O mestre escrevia da direita para a esquerda, não acentuava nada, ignorava pontuação e ainda espalhava símbolos enigmáticos nos seus textos. Por quê?
Texto: Eduardo Szklarz | Edição de Arte: Leonardo Drehmer |
Design: Andy Faria | Imagens: Leonardo Da Vinci
e todas as excentricidades de Leonardo da Vinci, uma pode ser apontada como recordista: a linguagem em código que ele criou. O mestre florentino escreveu ao contrário, da direita para a esquerda, milhares de páginas em seus cadernos de anotações. Além do mais, não acentuava nada, nem colocava pontuação. Usava uma taquigrafia peculiar, que desmembrava certas palavras, juntava outras tantas e empregava símbolos no lugar de algumas letras. O resultado era um texto hermético, repleto de trechos incompreensíveis. Para lê-lo, era preciso antes decifrá-lo.
“Leonardo escrevia em letras rudes, com a mão esquerda, de modo a que só os iniciados na leitura de seus textos pudessem entendê-los”, registrou, ainda no século 16, o biógrafo italiano Giorgio Vasari. Ser canhoto, naquela época, atraía as piores superstições. E logo correram rumores de que havia todo tipo de simbolismo escondido entre aquelas frases misteriosas. Essa, aliás, é uma das explicações para o fato de Da Vinci ter dado margem a tantas teorias conspiratórias. Afinal, qual seria a explicação para tanto malabarismo na hora de escrever?
CASCAS DE BANANA
Os textos do renascentista só foram completamente decifrados em 1883, quando o historiador alemão Jean Paul Richter traduziu-os no livro The Notebooks of Leonardo da Vinci (“Os Apontamentos de Leonardo da Vinci”, jamais editado no Brasil). No início, Richter tentou usar um espelho para ler as frases invertidas. Mas logo desistiu do procedimento. “Considerando a enorme massa de manuscritos a ser decifrada, seu uso é cansativo e inconveniente”, escreveu no prefácio da obra.
Aos poucos, o historiador foi identificando, uma a uma, todas as cascas de banana espalhadas por Da Vinci em suas anotações. Percebeu, por exemplo, que ele costumava fundir duas ou mais palavras pequenas em uma só, e que desmembrava palavras longas. “Le forme di tutti” (“As formas de todos”) virava “leforme ditutti”. Sua intenção, segundo vários especialistas, era substituir as regras gerais do idioma italiano por uma espécie de escrita fonética – estranha aos olhos, mas agradável aos ouvidos.
Da Vinci também tinha a mania de dobrar letras quando juntava certas palavras. Em vez de “che sia” (“isto é”), escrevia “chessia”. E inventava abreviações as mais esdrúxulas. Exemplo: colocava um “X” no lugar da sílaba “ver”. É o caso do termo “inXso”, que equivale a “inverso”. Além disso, usava “i” para dizer “uno” (“um”) e “î” para dizer “una” (“uma”). Embora não pontuasse as frases, eventualmente empregava traços verticais para distingui-las, sobretudo quando elas tratavam de assuntos sem nenhuma conexão.
Diante do uso de todos esses artifícios, só poderia mesmo ficar a impressão de que Leonardo da Vinci tinha algo a esconder. Pode-se imaginar que ele tivesse medo de que alguém roubasse suas ideias. Ou que a linguagem cifrada fosse um subterfúgio para escapar de uma censura da Igreja. São suposições tentadoras, mas que não têm fundamento científico. As verdadeiras explicações para os códigos de Da Vinci, segundo os especialistas, seriam bem mais triviais do que isso.
Se você é canhoto, certamente sabe que, ao escrever como destro, da esquerda para a direita, em pouco tempo a mão fica suja de tinta. E o texto, dependendo da caneta que se usa, acaba todo borrado. Para um sujeito rigoroso e perfeccionista como Leonardo da Vinci, esse tipo de coisa seguramente seria intolerável. “Foi por isso, e apenas por isso, que ele desenvolveu o método da escrita espelhada”, afirma o pesquisador italiano Mario Taddei, que passou boa parte da vida debruçado sobre os manuscritos do mestre.
Nem todo mundo acha, porém, que a história seja tão simples assim. Para o britânico Martin Clayton, autor de vários livros sobre Da Vinci, a escrita espelhada pode ter tido fundo psicológico. “Escrever de trás para frente é algo relativamente comum na infância. No caso de Leonardo, uma brincadeira de criança pode ter se tornado um hábito que ele nunca teve motivos para abandonar.”
Já para a neurocientista Maryanne Wolf, da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, o problema de Da Vinci era outro: a dislexia. Ela chegou a essa conclusão depois de trabalhar por mais de 20 anos com crianças portadoras desse transtorno. Por definição, dislexia é uma dificuldade de ler com fluência, soletrar ou mesmo identificar termos simples.
A palavra “abacateiro”, por exemplo, pode ser entendida por um disléxico como “abactern”. “O distúrbio tem raiz neurológica e, muitas vezes, vem acompanhado da dificuldade para distinguir entre esquerda e direita”, explica Wolf. São vários os casos de supostos disléxicos com inteligência acima da média, entre eles Albert Einstein, Thomas Edison e Agatha Christie.
Para testar sua hipótese, a neurocientista analisou a escrita de quatro homens: dois canhotos e dois destros, com um disléxico em cada grupo. Wolf pediu que eles transcrevessem frases espelhadas a fim de verificar quem tinha os neurônios mais “ajustados” para lidar com elas. Resultado: canhotos e disléxicos foram os mais rápidos.
Um teste com apenas quatro pessoas é insuficiente para confirmar qualquer teoria, disso não resta dúvida. Mas o resultado parece fazer sentido, corroborando a tese de que a peculiar escrita de Da Vinci pode ter sido fruto de um processo neurológico. Independentemente de quais sejam as reais explicações, uma coisa é certa: não há nenhuma teoria conspiratória por trás da linguagem codificada que o gênio da Renascença criou.
Maneirismos do gênio
Algumas excentricidades da escrita de Leonardo.