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Os bons selvagens de Lost

Conheça a filosofia, a psicologia e a ciência por trás da série mais comentada da TV. E des vende os mistérios que rondam a ilha dos perdidos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 mar 2006, 22h00

Texto Luciana Farnesi

Notícia urgente: devido a problemas financeiros causados pela queda do vôo 815, que saía da Austrália para os EUA, a Oceanic Airlines parou de operar, avisa o site da companhia.

Os sobreviventes do desastre estão perdidos em uma ilha no meio do Pacífico. Um lugar estranho: tem ursos polares, seqüestradores de crianças, um monstro que ninguém vê (mas que, sim, deve estar lá). Cruz-credo: alguma coisa está errada na ilha. Menos a audiência.

Com uma trama tão labiríntica quanto viciante, Lost decolou. Virou assunto da vez nos 42 países onde passa na TV – da Islândia ao Sri Lanka. Nos EUA, é o 3o programa de maior audiência. Aqui, era o 1o no horário em que foi transmitido pela Globo – 58% dos aparelhos ligados ficavam sintonizados no canal.

Também é a série que, de longe, mais move discussões na internet. Há um universo paralelo de sites recheados de teorias que tentam decifrar o que acontece naquela ilha. Mas não adianta: o mistério continua impenetrável.

E como: quando contrata novos roteiristas, o produtor Damon Lindelof leva os escritores a uma sala, fecha a porta e então explica alguns segredos da trama, mas não deixa os caras anotar nada. Nem se um hacker conseguir acessar o computador de Damon vai encontrar alguma coisa. “Acho que, quando a informação vai para o micro, ela fica acessível, e isso me deixa nervoso”, disse em uma entrevista à revista americana TV Guide.

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Mas uma coisa que Lindelof e os outros dois criadores de Lost, J.J. Abrams e Jeffrey Lieber, não escondem é o arsenal de referências da série. Dos filósofos Jean-Jacques Rousseau e John Locke ao ditador Mao Tsé-tung, da psicologia behaviorista ao hinduísmo, não faltam guias no labirinto de Lost. Guias que ajudam a montar o quebra-cabeça da ilha – se é que aquilo é realmente uma ilha, como disse Lindelof certa vez. Dirija-se ao portão de embarque e boa viagem.

O filósofo e o caçador

“O conhecimento de ninguém aqui pode ir além de sua experiência.” A frase é do filósofo John Locke (1632-1704), mas poderia muito bem ser de outro John Locke: o personagem mais enigmático do seriado. Do filósofo, ele não empresta só o nome, mas também muito do jeito de pensar. E tudo indica que não é por acaso.

A doutrina filosófica do Locke do século 17 prega o seguinte: ninguém nasce sabendo. Todo o conhecimento vem da experiência. É como se a gente nascesse só com uma folha de papel em branco na cabeça. Nas palavras de Locke, nossa mente é uma “tábula rasa”. Vamos experimentando o mundo aos poucos, então preenchemos a folha de papel mental com os resultados. E é mais ou menos isso que vai acontecendo em Lost. No 2o episódio da 1a temporada os perdidos ainda não sabem nada sobre a ilha. Aos poucos vão descobrindo que as regras do mundo não funcionam ali. Não é à toa que esse capítulo se chama justamente Tabula Rasa: é como se eles tivessem de pegar uma folha em branco e começar a preencher do zero. E John é o primeiro a fazer isso. Ele, que era paraplégico antes de chegar à ilha, se levanta por milagre e começa a andar. Com essa experiência, suficiente para encher um calhamaço, a “tábula” de John vai ficando menos “rasa”. A ponto de, em pouco tempo, ele ser o único que aprende a lidar com naturalidade diante das coisas inexplicáveis que acontecem ali. Pudera: Locke, o filósofo, defendia a coisa de olhar o mundo só com os olhos da razão, em vez de dar ouvidos a superstições. É o que Locke, o personagem, faz. Principalmente nas horas mais difíceis. “Eu olhei nos olhos dessa ilha. E o que eu vi era lindo”, disse depois de encarar o monstro que mete medo em todo mundo ali. E a dupla John & Locke partilha não só o pensamento, como um pouco da biografia. Existe um sujeito que é fundamental na vida dos dois: Anthony Cooper. Em Lost, esse é o nome do pai de John. Na vida real, era o do sujeito que virou um paizão para Locke.

Anthony Ashley-Cooper (1621-1683) foi um conde inglês que, quando teve uma infecção mortal no fígado, contratou Locke para morar em sua mansão como médico particular – o filósofo era formado em medicina. E Locke salvou a vida dele. Na série, John também salva a vida de Anthony Cooper: doa seu rim para o sujeito, que estava à beira da morte.

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O Cooper de Lost é o cara que introduz John naquela que se tornaria sua especialidade: o mundo da caça. O da vida real fez mais ou menos a mesma coisa com o Locke filósofo, mas colocando-o num outro mundo, o da política.

Ashley-Cooper foi um dos fundadores do movimento Whig – que deu origem ao Partido Liberal inglês – e apoiou a deposição do rei durante a Guerra Civil Inglesa (1642-1649). Depois virou ministro do comércio na Inglaterra. E fez de Locke o manda chuva de seu conselho.

E foi depois de sua experiência na política que ele escreveu sua obra mais importante: Dois Tratados sobre o Governo. Na obra, Locke deixa clara sua opinião de que todo governo deve ter a aprovação da maioria da população – ao contrário do que acontecia com as monarquias absolutistas da época, na Europa.

Suas idéias, porém, não eram liberais só no plano político, mas também no social. Locke achava que as pessoas não precisavam do braço forte do Estado para conviver decentemente. Mesmo que todo mundo morasse no meio do mato numa anarquia geral, coisa que os filósofos chamam de “estado de natureza”, o direito à vida, à liberdade e à igualdade se manteria intacto – e os conflitos só aconteceriam se algum desses direitos fosse ameaçado. Era no que ele acreditava.

E é no que o John de Lost acredita. Ele parece ser o único dos perdidos a se sentir feliz na ilha, como se estivesse no lar, doce lar. O “estado de natureza” não mete medo em John, nem em Locke.

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Esse filósofo, liberal que só ele, não imaginava que parte de seu pensamento serviria de inspiração para um sujeito nada liberal: Mao Tsé-tung, o ditador que instaurou o comunismo na China nos anos 40. Mao gostou da idéia da tábula rasa. É o que está registrado no Livro Vermelho, publicação editada por Mao e de leitura obrigatória para todo chinês da época: “Em uma folha de papel em branco, livre de qualquer marca, as personalidades mais novas e mais bonitas podem ser escritas, as figuras mais novas e mais bonitas podem ser pintadas”.

Mao percebeu que o conceito da tabula rasa era uma mão na roda para “reprogramar” a cabeça das pessoas. E isso tem mais a ver com a ilha do que parece.

Programador de mentes

A 1ª temporada termina quando os perdidos finalmente conseguem abrir a misteriosa escotilha no meio da floresta. Lá dentro se esconde um bunker. E uma revelação, nos rolos de um filme envelhecido que os perdidos encontram ali no 3º episódio da 2ª temporada: “Bem-vindos. Sou o dr. Marvin Candle, e este é o filme de orientação da estação 3 da Iniciativa Dharma. Daqui a pouco, serão dadas as instruções de como vocês devem cumprir suas responsabilidades”.

Com ele, nossos heróis ficam sabendo que o bunker é um laboratório abandonado. E que a tal Dharma é um grupo de pesquisa voltado, entre outros interesses, para a “engenharia social utópica”. Engenharia social, em ciência política, significa controlar, conduzir o comportamento das pessoas. É o que fazem os governos quando aprovam uma nova lei. É o que Mao, inspirado por Locke, fez na China.

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E é o que fez um psicólogo americano citado justamente no filminho que os perdidos encontram no bunker. Na película, dr. Marvin Candle avisa: “A Iniciativa Dharma foi criada em 1970, seguindo os passos de visionários como B.F. Skinner”.

Esse cara existiu de fato. Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) era a favor do uso de técnicas psicológicas para mudar o comportamento humano, a fim de “estabelecer uma sociedade mais criativa e produtiva”, segundo o próprio.

Ele foi um dos maiores nomes do behaviorismo, um ramo da psicologia que parte de uma idéia pesada: a de que o livre-arbítrio é uma ilusão. Nosso comportamento seria determinado basicamente por estímulos – seja do organismo, seja do mundo exterior. Por exemplo: quando você assiste ao filme Tubarão (1975) e toca aquela musiquinha de suspense. Ela sempre rola quando o tubarão está por perto. Aí chega uma hora em que nem precisa ter um tubarão em cena para dar medo. É só tocar a musiquinha que a tensão vem. Pronto: basta um estímulo simples (algumas notas musicais, no caso) para que você mude seu comportamento. E quanto mais estímulos tiver, mais profundas vão ser as mudanças. O segredo, segundo os behavioristas, é construir ambientes capazes de induzir certos tipo de comportamento. As escolas, por exemplo, podem servir como um desses indutores de estímulos.

E funciona? Nos casos mais simples, certamente. Tanto que o americano aplicou a idéia em sua invenção mais bem-sucedida: as caixas Skinner, que hoje estão em qualquer laboratório por aí. São equipamentos para condicionar animais. Lá dentro, sempre há um botão. E quando o rato – ou o pombo ou o que for – o pressiona sem querer, sai comida. Com o tempo, o bicho aprende que é aquilo que lhe garante o almoço e vira um exímio apertador de botões. Ou seja: o ambiente construído induz o bicho a um comportamento estranho à natureza dele.

É o que acontece em Lost também. O filme da Iniciativa Dharma diz o seguinte: “Houve um incidente aqui. E desde então há uma regra: a cada 108 minutos o botão deve ser apertado. A partir do momento que o alarme soa, vocês têm 4 minutos para digitar o código”.

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Os perdidos ouvem isso e ficam atordoados. Eles não fazem idéia do que pode acontecer se não fizerem o que o filme manda (nem eles nem nós, espectadores). E por isso mesmo começam a fazer. Passam a digitar o tal código (leia box na página 84) a cada 108 minutos no computador do bunker. Em turnos. A todo custo. Sem falta. Na prática, acabam condicionados a um novo comportamento.

O médico Jack (Mathew Fox), líder do grupo, até desconfia: “Vocês já pensaram que talvez tenham colocado a gente aqui para apertar um botão a cada duas horas só pra ver se a gente faria isso? Que tudo isso, o computador, o botão, é apenas um jogo mental? Uma experiência?”

Mas ei, Jack, e o que você nos diz dos ursos polares, do monstro, dos fantasmas do passado que aparecem na ilha? Pois é: em última análise, a ilha inteira pode ser entendida como uma grande, mastodôntica, caixa de Skinner. Um baita laboratório a céu aberto, à altura da imaginação de “visionários como B.F. Skinner”, como diria a Dharma.

Bom, dependendo da experiência, nem todos os ratos se adaptam. A personagem Danielle (Mira Furlan), toda voluntariosa e rebelde, talvez seja um caso desses. Por quê? O sobrenome dela explica. E, de quebra, dá uma pista macabra sobre o futuro da ilha.

O bom francês

De cara, Danielle Rousseau assusta. De cabelo também, por sinal. Pudera: a mulher está na ilha há 16 anos. Ela chegou com um grupo de cientistas. Mas todos morreram. Aí a moça deixou de ter qualquer laço social e ficou morando sozinha no mato. Virou uma “boa selvagem”.

Tem motivo: o sobrenome de Danielle é uma referência a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o filósofo conhecido por ter criado a figura do “bom selvagem” – apesar de ele nunca ter usado a expressão. A fama veio porque Rousseau pegou a idéia de Locke sobre o “estado de natureza” e deu uma incrementada: disse que, se uma pessoa vive nesse estado – sem governo, sem tecnologia, sem laços sociais – ela não tem vícios. Não chega a ser um sujeito “do bem” nem “do mal”. É apenas um solitário que não causa problemas. Uma Danielle Rousseau qualquer.

As referências ao francês não param por aí. Parte do pensamento dele também está nas entrelinhas do seriado. A Iniciativa Dharma, que oprime nossos heróis no bunker e pode estar por trás de toda a desgraça deles, é um grupo de pesquisa científica, certo? Pois então: o francês considerava a ciência inimiga da humanidade.

No ensaio Discurso sobre as Ciências e as Artes, seu primeiro grande trabalho filosófico, Rousseau argumenta que as artes e as ciências “corrompem a virtude”. Pior: elas seriam fruto dos nossos vícios: “A geometria veio da avareza; a física, da curiosidade vã; e todas, até a filosofia, do orgulho humano”. Para o francês, as ciências só tiram da gente o tempo que deveríamos gastar com coisas realmente importantes, como o amor pelo país. E ele dá exemplos: as sociedades em que as artes e as ciências tiveram papel de destaque, como o Egito antigo, “afundaram no vício e na imoralidade”.

Ei, então a ilha de Lost vai afundar também? Se for, tomara que esse dia demore um pouco. Afinal, não é sempre que a ciência, a filosofia e a psicologia trabalham juntas na TV.

Iniciativa Dharma

O caminho das verdades mais altas. É isso o que o nome Dharma promete. Ao menos, para o hinduísmo e o budismo. Para os perdidos de Lost, a verdade parece tão alta que ainda está difícil de traçar um caminho até lá. O que alguns deles sabem até agora é que a Iniciativa Dharma é um grupo de pesquisa que estuda coisas tão díspares quanto engenharia social, eletromagnetismo, meteorologia, parapsicologia e zoologia. Faz sentido: no budismo, o termo representa “o princípio universal que rege toda a realidade”, conta o missionário budista Ricardo Mário Gonçalves. No hinduísmo, ele diz respeito à vivência social, e dita o conjunto de obrigações de cada uma das castas – grupos sociais característicos da Índia. O símbolo usado pela Iniciativa Dharma também vem da filosofia oriental: é o baguá, uma figura de 8 lados associada ao I Ching. Em cada lateral, está desenhada uma combinação de 3 linhas. E cada grupo representa um ponto cardeal. No centro do baguá, está o yin e o yang, que representam a polaridade universal (frio e calor, mulher e homem etc.). Como disse John Locke, ao ensinar o menino Walt (Malcolm David Kelley) a jogar gamão: “Dois jogadores, dois lados. Um é claro, um é escuro”. Quando o yin e o yang estão em equilíbrio, atinge-se a harmonia. Melhor não pode ficar. Já I Ching significa Livro das Mutações. E é a obra mais antiga do Oriente. E uma das concepções que ele carrega é a seguinte: as leis que regem o Universo são extremamente simples, não importa quão complexas as coisas pareçam aos nossos olhos. Será que isso vale para os mistérios de Lost?

108 explicações

Os 6 números aqui em cima não dão sossego: aparecem o tempo todo em Lost. E eles nem são uma progressão geométrica nem uma seqüência de números primos nem nada que dê para decifrar à base de matemática. Só tem uma coisa: a soma deles dá um número familiar para muita gente: 108. No taoísmo e na astrologia chinesa, há 108 estrelas sagradas. No hinduísmo, o deus Krishna tem 108 nomes. Para o budismo, há 108 imperfeições humanas. E, em Lost, 108 é tempo. A cada 108 minutos, eles precisam digitar a seqüência 4, 8, 15, 16, 23 e 42 num computador. Senão alguma coisa de ruim vai acontecer. Mas o quê? Talvez o próprio número ajude a achar uma resposta. Por exemplo: 108 minutos é o tempo que alguns satélites de órbita baixa (de 300 a 2 000 km de altitude) levam para dar uma volta em torno da Terra. Alguns desses aparelhos passam várias vezes por dia sobre um mesmo ponto do planeta – uma ilha qualquer, por exemplo. Então… estariam os perdidos se comunicando sem saber com algum satélite cada vez que digitam os números? O tal satélite vai fazer com que o céu caia sobre a cabeça dos nossos heróis se eles não teclarem a seqüência na hora certa? É esperar para ver. Mas e a seqüência “mágica” de 6 números? Pode, afinal, significar algo concreto? Pode, sim: se a gente pegar e reagrupar os danados em coordenadas geográficas, um dos resultados possíveis é 4,815o de latitude norte e 162,342o de longitude oeste. Onde isso dá? Num ponto quase no meio do Oceano Pacífico, entre a Austrália e os EUA. Pois é: os números marcariam a localização da ilha.

Para saber mais

• lostpedia.com – Enciclopédia do seriado, mantida por fãs

https://www.4815162342.com – Fórum de teorias sobre os enigmas de Lost

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