Filme com trilha de Springsteen retrata imigrantes na Inglaterra dos anos 1980
Conversamos sobre família, preconceito e música com o elenco do longa roqueiro, que estreiou nesta semana.
Inglaterra, 1987. Naquela época, o rock britânico vivia ótima fase: Queen, David Bowie e Elton John, que explodiram na década anterior, seguiam compondo sucessos. Além disso, diversas bandas nasceram ali nos anos 1980: The Clash, Cure, Smiths, Duran Duran, Police, New Order…Todas elas originárias da terra da Rainha.
Mesmo com toda essa influência, o jovem Javed (Viveik Kalra) só tinha olhos (nesse caso, ouvidos) para os Estados Unidos. Mais especificamente, para apenas um cantor: Bruce Springsteen.
Essa é a premissa de A Música da Minha Vida, filme que estreiou na última quinta (19) e que é um misto de comédia, drama e musical. Na história, Javed é filho de imigrantes paquistaneses e mora com a família na pequena cidade de Luton, próxima a Londres. Ele tem talento para escrever, mas não recebe nenhum incentivo do pai, Malik (Kulvinder Ghir), que cria os filhos seguindo as rigorosas tradições do seu país de origem.
A coisa fica feia quando Malik perde o emprego. Aí, não tem jeito: Javed, proibido de “perder tempo” escrevendo, precisa arranjar um emprego para ajudar com as despesas da casa. Como um bom adolescente, ele encontra na música uma válvula de escape para as frustrações da vida – e é aí que entra Springsteen.
Amor de fã
O longa é baseado em Greetings from the Bury Park, livro de memórias do jornalista Sarfraz Manzoor. “Dá para dizer que 80% da história do Javed é bem similar ao que eu vivi”, disse à SUPER Manzoor, que também é roteirista do filme. “Mas é claro, tivemos que mudar algumas coisas para criar um enredo ficcional.”
O jornalista começou a ouvir as músicas de Springsteen na adolescência, por influência de um amigo que indicou algumas fitas do cantor. Manzoor conta que, a partir daí, as músicas do “The Boss” (“O Chefe”, um dos apelidos do artista) passaram a influenciar diretamente a sua vida. Pode acreditar: ele já foi a mais de 200 shows do músico – já fez até palestras sobre ele.
A devoção de Manzoor rendeu alguns encontros com Springsteen – algo de fazer inveja a qualquer fã. E foi em uma dessas ocasiões que a ideia para fazer o filme surgiu. “Em 2010, após um show em Londres, conversei com Bruce e ele me disse que havia adorado o meu livro (lançado três anos antes)”, conta. “Para mim, foi um sinal para tirar o projeto do papel.”
Racismo, música e Sundance
Manzoor, então, começou a trabalhar em uma adaptação junto à diretora britânica Gurinder Chadha. Springsteen deu a eles liberdade total para usar suas músicas, mas não se envolveu diretamente com a produção. As canções se tornaram parte fundamental do roteiro: elas aparecem em momentos específicos do filme, e as letras ajudam a contar a história de Javed.
“Queríamos passar a mensagem de que a música tem um poder muito forte para influenciar nossa vida”, disse Chadha. De origem indiana, boa parte dos seus filmes falam sobre a experiência de imigrantes na Inglaterra e as consequências desse choque cultural.
Em A Música da Minha Vida, não é diferente. Um dos pontos mais interessantes da história é o seu pano de fundo: o contexto político e social do Reino Unido na época em que a ministra Margaret Thatcher governou o país. A família de Javed convive diariamente com o preconceito em seu bairro, assim como o resto da comunidade paquistanesa da cidade. A população sofria com altos índices de desemprego, e a culpa recaía sobre os imigrantes. “Eu cresci em meio ao racismo, algo que acontece até hoje, ainda mais com o Brexit”, observa Chadha.
Apesar disso, o filme possui um tom bastante leve, que lembra bastante o das comédias românticas dos anos 1980. A boa relação de Javed com Roops (Aaron Phagura), o amigo que também é fã de Springsteen, é um dos pontos altos do filme, assim a trajetória do jovem para se tornar um escritor, incentivada por sua professora de literatura (Hayley Atwell, a Peggy Carter dos filmes da Marvel).
O longa acerta também na complicada relação entre Javed e seu pai. “Acredito que isso seja o coração da história do livro”, disse Viveik Kalra, que interpreta o protagonista. O ator conversou diversas vezes com Manzoor ao longo da produção para criar o personagem da melhor forma possível. O roteirista só não pode ajudá-lo em duas coisas: cantar e dançar.
Pois é: o filme possui algumas performances das músicas de Springsteen. “A sequência de Born to Run, por exemplo, levou quase 10 dias para ser gravada”, relembra Aaron Phagura, que dá vida a Roops. A ideia da produção era fugir do óbvio e não fazer somente um musical, mas sim um filme que misturasse gêneros. A intenção foi boa, mas por serem esporádicas, as performances destoam do restante do longa.
Isso não ofusca os outros méritos de A Música, que foi bem recebido na edição deste ano do Sundance, no final de janeiro. O evento, que rola nos EUA, é um dos principais festivais de cinema independente. “Foi incrível estar lá, ao lado de atores mais velhos e talentosos”, disse Kalra. “Sundance tem um clima muito acolhedor. Não podíamos ter lançado o filme num lugar melhor.”
Se você chegou até aqui sem nunca ter ouvido Bruce Springsteen, tudo bem. Kalra e Phagura confessaram que não conheciam o artista até fazerem parte do filme.
Pedi a Manzoor que ele me indicasse a canção ideal para quem quisesse começar a escutá-lo. “Poxa, são tantas! Born in the USA, River, Darkness on the Edge of Town… Tem também Born to Run, Streets Of Philadelphia…”. Talvez eu tenha sido exigente demais com ele. Afinal, como escolher a canção favorita do seu artista favorito?