Todo ano, esta cidade italiana se transforma em um grande jogo de tabuleiro
Em Mirano, no norte do país, a festividade traz disputa entre times – e também muitas atrações ligadas ao ganso.

Em várias partes da Europa, o Dia de São Martinho, 11 de novembro, é celebrado por marcar o início do inverno. No fim de semana mais próximo a essa data, a cidadezinha de Mirano, no norte da Itália, faz uma comemoração muito inusitada, envolvendo gansos e um jogo de tabuleiro com gente de verdade.
Oito times de seis integrantes cada competem no jogo do ganso, uma gincana que movimenta toda a cidade e atrai turistas de todo o mundo. A atração começa com a decisão da ordem em que os times vão jogar — para isso, um acrobata sobe num poste de 15 metros onde estão as sacolas com os nomes das equipes. Em seguida, é hora do jogo em si.
O time lança dois dados gigantes de espuma e avança nas casas do tabuleiro gigante construído na praça da cidade. A cada dez casas, mais ou menos, é preciso enfrentar um teste de força, como corrida de saco, corrida de perna-de-pau, cabo de guerra e tiro ao ganso (mas o ganso é de madeira e o tiro é de estilingue).
A prova mais desafiadora é a “i zoccoli” (“os cascos”), em que cinco integrantes do time tem seus pés unidos e precisam andar juntos, em compasso, num circuito de corrida. O time adversário tem direito a xingar e até empurrar seus rivais. Vence quem chegar mais longe.
O jogo todo dura cerca de 90 minutos. O time vencedor (aquele que avançar mais no tabuleiro) leva para casa dinheiro que será investido em uma instituição de caridade local – além, claro, do prestígio da vitória.

De onde veio a tradição?
Chamada de Zogo dell’Oca (“jogo do ganso”), a disputa é inspirada em um jogo de tabuleiro do século 16 comum na corte dos Médici (uma das famílias mais ricas e influentes do Renascimento europeu) e que chegou a ser dado de presente ao rei Filipe II da Espanha. Tratava-se de um jogo clássico, com espaços representando os passos de capturar, matar e preparar um ganso para a mesa, incluindo também armadilhas como abismos, cadeia e taverna.
Havia 63 casas no jogo, o que pode ser uma associação com as crenças do filósofo Marcílio Ficino, que acreditava que cada pessoa vivia uma grande transformação em sua vida a cada sete anos. O jogo teria, portanto, os nove períodos de sete anos da vida de um indivíduo.
Nesta versão em tamanho real, porém, a ideia não é exatamente a mesma. As casas representam atrações locais, como escola e sorveteria, e há até uma casa retratando Lúcifer, referência à pintura que fica no teto da igreja de Mirano.
Apesar do jeitão de festival medieval, o Zogo dell’Oca é, na verdade, uma invenção bem nova: surgiu na década de 1990 como forma de juntar a comunidade. A ideia foi da Pro Loco Mirano, uma associação local que queria ter em Mirano uma versão própria dos festivais mais populares da Itália, que atraem milhões de turistas, como a corrida de cavalos de Siena e a carruagem incendiária de Páscoa de Florença.
O problema é que Mirano é uma cidade pequena (na época da criação do festival, só havia três lojas por lá), então a ideia de imitar essas celebrações de outras cidades poderia soar “falsa”, nas palavras de Roberto Gallorini, líder da Pro Loco Mirano. A solução foi emular o que seria um circo da virada do século 19 para o 20. “O começo do século 20 está perto, no sentido de que temos fotos de nossos avós”, ele declarou à Smithsonian Magazine. “Ao mesmo tempo, está distante, é histórico”.

Por que gansos?
Além da gincana, o Zogo dell’Oca também conta com barracas de comida, roupas e artesanato, quase tudo com a temática de gansos. Mas por que a obsessão com essa ave?
São Martinho, também chamado de Martinho de Tours, é um dos santos mais amados da Igreja Católica, dando nome a várias cidades na Europa e também no Brasil. Reza a lenda que, quando a população de Tours resolveu fazê-lo bispo, ele se escondeu em um gansaral para evitar o cargo. O grasnar dos animais, no entanto, revelou ao povo onde Martinho estava. E bispo ele se tornou.
Dessa forma, São Martinho passou a ser associado à ave. O seu dia também marca o fim do ciclo da agricultura, quando os gansos que haviam sido engordados durante as colheitas eram finalmente abatidos para o consumo.

Mas não para por aí: em Mirano, havia muitas família muçulmanas e judias, religiões que não comem porco. Por isso, o ganso acabou se tornando intrinsecamente ligado à culinária local. Tanto é que, na Itália, a linguiça de ganso é chamada de “salame ecumênico”, pois é a única que as três religiões (somando-se os católicos) podem comer . Desde 2015, dentro do festival, é realizada uma ceia com a presença do rabino e do imã de Veneza em que esse é o prato principal.
“Neste turbilhão de sabores, cores e aromas, a rainha indiscutível da Feira será obviamente o ganso”, diz o site oficial do evento (em italiano, ganso é “oca”, tratado no feminino). “E não apenas à mesa. Tudo, nos dois dias de novembro, remeterá a ela, presente em todas as efígies e dimensões em todos os recantos da festa.”