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Palavras purificadoras

O livro sagrado do Islã que uniu os povos árabes

Por Alexandre de Santi (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 23 out 2020, 11h47 - Publicado em 30 nov 2015, 12h45

Livro: Corão
Autor: Vários
Ano: 610
Por que ler? Para entender melhor o mundo islâmico. Mas é melhor ouvir do que ler.

Corão

Meca era uma potência emergente no século 7, um novo polo comercial responsável por um boom econômico que provocava desigualdade. No Oriente Médio, tribos diferentes, cada uma com suas crenças (umas politeístas, outras monoteístas), conviviam no deserto. Entre elas, estavam judeus e cristãos. Os hebreus reverenciavam um único Deus havia mais de 1.500 anos, e Jesus Cristo havia passado pela região há seis séculos.

Em 610, um mercador de 40 anos chamado Muhammad ibn Abdallah começou a receber revelações divinas. Certa noite, ele dormia numa caverna quando teria sido acordado pelo anjo Gabriel, aquele mesmo dos cristãos que teria avisado Maria de sua gravidez. Gabriel teria ordenado o mercador, que hoje conhecemos como Maomé, a recitar suas palavras. O homem hesitou, mas, com a insistência do anjo, repetiu os versos. As revelações não tinham a intenção de fundar uma nova religião, mas reformar as crenças monoteístas que existiam até então. Maomé era um conservador que não trazia uma nova mensagem de Deus. Ele convocava a retomada da antiga palavra divina, que os fiéis teriam deixado para trás após séculos de distorções a respeito das revelações legítimas de outros profetas, como Abraão, Moisés e Jesus. O Corão, “recitação” em árabe (ou Alcorão, tanto faz, já que “al” significa “o” em árabe), passava a existir naquele momento, mesmo que não houvesse nada escrito em papel.

É por isso que o Corão propõe uma das mais diferentes experiências estéticas da literatura. A obra acontece na sua melhor forma em ondas sonoras, numa tentativa de preservar a pureza da mensagem, como foi transmitida a Maomé. Ou seja, é um livro que precisa ser escutado – o primeiro e mais influente audiobook da história. O Corão nunca dependeu de papel, tábuas, papiros ou pedras para acontecer. Basta o ar para disseminar os ensinamentos de Deus. A tradição muçulmana sustenta que Maomé, apesar de ser um comerciante viajado (tinha contato com outras culturas e provavelmente sabia o mínimo de matemática para fechar negócios), era analfabeto. Por isso, não anotou as palavras de Deus e propagou os ensinamentos divinos durante 23 anos usando apenas o gogó.

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E se alguém salvar uma vida, será como se tivesse salvo toda a humanidade.

A recitação de Maomé foi organizada cerca de 20 anos após a sua morte. Nos anos em que ouviu Gabriel, o profeta contou com a ajuda de seguidores que memorizaram e anotaram as palavras do mensageiro. Conta-se que os rascunhos ancestrais do Corão foram preservados em todo tipo de suporte disponível no século 7 (peles de animais, pedras, folhas de tamareira e até em omoplatas de camelos).

Decorar e recitar em voz alta todos os 114 capítulos (chamados de suras) do livro confere grande prestígio. É uma forma de arte das mais complicadas: as suras foram organizadas por tamanho, não por ordem cronológica ou temas, o que é uma dor de cabeça para leitores não iniciados. No mundo islâmico, se ouve o livro no rádio, nas esquinas, na televisão. Campeonatos de recitadores ocorrem em muitos países, alguns lotam auditórios ou são transmitidos pela televisão. Ministros de Estado fazem questão de entregar os prêmios. Tudo em árabe. O Corão faz mais sentido na língua original. As “traduções” do livro não são consideradas fiéis – por isso, são chamadas de “interpretações”. No árabe, os versos são musicais, cheios de cadência e poesia.

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Ao contrário de Jesus (que foi perseguido e só se tornou realmente influente séculos depois), e a exemplo de Moisés (que liderou os hebreus na fuga do Egito), Maomé foi um líder religioso em vida. Suas revelações agregaram as tribos árabes. O profeta pregava a justiça social numa Meca cada vez mais desigual. Havia indicações divinas para tudo: casamento, negócios, guerra, paz e até mesmo cobrança de impostos pelo governo para quem fosse politeísta. Era um código de ética que permitia um convívio mais harmônico entre as tribos, fragmentadas e muitas vezes isoladas pelo deserto massacrante. Cem anos depois, o Império Islâmico marchava sobre a Península Ibérica, onde permaneceria por 900 anos, uma rápida expansão que foi resultado direto de Maomé e do Corão.

O analfabetismo de Maomé também torna suas palavras mais puras. Como não podia ler, não teria sido influenciado por outros evangelhos que circulavam no século 7 (embora o Corão tenha diversas menções a personagens e episódios da Bíblia). Não está claro qual era a religião de Maomé até a noite na caverna, mas é certo que ele teve algum contato com o judaísmo, cristianismo ou outra forma de monoteísmo.

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