Não é preciso ir muito longe para achar dilemas científicos. Basta fazer as perguntas certas.
Texto: Guilherme Eler | Foto: Dulla | Design: Yasmin Ayumi | Edição: Ana Carolina Leonardi
A ciência está em todo lugar. Mas, às vezes, é preciso ter lentes de cientista para enxergar perguntas profundas – que, por vezes, persistem por séculos – até mesmo nas coisas mais simples.
Bicicletas são um exemplo particularmente duradouro de mistério científico. Humanos criaram o hábito de se equilibrar nelas há pelo menos dois séculos – a versão mais antiga, batizada pelos franceses de vélocipède, veio ao mundo em 1818. Mesmo depois de tantos anos, uma questão simples sobre as bikes jamais foi desvendada: como elas conseguem manter a estabilidade quando estão em movimento.
Em um primeiro momento, você, leitor, pode imaginar que o piloto é a peça responsável por garantir o equilíbrio. Afinal, enquanto passeamos sobre duas rodas, nosso cérebro está o tempo todo fazendo cálculos: se a bicicleta começa a inclinar para a direita, puxamos o guidão na direção oposta para alinhar as duas rodas de novo, por exemplo.
Mas isso não conta a história inteira. Caso seja arremessada da maneira certa, uma bicicleta pode se mover normalmente por alguns bons metros sem ninguém no controle – até perder a velocidade que ganhou com o empurrão e tombar de lado.
Explicar a física por trás disso seria, então, um trabalho para as Leis da Mecânica de Isaac Newton, e que garantem que um corpo tirado da inércia e colocado em movimento tende a continuar em movimento. Seria simples assim… Não fosse um detalhe. Bicicletas conseguem corrigir eventuais desvios de percurso por conta própria, permanecendo em linha reta – como um piloto humano faria.
Quando aparece algum obstáculo, como um buraco ou desnível no terreno, a reação do veículo é instantânea: a roda da frente vira na direção oposta ao estímulo, a fim de corrigir seu curso e retomar a estabilidade. Eis aí a questão de um milhão de dólares, observada ainda no século 19, mas que segue sem um porquê definitivo até hoje.
“Uma bicicleta, na verdade, é extremamente complexa. Entender sua estabilidade, numa comparação muito simplificada, é equivalente a resolver uma equação matemática de quarto grau”, explica Andy Ruina, professor de engenharia mecânica da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. O que isso significa? Bem, basta imaginar aquela fórmula de Bhaskara que você aprendeu nas aulas de matemática do colégio. “Só que com uma dose de esteroides anabolizantes”, brinca.
Cientistas costumavam culpar dois fenômenos físicos diferentes pelo mistério das bikes. O primeiro era o “efeito giroscópico” – o mesmo visto quando um peão se mantém estável girando, mesmo que mexa um pouquinho para cá, um pouquinho para lá. O segundo era o efeito caster. É possível vê-lo em carrinhos de supermercado ou cadeiras de escritório, por exemplo. Se você os empurra em uma direção, suas rodinhas se alinham naturalmente de acordo com o sentido do movimento.
Parece fazer sentido, não é? Por muito tempo, acreditou-se que o problema estava resolvido. Isso durou até 2011, quando a hipótese foi enterrada por um trabalho do próprio Andy Ruina e sua equipe, que contava com nomes como o engenheiro holandês A.L Schwab e Jim Papadopoulos, cientista americano fissurado por bicicletas – que apresentou o dilema das bikes a Ruina ainda em 1985.
Primeiro, o grupo criou um modelo matemático que identificou todos os parâmetros possíveis que poderiam permitir que uma bike se estabilizasse por si só. Chegaram a uma lista de 25 itens. Feito isso, os cientistas se perguntaram qual era a bike mais simples que poderiam construir e que, ainda assim, fosse estável por conta própria. O modelo, criado na Holanda, reunia apenas oito dos 25 fatores – possibilitando descartar todos os demais como explicações essenciais do fenômeno. O mais importante, porém, é que a bicicleta foi projetada para anular tanto o efeito giroscópio quanto o efeito caster… E, ainda assim, ela se mantinha alinhada. Nenhum dos dois efeitos estava na raiz do equilíbrio da bike. Foi o primeiro entre dezenas de estudos a perceber isso, literalmente 200 anos depois do primeiro artigo publicado sobre a mecânica de bicicletas, em 1818.
Hoje, os cientistas desconfiam que a explicação não está em um efeito físico específico, e sim na interação entre os vários fenômenos presentes quando uma bicicleta se move. Descrever essa dinâmica com precisão, porém, ainda desafia físicos, engenheiros e matemáticos. “O problema é que muitos buscavam por uma resposta simples, quando ela não existe”, conclui Ruina.
Se o mistério do equilíbrio das bikes segue em aberto, há outros problemas da ciência de “dia a dia” que já conseguimos explicar na sua totalidade. Tudo porque houve gente disposta a levar assuntos banais a sério, a ponto de encontrar grandes respostas para perguntas que pareciam simples demais.