Você clonaria o seu cachorro? Mais de 1.000 pessoas já fizeram isso, numa empresa coreana que cobra US$ 100 mil pelo serviço. Entenda a técnica e conheça os bastidores do processo – que envolve um cientista renegado e uma grande polêmica envolvendo o bem estar animal.
David Ewing Duncan, de Seul. Fotos: Tomás Arthuzzi. Design: Juliana Caro. Tradução: Bruno Garattoni
Texto originalmente publicado pela Super em março de 2019
O cirurgião é um showman. Cercado de ajudantes, com um microfone de lapela preso ao avental, gesticula muito enquanto descreve, para um grupo de estudantes atentos, a cesariana que está prestes a fazer. Ele se aproxima, sem interromper o discurso, da mesa de cirurgia onde a grávida está deitada, totalmente anestesiada. Todo o corpo dela, a não ser pela barriga, está coberto por um pano verde. O médico faz uma rápida incisão, e seus auxiliares puxam cuidadosamente as bordas do corte. O cirurgião enfia dois dedos, depois a mão inteira, dentro do buraco. Um aparelho mostra os batimentos cardíacos.
E aí a cabecinha, e o corpinho, do bebê aparecem. Enfermeiras limpam sua boca, para que ele consiga respirar. O cirurgião corta o cordão umbilical e sacode delicadamente o pequenino – que mexe a cabeça e começa a chorar. Triunfante, o médico segura o recém-nascido para que os estudantes o vejam.
O bebê não tem nome.
Tem número: 1108.
Porque ele é um clone.
Não se trata de uma cena futurista, de ficção científica – está acontecendo agora em Seul, na Coreia do Sul. Mas o recém-nascido não é humano. Trata-se de um cachorro, da raça ovcharka asiático. Ele é muito pequeno, está todo melecado, e sua pelagem tem manchas brancas e pretas, que lembram as de uma vaca. Seus olhos ainda não abriram, e mal dá para ouvir quando ele chora. O cirurgião, Hwang Woo-suk, solta seu microfone e o coloca bem perto da boca do cachorrinho, para que os estudantes possam ouvir o seu arfar triste: eeee, eeee, eeee.
Enquanto isso, os ajudantes de Hwang costuram a barriga da mãe, uma cadela de pelos amarelos e jeitão de labrador especialmente criada para gestar bebês clonados. “Ela é uma mistura de raças”, explica o pesquisador Jae Woong Wang. Ele trabalha com Hwang na Sooam Biotech Research, a primeira empresa do mundo especializada em clonar cachorros. “Nós selecionamos as mães para que sejam dóceis e gentis”, explica.
Faz mais de 20 anos que o mundo se espantou com o nascimento da ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir de uma célula adulta. Na época, a mídia explorou bastante o receio implícito na duplicação de seres vivos. A revista Time colocou duas ovelhas na capa, com a manchete: “Algum dia haverá um clone seu?”. Ao mesmo tempo, o filme Jurassic Park assustava o público com uma história sobre tiranossauros e velociraptors clonados, que saem de controle e atacam os humanos, comendo advogados e apavorando criancinhas. Mas, ao longo dos anos, a clonagem foi sendo apagada da imaginação coletiva, que se ocupou de outras inovações científicas e tecnológicas. Numa era de edição genética, biologia sintética e inteligência artificial, o medo da clonagem chega a parecer inocente, lembrança de uma época menos ansiosa.
Mas aí, em março de 2018, a cantora e atriz americana Barbra Streisand fez uma revelação. Em uma entrevista, ela deixou escapar que suas cachorrinhas da raça coton de tulear, Miss Violet e Miss Scarlett, na verdade são clones de Samantha, uma cadela que ela amava muito e faleceu em 2017. As duas, ela explicou, haviam sido clonadas pela ViaGen Pets, empresa do Texas que cobra US$ 50 mil pelo serviço. A revelação gerou fúria entre defensores dos animais, e Streisand publicou um artigo no New York Times se explicando: “Fiquei arrasada com a perda da Sammie, depois de 14 anos juntas, e queria mantê-la junto comigo, de alguma forma. Foi mais fácil me despedir sabendo que eu poderia manter uma parte dela viva, algo que veio do seu DNA”.
A moralidade da clonagem é debatida há bastante tempo. Nós temos o direito de criar uma cópia de um ser vivo, especialmente considerando a dor e o sofrimento envolvidos no processo? Para produzir um único clone, pode ser necessário implantar mais de dez embriões [veja quadro abaixo].
A mãe que atua como barriga de aluguel é tratada com hormônios que, a longo prazo, podem ser perigosos. E muitos dos fetos são abortados, nascem mortos ou deformados. Quando um cachorro foi clonado pela primeira vez, em 2005, foi preciso usar mais de mil embriões, implantados em mais de cem cadelas. “A história delas lembra a série O Conto da Aia”*, diz Jessica Pierce, expert em ética animal da Universidade do Colorado. “É uma versão canina.”
*Nessa série de TV, baseada em um livro da canadense Margaret Atwood, a humanidade se torna infértil – e as poucas mulheres que ainda conseguem engravidar são exploradas como máquinas reprodutoras pelo Estado.