observava as luzes piscando, enquanto sons e ideias se dissolviam em sua mente, sem formar sequer uma frase coerente.

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Foi o marido que trouxe aquela possibilidade… Justamente ele, que depois se revoltou tanto. Que levou a intimidade deles para o tribunal. Que a acusava de louca. Foi ele quem disse: o que acha de termos nosso filho de volta? Ela balançou a cabeça que não, de jeito nenhum. Ele baixou a voz: “não estou falando de ‘outro’ filho. Estou falando ‘dele’, do nosso filho”.

***

Um clone? Dr. Lázaro tinha algumas reservas em relação a esse termo, mas, sim, era mais ou menos isso. Ela insistiu, tentando extrair algo concreto de toda aquela aula sobre hereditariedade e epigenética.

“Então quer dizer que o tumor vai voltar? Ele vai ficar doente de novo?”

“Bem… Sim. Mas, dessa vez, estaremos preparados. Vamos adotar medidas de prevenção antes. E diagnosticar antes. E operar antes. E seu filho vai ter uma chance.”

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Nos dias seguintes, diante das luzinhas de Natal, uma frase ganhava consistência no caldo ralo de seus pensamentos: “Ele vai ter uma chance”.

***

Tudo igual. A manchinha rosada na nuca. A curvatura do nariz. Os olhos ora azuis, ora verdes; ora verdes, ora mel. Ainda assim, tudo diferente. O jeito um pouco mais tímido. A primeira palavra não foi “mamã”, e sim “bibi”. Preferia mamão. Aprendeu a andar antes de um ano.

Então veio a véspera de Natal, quando ela levou girassóis à lápide de seu bebê.

E veio a manhã de Natal, quando finalmente pôde ver seu bebê rasgar o papel dourado e puxar as fitas vermelhas daqueles presentes há tanto tempo guardados. Com o ganchinho do telefone de plástico junto à bochecha, ele sorriu: “alô, mamã?”.

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Veio o Ano-Novo. Veio fevereiro, com direito a confete, serpentina e fantasia do Thor. Veio a Páscoa, com ovos de chocolate escondidos pelo jardim e um coelhinho de verdade: Nino, com seu focinho rosa e pelo dourado – “Coeio! Coeio!”, ele gritava, correndo atrás do bichinho pelo gramado. Veio mais um Natal, outro Réveillon, e a tão aguardada festa de dois anos, com pula-pula e show de mágica. Depois, o tempo se dilatou em salas de espera, longos termos de consentimento, noites intermináveis. Junho foi interrompido na metade.

Foi em setembro que veio aquele anúncio: um novo tratamento prometia salvar a vida de muitas crianças. E poderia ter salvado a dele.

***

Os olhos azuis da sogra congelaram diante da novidade: ia ser vovó. De novo.

“Outro clone? Não. Isso não! Vocês estão malucos? Isso é pecado!”

“Pecado? Mas a senhora mesma vive falando de reencarnação como a coisa mais bonita… Quer dizer que Deus…”

“Não. Nem isso é reencarnação, nem você é Deus. Só Ele tem o poder de decidir essas coisas!”

“Então só Ele tem o direito de nos julgar!”

“Ah, você não perde por esperar, minha cara. Ele vai te julgar, sim. Porque isso que você está fazendo não é amor. É egoísmo. Essa criança já sofreu demais. Eu não vou ser cúmplice numa loucura dessas!”

***

O soro quase no fim. À medida que a luz do alvorecer entrava pelas frestas da veneziana, mais nítido se tornava o gotejar lento, ritmado, no equipo. O líquido viscoso percorria o tubo, passando pelo conector, até chegar ao acesso, no dorso da mão miúda. Ela enxugou o suor que cintilava na testa franzida do filho, incapaz de dizer se a febre estava cedendo ou voltando. Pelo menos, ele dormia. Com sorte, sonhava. Eram lindas aquelas aventuras na África, na Lua, que ele narrava com riqueza de detalhes. Tudo seguido por perguntas sem fim: como os elefantes se escondem dos leões? Tem posto de gasolina para foguetes?

Até que um dia, sem qualquer aviso, veio a pergunta mais difícil de todas: “Mãe, quem é esse aqui?”

No porta-retratos, o filho número 2, eternizado na iminência de um encontro – dedinhos esticados prestes a tocar no “coeio”, enquanto este, também curioso, esticava a cabeça para fora da caixa. Ela gaguejou, como se a flagrassem em plena trapaça. “Esse é você”, mentiu. “Não, mamãe”, corrigiu o menino. “O coelho. Eu tinha um coelho? Não lembro. O que aconteceu com ele?”

Os olhos cor de mel, rodeados por olheiras profundas, buscaram o rosto dela na penumbra do quarto. Não remetiam a safáris nem viagens espaciais. Eram pura dor.

“Calma, meu amor. Já, já vamos voltar pra casa.”

“Não aguento mais, mãe.”

“Eu sei, meu amor. Me desculpa… Me desculpa… Me desculpa…”

Então acabou.

De novo.

***

“Não, não e não. Você só pode estar louca. Entenda de uma vez por todas: nós não vamos tentar de novo.”

“A gente precisa! É só começar o tratamento assim que ele nascer. Pode ser a nossa chance!”

“Chance de quê? De viver todo esse pesadelo de novo? De ver meu filho servir de cobaia?”

“Sem isso, ele não chegaria aos três anos! E da última vez, ele conseguiu viver cinco! Cinco!”

“Você está cega? Não vê que o tratamento foi pior que a doença? Que isso tudo só prolongou a dor dele?”

“Eu não vou desistir do meu filho!”

“E eu não aguento mais.”

Frente a frente, eram de repente dois estranhos, rodeados por pinos de madeira e soldadinhos de plástico. Dois exércitos espelhados, à espreita. Estava declarada a guerra.

“Você está completamente louca. Precisa ser internada.”

***

Outro chutinho! A porta se abre, e ela sorri para o médico. Mas quem chega é outro, mais jovem, de traços austeros sob a touca azulada.

“Quem é você? Por que o Dr. Lázaro ainda não chegou?”

“Ele achou melhor não vir. Me chamaram pra fazer essa cesárea. Vamos lá?”

Não, ela não quer ir a lugar nenhum assim. Mas respira fundo e foca no que importa: ele vai ter uma chance. E também vai ter um coelho – igual ao Nino! – se tudo der certo. Não: tudo vai dar certo! Não duvide, não desista, diz a si mesma. Não chore!

Entre o verde e o azul, até se tornar castanho. De novo
(Gabriela Sánchez/Superinteressante)

***

Era isso que gostaria de ter dito à repórter, naquela fatídica entrevista. Que estava exausta. Sozinha. Com medo. E que a esperança era sua maldição.

Estava condenada a acreditar que o filho teria uma chance. E a empurrar aquela rocha montanha acima quantas vezes fosse preciso, mesmo sabendo que a dor viria feito avalanche.

Era isso que queria ter dito, em vez de perder a cabeça. Meteu os pés pelas mãos, ergueu a voz, desafiou tudo e todos. E todos ficaram contra ela.

***

Ondas de coceira por todo o corpo, principalmente no nariz – efeito mais que esperado quando passa o efeito da anestesia. Diz em voz alta, para si mesma: tudo dentro do esperado, tudo exatamente igual, tudo certo. Sinal de que daqui a pouco alguma enfermeira virá retirar a sonda urinária, e logo outra vai trazer o bebê para mamar. Em breve Dr. Lázaro chegará com seu sorriso pacificador… Basta ter paciência. Pelas brechas da veneziana, a luz vagamente dourada, cada vez mais fraca, ganha ondas de vermelho e roxo. Anoitece.

Acorda sob a cegueira da lâmpada branca, clarão seguido pelo estrondo da bandeja metálica sobre a mesa. Hora do jantar, avisa a enfermeira ruiva, já em direção à veneziana, que fecha com movimentos firmes e precisos.

“Obrigada. Sabe dizer se já estão trazendo meu filho? Ele precisa mamar.”

“Já, já vem alguém explicar tudo direitinho, sobre a sua transferência.”

“Minha transferência? Como assim?”

A enfermeira liga a televisão e sai do quarto, como se não tivesse escutado a pergunta. Ou como quem não se importa. Na tela da TV, quem surge é o ex-marido, carregando o filho recém-nascido para longe. Ao vivo. Sem som.

“Justiça concede liminar determinando…” diz o letreiro, mas a imagem muda antes que ela leia até o fim. Cadê o controle remoto? Como que aumenta o som? Para que tanto botão? “Advogados alegam transtornos de personalidade…” Muda o canal sem querer – desenho animado. Como faz para voltar? Finalmente encontra o botão do volume. Volta ao canal de notícias.

“Chega de clones, tratamentos experimentais… Dessa vez, nós vamos aceitar os planos de Deus”, revela a sogra, rodeada por um batalhão de repórteres, mirando a câmera com seus olhos frios.

“Mas e a mãe da criança?”, pergunta um. “Pra onde vão mandá-la?”, questiona outro. “Sempre foi antissocial?” “Narcisista?” “Acha que ela faz parte de alguma seita?”

A porta se abre, e enfermeiros invadem o quarto, seguidos por policiais. Ela leva a mão à barriga, fria e mole sob a camisola hospitalar. Está oca.


Amarilis Lage, 39 anos, é jornalista e escritora. Atualmente, cursa o mestrado em Estudos da Linguagem na PUC do Rio de Janeiro.

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