Cortes de verba, perseguição ideológica, universidades sucateadas e até um contingenciamento de Schrödinger – que existe e não existe ao mesmo tempo. A pesquisa nacional vive um fundo de poço histórico. Entenda os cortes na área - e por que eles põem em xeque o futuro do país.
Texto: Bruno Vaiano e Maria Clara Rossini | Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Carlos Eduardo Hara
César Lattes andava pensando muito em dinheiro, talvez porque não conseguisse obter nenhum. O ano é 1949, e o físico indicado ao Nobel acaba de fundar, com seu colega José Leite Lopes, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), sediado até hoje no Rio. Por uns meses, quem pagou os salários e o aluguel de uma sede provisória foi o ministro das Relações Exteriores da época, João Alberto Lins de Barros. Não com verba do Ministério: com grana do próprio bolso. Até que João teve um infarto, saiu do cargo e a fonte secou.
Quem segurou a bronca foi um deputado amigo – um certo Paes Leme, famoso porque todo dia falava no rádio criticando o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Euvaldo Lodi. Leme sabia que Lodi toparia qualquer coisa para se livrar dessa pedra no sapato, então fez um acordo: eu paro de criticar você em rede nacional; em troca, você sustenta o Lattes e uns outros físicos para mim. Lodi topou. Lattes passava na CNI todo mês e pegava o cheque. Foi assim, por três anos, até 1951. Recibo, não tinha. Tudo na discrição. Só depois Lattes descobriu por quê: aquilo era verba desviada de combate ao comunismo, cujo objetivo original era investigar o CBPF – considerado um antro de simpatizantes dos soviéticos. (1) Foi só depois, com o mandato de Getúlio Vargas, que começou a entrar dinheiro público limpo.
Ciência e tecnologia nunca foram queridinhas do orçamento brasileiro. Por volta de 1900, a pouca pesquisa feita aqui era possível graças a entusiastas, empresários filantropos (como as famílias Guinle e Matarazzo) e médicos curiosos. O interesse das autoridades em saneamento, vacinas e doenças tropicais, nessa época, permitiu criar o que hoje são a Fiocruz e o Instituto Butantan. Mas essas eram migalhas da verba de saúde. Estima-se que o Brasil tenha chegado ao ano de 1950 com apenas cem pesquisadores de profissão. (2)
A situação melhorou em 1951, quando surgiram os primeiros órgãos federais voltados exclusivamente a pôr dinheiro público na ciência. E a Ditadura Militar, apesar da cassação e tortura de intelectuais, também deu seu quinhão. Mas os anos dourados para a massa cinzenta brasileira só vieram nos anos 2000: de carona na estabilidade do real, no câmbio vantajoso com o dólar e no crescimento econômico da época, o Brasil disparou de 21º para 13º lugar no ranking de produção científica mundial (3), e o número de grupos de pesquisa aumentou de 4,4 mil em 1993 para 37,6 mil em 2016. O maior orçamento da história do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) foi em 2013.
Agora, a crise político-econômica que se arrasta desde o governo Dilma e a perseguição ideológica da gestão Bolsonaro puxaram a ciência brasileira de volta ao fundo do poço. Desde 2019, os orçamentos do CNPq e da Capes – órgãos que financiam pesquisas e pagam bolsas para a pós-graduação – voltaram para níveis idênticos ou inferiores aos do ano 2000. A verba de R$ 10,8 bilhões prevista para o MCTI para 2021 é 28,7% menor que a de 2020 e está 48% contingenciada – ou seja, travada. Talvez só 5 bilhões vejam a luz do dia. Isso é resultado do contingenciamento de 90% no FNDCT, um fundo que investe em pesquisa e infraestrutura para ciência e tecnologia. Mais: quase dois terços da isenção de impostos para importação de insumos de laboratório deixou de existir (4).
48% da verba do MCTI para 2021 pode não ver a luz do dia. E ela já era 28,7% menor que a de 2020.
Não se decepcione caso você não tenha reconhecido sopas de letrinhas como FNDCT. Em uma pesquisa de 2019, 87% dos 2.206 jovens brasileiros entrevistados não conseguiram citar uma única instituição nacional associada à pesquisa e 93% não sabiam o nome de nenhum cientista nascido por aqui (5). Pensando nisso, fizemos o gráfico abaixo – que destrincha as siglas e resume para o leitor qual órgão sustenta o quê na pesquisa nacional.
Mais preocupante é que 68% dos jovens admitam ter dificuldades em diferenciar notícias de ciência falsas de verdadeiras. A falta de familiaridade do brasileiro médio com a ciência – resultado de educação básica deficiente, divulgação ineficaz do trabalho realizado nas universidades públicas e uma série de outros problemas crônicos – tornou o país terreno fértil para terraplanistas, gurus quânticos, correntes conspiratórias de WhatsApp e, mais recentemente, para a morte: mais de 400 mil brasileiros já perderam suas vidas para a Covid-19 porque o governo federal ignorou epidemiologistas, riu das máscaras e lockdowns, torrou verba pública com remédios ineficazes e emperrou a compra de vacinas.
O desastre brasileiro frente à gripezinha mais letal desde a Espanhola – viramos chacota diplomática e berçário de mutações perigosas do vírus – atesta que nossa ciência não está em crise só nas planilhas orçamentárias.
Neste ano, Bolsonaro interveio de maneira inédita na eleição dos reitores de 19 das 69 universidades federais, ignorando os candidatos mais votados para nomear docentes que seguissem sua agenda ideológica. Em 2019, exonerou o físico Ricardo Galvão, então presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por ter divulgado um aumento de 88% nos alertas de desmatamento da Amazônia em relação ao ano anterior. Já em 2021, o ministro Ricardo Salles impôs censura prévia às publicações oficiais do ICMBio (6), instituto que cuida das unidades de preservação ambiental do país. Falando em censura: após expor sua insatisfação com a gestão da pandemia em um evento online, Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), foi procurado pela Controladoria Geral da União e precisou assinar um termo que o impede de criticar o governo federal em seu local de trabalho.
Nas próximas páginas, vamos explicar o funcionamento da ciência brasileira, os cortes recentes e os problemas mais profundos. Tudo começa com os números.