Todas as comidas do mundo combinam com pelo menos uma cerveja. Entenda a lógica - e confira 50 harmonizações imperdíveis..
Texto: Marcos Nogueira | Edição de Arte: Jorge Oliveira |
Design: Andy Faria | Imagens: Tomás Arthuzzi
Nos últimos anos, a proletária cerveja passou a circular na alta sociedade e a competir com o vinho em jantares e degustações. É o reconhecimento tardio das virtudes de uma bebida com possibilidades gastronômicas ilimitadas? Ou seria um surto de afetação que pode vir a solapar a descontração da cultura cervejeira?
O freguês que adentra o ambiente climatizado do restaurante Den Dyver, em Bruges (Bélgica), é recebido por uma hostess que gentilmente leva seu casaco a algum depósito longe da vista dos outros clientes. Ela o encaminha à mesa, que tem cadeiras de espaldar alto e está posta com guardanapos de algodão egípcio, fina prataria e taças de cristal. O menu é sucinto. No almoço, há uma opção fixa de três etapas – entrada, principal e sobremesa – que mudam periodicamente e são harmonizadas com rótulos cuidadosamente selecionados pelo sommelier da casa. A cada prato, o especialista serve uma taça, e apenas uma, de cerveja. O tartar de arenque com vagem e gelatina de maçã verde, por exemplo, é combinado com a Horal’s Oude Geuze Mega Blend, uma lambic especialíssima que no Brasil custa R$ 200 ou mais.
Para quem encara a cerveja como parceira de ocasiões descontraídas, a situação acima é tão esnobe que parece ter sido inventada. Só que ela não apenas é verdadeira (ocorreu comigo alguns anos atrás) como representa uma tendência irreversível no mercado das cervejas ditas especiais: a sofisticação crescente para aumentar o valor agregado do produto. A loira gelada que frequentava os botequins mais infectos se transformou em uma dama de classe. Ela compete com o vinho no território do rival – restaurantes finos, cursos de formação de sommeliers, conversas sobre aromas primários, secundários e terciários.
Mudaram as formas de beber e pensar a cerveja. O cervejeiro precisou aprender a degustar. Ao contrário do enófilo, ele nunca cospe as amostras. Mas isso não tem nada a ver com alguma postura irreverente, pelo contrário: é necessário engolir a cerveja para uma análise sensorial adequada. Ao engolir o líquido, percebe-se melhor seu amargor, captado mais intensamente no fundo da boca. Também se faz necessário deglutir para avaliar os aromas retronasais – o cheiro sentido ao contrário, a partir do ar que sobe da faringe até as narinas.
A busca por conhecimento se deve, em parte, à explosão do leque de opções disponíveis. Nestes tempos estranhos, é preciso se munir de noções teóricas para lidar com o balcão de um bar como o Empório Alto dos Pinheiros, em São Paulo – quando este texto foi escrito, o lugar oferecia 33 tipos de chope, mais algumas centenas de variedades de garrafas e latas. Um cliente despreparado sequer saberia por onde começar.
Quando começam a se familiarizar com o jargão – palavras como growler, nome dado ao garrafão reutilizável que os cervejeiros mais aguerridos usam para se abastecer de chope -, muitos bebedores já foram cooptados. Sem perceber, fazem parte do “meio” ou do “movimento”, termos adotados para designar a comunidade de pessoas que bebem, comem, leem, discutem e respiram cerveja.
Um estudante aplicado do conhecimento cervejeiro deve ser capaz de recitar uma ou duas dezenas de variedades de lúpulo. Também é adequado que ele saiba a temperatura de serviço e o formato correto de taça para os principais estilos da bebida. A semelhança com o comportamento dos enochatos não é acidental: foi a gangue do vinho que estabeleceu os métodos e os rituais incorporados pelos círculos de connoisseurs. A turma da cerveja apenas replicou o modelo com alterações pontuais.
A aproximação com a enofilia se percebe claramente na mudança drástica do papel que a cerveja tem à mesa. Antes desprezada por gourmets, gourmands e afins, ela passou a frequentar jantares gastronômicos. A descoberta das possibilidades de harmonização de cerveja e comida abriu um campo de conhecimento amplo e inexplorado. Um campo onde essa bebida emergente apresentou um desempenho notável, conquistando status e o respeito da nobreza enocêntrica.
Não é nenhum absurdo afirmar que a cerveja supera o vinho nesse jogo de combinação de sabores. “Todas as comidas do mundo harmonizam com pelo menos uma cerveja”, diz Garrett Oliver, responsável pelas fórmulas engarrafadas na Brooklyn Brewery e autor do livro A Mesa do Mestre-Cervejeiro. “Metade dessas comidas não vai bem com nenhum vinho – quem tomaria vinho com acarajé?”, emenda o americano, que é visitante contumaz do Brasil.
Na mais recente dessas passagens, em outubro de 2015, Oliver apresentou algumas das receitas mais criativas da cervejaria que comanda. A Bel-Air, por exemplo, é uma sour beer – cerveja ácida, cujo mosto foi inoculado com lactobacilos de iogurte – carregada de lúpulo amarillo. Graças a esse lúpulo, ela adquire potentes notas aromáticas de frutas tropicais e cítricas, notadamente maracujá e pomelo. A acidez cortante e a carbonatação são perfeitas para aliviar a sensação de peso de comidas muito gordurosas. A sofisticada Bel-Air faz par harmonioso com clássicos plebeus da culinária brasileira, como a feijoada e a moqueca – e também de outras culturas, caso do wiener schnitzel, lombinho empanado à moda austríaca.
A maior versatilidade da cerveja se deve, na visão de Garrett Oliver, à ilimitada combinação de ingredientes e processos possível na criação de uma receita cervejeira. Como resultado, a gama de aromas e sabores da bebida pronta também não tem limites. O vinho, por sua vez, é aprisionado no universo sensorial da uva. Seu perfil varia de acordo com a variedade dessa uva, com o uso de barril (ou não) e com mais meia dúzia de fatores, porém é muito mais restrito.
Por suas peculiaridades, a cerveja possui alguns trunfos igualmente únicos. Um deles é o amargor. Considerado defeito no vinho, o gosto amargo é ótimo parceiro para comidas muito apimentadas – o poder de fogo de um curry picante aniquila o sabor de qualquer vinho, mas casa como Pitt e Jolie com uma imperial IPA, outra bomba sensorial nada sutil. O equilíbrio de forças, por sinal, é um dos fundamentos da harmonização. Um peixe branco grelhado ou ao vapor pede algo de delicadeza semelhante (uma witbier, por favor!), enquanto uma carne de panela com molho ferrugem requer a potência de uma cerveja escura e forte, talvez uma ale trapista.
Outro trunfo particular da cerveja é o gás carbônico, presente em todos os estilos mais populares. A gaseificação ajuda a “limpar” o palato – não é à toa que se serve um copinho de água com gás ao lado do café expresso –, efeito que minimiza a ocorrência de combinações desastrosas.
Assim como no vinho, não existem regras invioláveis na harmonização de cerveja e comida. Ela pode ser feita tanto por semelhança (pense em cheesecake com calda de frutas vermelhas e lambic de framboesa) quanto por contraste. Neste caso, o exemplo da feijoada com a cerveja ácida ilustra a oposição entre gordura e ação detergente.
Um bom espumante também tem gás e acidez, pode argumentar um defensor do vinho. Exato, mas essa retórica esbarra em um fator alheio ao perfil de sabor de cada bebida: a cultura. Na sociedade brasileira atual, é simplesmente estranho abrir uma garrafa de vinho para tomar com feijoada. O vinho, devido a um preconceito arraigado (e à atitude antipática de uma parcela dos especialistas), remete a ocasiões com alguma formalidade. A cerveja segue sendo associada a um modo de vida mais despojado, apesar da escalada da bestice entre os beer geeks.
E quer saber mais? Bolinho de bacalhau, amendoim torrado e outros acepipes de bar harmonizam com pilsen, a favorita dos bebedores de raiz (vamos desconsiderar lúpulos tchecos e mentalizar garrafas de 600 mililitros). É apenas um detalhe, mas um detalhe relevante na resistência da cultura de boteco à gourmetização da cerveja.