Texto: Bruno Garattoni, de Westport | Ilustração: Leonardo Yorka | Design: Juliana Krauss
Em algum ponto do século 5, ninguém sabe ao certo quando, Patricius nasceu na Bretanha, então parte do decadente Império Romano do Ocidente. Era de classe média alta e levou uma vida tranquila até os 16 anos, quando os piratas irlandeses chegaram. Atacaram, pilharam, queimaram tudo – e raptaram Patricius. Após seis anos trabalhando como escravo, o rapaz fugiu e começou a perambular pregando o cristianismo. No ano 441, cismou de ficar 40 dias no topo de uma montanha (queria imitar o profeta Moisés e seu jejum no Monte Sinai). A história o transformou em Saint Patrick: o santo nacional da Irlanda, a quem os cristãos atribuem milagres como transformar um cajado em árvore e expulsar as cobras do país. O morro foi batizado de Monte Patrick, e se tornou sagrado.
Ele é a última coisa que você vê, pela janela, antes de entrar na área mais restrita da fábrica mais controlada do mundo. Trata-se de um complexo que pertence à empresa farmacêutica Allergan, e tem 1.300 funcionários – 25% de toda a população de Westport, onde estamos, a 5 km do Monte Patrick. A planta fica dentro da cidade (mora gente do outro lado da rua), e de fora não chama muito a atenção. Não tem portões pesados nem cerca elétrica, e só dois guardas na portaria. Mas é responsável por diluir e engarrafar o veneno mais potente já inventado ou conhecido pelo homem: a toxina botulínica.
Os 700 músculos do seu corpo têm funções diferentes, mas funcionam do mesmo jeito: quando você decide fazer algum movimento, o corpo libera um neurotransmissor chamado acetilcolina, que vai até os músculos envolvidos e faz com que eles se contraiam. Mas uma toxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum tem o poder de interromper esse processo. O veneno impede a ação da acetilcolina e paralisa os músculos do corpo. A substância foi descoberta em 1895 pelo cientista belga Emile van Ermengem, que a encontrou num presunto estragado – o alimento havia matado três pessoas, por parada cardiorrespiratória, e intoxicado outras 31. Durante a Segunda Guerra Mundial, o centro de pesquisas militares Fort Detrick, no Estado de Maryland (EUA), desenvolveu técnicas para cultivar a bactéria, extrair e purificar a toxina botulínica, com a intenção de usá-la como arma biológica. Isso acabou não acontecendo, e ainda bem. Um grama da toxina, o equivalente à ponta de um lápis, seria suficiente para matar mais de 1 milhão de pessoas (1). Para que isso ocorresse, a dose teria de ser dispersada na atmosfera de maneira uniforme, o que na prática é difícil (a gravidade vai puxando as moléculas da toxina para o chão). Mas dá uma ideia do grau de periculosidade da substância.
1.Botulinum Toxin as a Biological Weapon: medical and public health management. American Medical Association, 2001.
Ela ficou meio esquecida até a década de 1980, quando o oftalmologista Alan Scott foi apresentado ao cientista Ed Schantz, que havia trabalhado em Fort Detrick. O primeiro estava procurando novos tratamentos para o estrabismo, e o segundo tinha a solução – depois de sair do Exército, se instalou na Universidade de Wisconsin, onde continuou discretamente suas pesquisas sobre a toxina (a pretexto de entendê-la melhor para evitar a contaminação de alimentos industrializados). Scott teve a ideia de injetar quantidades minúsculas da substância nos músculos oculares dos pacientes para relaxá-los e curar o estrabismo. Deu certo, e ele resolveu patentear o negócio: batizou a toxina hiperdiluída de Oculinum. Em 1987, o dermatologista canadense Alastair Carruthers percebeu que a toxina tinha um efeito secundário e positivo: as injeções eliminavam rugas (de forma completamente segura, que fique claro). De olho nisso, a empresa americana Allergan comprou a invenção de Scott, em 1991, e deu a ela um nome mais chamativo: Botox.
Naquela época, a Allergan fabricava colírios e fluido para lentes de contato, e já tinha a fábrica na Irlanda – que foi aberta em 1977, com apenas 25 funcionários. Westport é um lugar distante (para chegar aqui é preciso atravessar toda a Irlanda, rodando 250 km desde Dublin, por uma estradinha estreita), mas a empresa foi atraída por duas vantagens. Já existia uma fábrica, que havia sido construída pelo governo local para atrair empresas estrangeiras, e a Irlanda estava dando isenções tributárias para quem se instalasse aqui. Nas décadas seguintes, o país se tornou um verdadeiro paraíso fiscal, reunindo dezenas de multinacionais – que mantêm fábricas ou escritórios aqui, e por isso chegam a pagar apenas 2,5% de impostos sobre o lucro (contra 18% na Inglaterra, por exemplo). As sedes europeias da Apple, do Google e do Facebook ficam na Irlanda, que recebeu US$ 277 bilhões em investimento de empresas americanas entre 1990 e 2015 – mais do que China, Índia, Rússia e Brasil somados.
Esse foi o caso, também, da Allergan. Não será mais. Em 2019, após se fundir com o laboratório americano AbbVie, criando a quinta maior empresa farmacêutica do mundo, ela anunciou que irá transferir sua sede fiscal de volta para os EUA. É que a sede da AbbVie (uma spinoff do laboratório Abbott) fica lá. Mais precisamente em Delaware, o Estado americano onde menos se paga imposto. Outro paraíso fiscal que reúne, no papel, mais de 1 milhão de empresas. Mas a fábrica continuará aqui, na Irlanda. Ela produz todo o Botox do mundo, e está sendo ampliada: recentemente ganhou uma nova ala, que se chama Biologics 2 e custou US$ 160 milhões.
Depois de atravessar um anel externo com dezenas de mesas, que parece um escritório qualquer, encontro uma porta muito mais grossa e pesada que o normal. Dela para a frente, não é permitido filmar nem fotografar. Porque aqui dentro estão os segredos que transformaram o veneno mais potente do mundo num dos produtos mais lucrativos da indústria farmacêutica – só o Botox, sem contar seus concorrentes (mais sobre eles daqui a pouco), rende mais de US$ 3 bilhões por ano.