Texto Ciro Pessoa
Enclausurada na fumaça dos inferninhos da capital, a cena de rock paulistana começava a mostrar sua cara no começo dos anos 80. Movidos pelo som de Jam, Cabaret Voltaire e Talking Heads, grupos como Ira!, Titãs, Mercenárias e Ultraje a Rigor davam seus primeiros passos rumo ao showbiz naquelas festas estranhas com gente esquisita
Era uma terça-feira chuvosa de setembro de 1977. Pelos corredores do Colégio Equipe, em São Paulo, corriam rumores da prisão de Lima, o professor de geografia. Nessa época obscura e conturbada, sempre que um professor faltava dois dias seguidos, era batata a aparição do boato: “O Dops prendeu o coitado, que, a essa altura, já deve estar tomando porrada pendurado na estaca”. Por isso, naquele dia, havia um nítido mal-estar pairando sobre a escola.
Encostado no balcão da lanchonete, Barmack segurava uma garrafa de Crush enquanto esperava seu misto-quente. “Cara, estou com uma puta idéia”, ele me disse. “Vamos organizar um concurso para eleger a Miss Equipe!? O que acha?” A idéia parecia um despropósito diante da gravidade de tudo o que vivíamos. Mas o que ele pretendia era a realização de uma assembléia que deliberasse “alguma ação prática que ajudasse a tirar o Lima dos cárceres da ditadura.” Ou algo do gênero.
Naquele fim de semana, o diretor do centro cultural, o atual global Serginho Groisman, tinha programado um show com os Novos Baianos. A banda era o que havia de mais louco e ripongo no cenário musical. Eram cabeludos (como todos os alunos do Equipe), vinham de uma experiência comunitária hippie e, com toda certeza, consumiam centenas de baseados por dia. Eram nossos heróis e caíam como uma luva em nossas mentes adolescentes e desobedientes. Éramos um bando de hippies de esquerda, contestando um inimigo voraz e poderoso, a ditadura militar, experimentando drogas leves, procurando meios alternativos de vida e alçando vôos livres em todas as direções, das sexuais às sobrenaturais.
A casa azul
Concluída minha deformação educativa, parti para a Europa, onde morei durante um ano entre França, Espanha, Holanda, Itália e Portugal. De volta ao Brasil, reatei contato com algumas figuras do Equipe que seguiram pelo nem sempre ensolarado caminho das artes.
Arnaldo Antunes estava morando num sobrado da Alameda Joaquim Eugênio de Lima com a namorada Go e o arqui-louco-pintor-multimídia José Aguilar. Eles estavam desenvolvendo um projeto chamado “Banda Performática”. A Casa Azul era uma loucura, um caos movido a pincéis, cordas de guitarra enferrujadas, violões dilacerados, latas de tinta, restos de tamborins, livros manchados de látex, assoalho multicolorido e uma cadela chamada Fireaction, nome inspirado numa máquina de fliperama pela qual éramos viciados. Foi ali que se acendeu a primeira fagulha do que um ano depois viria a se chamar Titãs do Iê-Iê. Arnaldo, além de conhecer muitos poetas e músicos, sabia como aglutiná-los e convencê-los a participar dos mais variados e esquisitos projetos.
Dentre eles, um teve capital importância. Como quase todos tínhamos namoradas, ele propôs que gravássemos canções sob o título de Fita das Musas. Foi então que conheci o Trio Mamão. Branco Mello, Tony Bellotto e Marcelo Fromer trouxeram seus violões e mostraram canções que encaixavam perfeitamente no projeto. Eram músicas bem-humoradas e com forte acento tropicalista. Além do trio, Arnaldo convidou o poeta carioca Fausto Fawcett (que gravou um poema ligeiramente beat sob uma música de David Bowie, algo bastante atrevido para a época) e o multiinstrumentista Paulo Miklos.
Da Fita das Musas para os primeiros ensaios dos Titãs do Iê-Iê, foi um pulo. Anexou-se ao bando Nando Reis, que participava de um grupo chamado Camarões, e o tímido Sérgio Britto, ambos ex-Equipe. Já tínhamos uma banda, um precaríssimo equipamento e um porão escuro como estúdio. Só não tínhamos onde nos apresentar. Mas a primeira oportunidade não tardou a acontecer. Foi na Biblioteca Mário de Andrade, no primeiro semestre de 1981, num horário pra lá de alternativo: meio-dia. Nossa platéia era constituída de alguns parentes solidários e nossas namoradas. O repertório era uma miscelânea de hits da jovem guarda e sofríveis composições próprias.
O vulcão Júlio Barroso
Um mês depois, me mudei para o Rio de Janeiro a convite de uma agência de publicidade. Entre tardes entediantes e o esplendor da cidade, conheci o poeta e letrista Bernardo Vilhena. Sabendo dos meus planos de montar uma banda de rock em São Paulo, ele me convidou para ir até um estúdio em Botafogo, onde seu amigo e parceiro Lobão gravava. Naquela noite de junho de 1982, ouvindo trechos de Cena de Cinema, percebi que o momento era aquele.
No dia seguinte arrumei as malas, liguei para o Bellotto e, sem pestanejar, lhe disse: “Vamos fazer os Titãs do Iê-Iê. A hora é agora”. Bellotto demonstrou entusiasmo e imediatamente concordou. Falei com dois amigos que moravam na Vila Mariana e, na casa deles, os Titãs do Iê-Iê ensaiaram durante seis meses até a estréia oficial, em outubro de 1982, no Sesc Pompéia.
O mais curioso é que desconhecíamos por completo o fato de que outras bandas também estavam se armando para tomar de assalto a cena do rock do início dos anos 80. No Rio, em Brasília, em Porto Alegre e, sobretudo, em São Paulo. O mensageiro que trouxe as informações de que algo estava acontecendo longe de nossos narizes foi o inesquecível agitador cultural (além de líder da Gang 90 & Absurdettes), o poeta carioca Júlio Barroso.
Conheci Júlio numa tarde escaldante de janeiro num boteco da rua Ministro Rocha Azevedo, no Jardim Paulista, quase em frente ao local onde um mês depois viria a ser fundado o Hong Kong, o primeiro night club a abrir espaço e divulgar as bandas que surgiam por toda a cidade. Ele tinha muita clareza sobre os passos a ser dados no que definia como movimento. Mas, longe de ser sério, Júlio era um cara com um senso de humor e uma inteligência acima da média. Tornamo-nos amigos e fomos expulsos de vários bares por mau comportamento.
Na primeira semana do Hong Kong, deliciosamente decorado com motivos new wave, Júlio nos convidou para que nos apresentássemos no minúsculo palco onde o mais difícil era acomodar os nove titãs. Quanto ao show, da apresentação de Júlio (“Com vocês, subindo a rua Augusta a mil por hora, Titãs do Iê-Iê!”) ao final apoteótico (com todos berrando), foi uma grande celebração e a certeza de que ali estava nascendo uma banda de fato.
Foi na parede da casa que vi o cartaz de uma banda chamada Ira anunciando um show no Teatro do Bixiga. Júlio rasgou elogios. Fui vê-los numa daquelas sessões malditas, à meia-noite. O guitarrista canhoto (Edgard Scandurra) tirava um som dilacerado de uma velha guitarra Giannini, o baterista (Charles Gavin) concentrava-se no andamento e o cantor (Nasi) se movimentava como um boxeador. Do repertório, o que mais me chamou a atenção foi uma versão de “Planet Claire”, do B-52’s. Exatamente porque o Ira não tinha nada de new wave. Pelo contrário, era uma banda com pegada punk e, como já tinha observado o Júlio, com nítida influência do Clash.
O movimento começou a se espalhar, rastilho de pólvora. O Lira Paulistana, em Pinheiros, reduto do que se convencionou chamar de “vanguarda paulistana” (Itamar, Arrigo, Premê e Rumo), abriu as portas para as bandas que estavam se sobressaindo. Ali, vi pela primeira vez o Ultraje a Rigor, dono de um estilo bastante diferente dos Titãs e do Ira. Não bastasse a fisionomia hilária do vocalista, Roger, o som tinha um quê de engraçado, de surf music.
Pouco depois, foi inaugurado o Carbono 14, no Bixiga, que se pretendia uma espécie de centro cultural multimídia. O que mais celebrizou o Carbono foram as sessões de vídeo com gravações de shows de novas bandas inglesas. Foi lá que descobrimos o vocalista dos Smiths, Morrissey, cantando tresloucadamente com um ramalhete de flores enfiado no ânus. Para ter uma idéia do estardalhaço que o vídeo provocou, o caderno Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, deu a primeira página inteira, assinada por Pepe Escobar, então eminência parda do jornalismo contracultural tupiniquim. Foi lá também que Cabaret Voltaire, Bauhaus, Cramps e outras aberrações psicóticas do rock estrangeiro deram o ar de sua graça pela primeira vez.
Templo new wave
Um dos points de encontro era a loja de roupas e acessórios Kaos Brasilis. Ali, além do comércio de roupas, aconteciam campeonatos de futebol de botão, cortes de cabelo (new wave, é claro) e muita paquera. A loja era comandada pelas musas Marta Fromer e Marta Oliveira e pelo bon vivant Charlie Boy. Muitas bandas nasceram naquele antro de alegria e insanidade. “Sonífera Ilha”, por exemplo, foi composta ali.
Na Kaos, tornei-me amigo do Ira. Havia uma certa rivalidade entre nós. Eles nos achavam um bando de “alienados dos Jardins”. E nós os víamos como suburbanos. O fato é que o Titãs era ligado à tradição da MPB e o Ira tinha uma clara vocação para o rock’n’roll. Não estava nem aí com o tropicalismo. Mas, apesar das diferenças, estávamos no mesmo barco: abrir caminho com nossas bandas.
E foi numa dessas tardes que resolvemos, Nasi e eu, montar um estúdio para ensaio no fundo da casa em que estava morando após ter me casado. Passamos duas semanas colando caixas de ovo na parede e socializamos nossos equipamentos. Foi só a partir da construção desse estúdio que nos tornamos realmente cúmplices. E ligeiramente viciados em cola de sapateiro.
Enquanto em São Paulo os espaços para as bandas cresciam como grama em pasto holandês, no Rio de Janeiro o panorama também começava a mudar. O Circo Voador, templo da arte contracultural carioca, nos convidou para um show. E lá fomos nós, mais new wave do que as Absurdettes, tocar, pela primeira vez, fora do estado de São Paulo. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas, realmente… Uma banda de heavy metal carioca foi escolhida para abrir nossa apresentação. Os caras tocavam muito mal, mas tinham um público fiel que não aceitou a presença de uma banda paulistana formada por caras com cortes de cabelo esquisitos, roupas com tecidos quadriculados, sapatos fosforescentes e um som que incorporava elementos bregas e emepebísticos. Fomos vaiados da primeira à última música, e o público ficou de costas para o palco durante todo o show. No final, tivemos de bater em retirada pelos fundos do Circo para evitar que fôssemos massacrados pela enfurecida massa metal carioca.
A cena já estava suficientemente forte e madura, quando um night club aglutinou tudo. O Napalm era uma garagem acinzentada e sombria, mas com um palco grande o suficiente para abrigar uma banda de rock. Foi ali que os grupos de Brasília tocaram em SP pela primeira vez, como a comentada Legião Urbana. Fui vê-los – não havia mais do que trinta pessoas na platéia. Mas o show foi visceral. Era um som nitidamente diferente das bandas paulistanas, radicalmente ligado ao que havia de mais novo no rock inglês. Em outras palavras, pareciam os Smiths.
Também no Napalm, as bandas punks da periferia, como os Inocentes e os Ratos de Porão, levaram seus ruídos para o centro da cidade. O local era freqüentado por todas as tribos, dos new waves aos punks, passando pelos topetes dos rockabilly. Foi lá também que a banda punk feminina as Mercenárias encantaram e cativaram suas (seus) primeiras (os) fãs. O Napalm funcionou como um catalisador de vital importância para a consolidação de um som que anos depois dominaria o Brasil de norte a sul.
Cults e anônimos
Foi só por volta de 1983 que as gravadoras perceberam que havia algo de novo no submundo da cultura musical brasileira. Levaram os Titãs, o Ultraje, o Ira (que logo acrescentaram um ponto de exclamação no nome) para estúdios sofisticados e trataram de lançá-los o quanto antes. Quanto às bandas menos pop, as chamadas undergrounds, como Smack, Voluntários da Pátria, Akira S & As Garotas Que Erraram, Cabine C (que ajudei a fundar após me desligar dos Titãs por motivos estéticos), continuaram em seus caminhos de dificuldades financeiras e excesso de atrevimento. É claro que, àquela altura, já era possível tocar todos os fins de semana, dada a proliferação de bares, danceterias e boates que recebiam de braços abertos essas bandas. Um dos pontos mais “tradicionais” desse período era, sem dúvida, o Madame Satã.
No Satã, podíamos contemplar uma atriz descabelada comendo repolho numa jaula, presenciar shows de bandas que por mais memória que tenhamos jamais lembraríamos de seus nomes (ah, lembro de uma, chamada Lhamas and Pacas, onde foram parar estes caras?) e de algumas outras, como o RPM, que dali a menos de dois anos já estaria vendendo seus 2 milhões de discos.
1983
Janeiro
• Os cientistas do Instituto Pasteur, nos Estados Unidos, conseguem isolar o vírus da aids.
• Os Paralamas do Sucesso estréiam no Circo Voador, ao lado de Lulu Santos.
• Vai ao ar o primeiro programa Fábrica do Som, apresentado ao vivo do Sesc Pompéia, que mostraria em primeira mão grupos como Ultraje a Rigor e Ira!.
Fevereiro
• O Van Halen inicia sua turnê pelo Brasil.
Maio
• Os Smiths lançam seu primeiro compacto, Hand in Glove.
Junho
• A aids faz sua entrada oficial em território brasileiro com a morte do famoso costureiro Markito, aos 31 anos.
Julho
• Abertura da casa paulista Napalm, com shows de Mercenárias e Inocentes.
1984
Abril
• Morre Marvin Gaye, assassinado pelo próprio pai. O Congresso Nacional não aprova a Emenda Dante de Oliveira, que restituía as eleições diretas para presidente.
Junho
• O cantor Prince lança Purple Rain.
• Bruce Springsteen estoura com Born in the U.S.A.
• Júlio Barroso, líder da Gang 90, cai da janela de seu prédio e morre.
Julho
• Estréia o filme Bete Balanço, de Lael Rodrigues.
Outubro
• O bispo negro Desmond Tutu recebe o Prêmio Nobel da Paz por sua luta contra o apartheid na África do Sul.
Dezembro
• Bob Geldof reúne vários artistas ingleses para a gravação de “Do They Know It’s Christmas?”, cuja renda foi revertida para as vítimas da fome na Etiópia.
O guitarrista: Miguel Barella
Qualquer livro sobre o rock brasileiro terá um capítulo especial reservado a Edgard Scandurra. Um outro deveria levar o nome de Miguel Barella. Diferentemente do estereótipo do guitar hero – que privilegia os solos –, Barella tem o dom da economia nas notas. Abusa do perfeccionismo sem pisar no acelerador. Tinha um estilo perfeito para o pós-punk tupiniquim, pois era apaixonado por Television e seus guitarristas, Tom Verlaine e Richard Lloyd.
Barella tocou no Agentss no comecinho dos anos 80, influenciado pela música de Gary Numan. Em 1983, foi intimado por Júlio Barroso a fazer as guitarras da Gang 90, devido a seu estilo limpo e moderno. Com Guilherme Isnard nos vocais, montou sua obra mais bem acabada, o grupo Voluntários da Pátria. Foi com a entrada de Giuseppe Lenti que Barella conseguiu fazer o que chamava de “guitarras gêmeas”. Barella ainda chegou a estudar com Robert Fripp, guitarrista do King Crimson, demonstrando sua tendência à técnica e às afinações anárquicas. Engenheiro de formação, Barella manteve-se sempre à margem do mainstream. Desde os anos 90, trama seu experimentalismo no grupo Alvos Móveis, além de ter editado, com o amigo Alex Antunes, uma coletânea de nome Não Wave (com as principais bandas brasileiras do pós-punk) para um selo alemão.
O produtor: Pena Schmidt
O paulista Pena Schmidt foi um visionário. Em 1973, trabalhou como técnico de som dos Mutantes, quando montou o primeiro sistema com a mesa de mixagem no meio do público. Participou do desenvolvimento do caminhão de som que se desloca com a bateria da escola de samba e, em 1976, criou uma escola para seus seguidores. Embarcou para a Inglaterra no ano seguinte, onde foi se aperfeiçoar em cursos de engenharia de gravação. Lá vivenciou todo o nascedouro do punk inglês.
No início de 1983, já estabelecido na profissão, Pena assistiu aos shows de bandas como Ultraje a Rigor, Magazine, Ira, Agentss e Azul 29. Rapidamente, ligou para seu amigo André Midani, diretor da WEA, e sugeriu aquela geração de bandas. Produzidos por ele, os singles de todos esses artistas adentraram no mercado brasileiro a partir do final daquele mesmo ano.
Pena ainda trabalhou com os artistas mais representativos do rock brasileiro da década: Titãs, Gueto, Camisa de Vênus, Inocentes, Os Mulheres Negras – sua última descoberta para a WEA –, entre outros. No início dos anos 90, fundou o selo independente Tinitus. Diretor de gravadora, engenheiro de som, produtor, colunista, empresário. Pena já foi tudo isso. Atualmente cuida de sua própria produtora de eventos, sediada em São Paulo.