A visão de arqueólogos e historiadores sobre os fatos que deram origem ao mito fundador do judaísmo: a fuga do Egito.
O Êxodo foi tema de vários filmes, mas, se você quer entender mesmo a história real por trás da fuga dos hebreus do Egito, vale lembrar de uma obra que nada tem a ver com a Bíblia: Interestelar, de 2014. Porque ele fala do mesmíssimo fenômeno que motivou migrações em massa por volta de 1200 a.C., quando Moisés teria vivido.
O filme de Christopher Nolan começa num mundo assolado por uma mudança climática. Um mundo árido, onde, em se plantando, quase nada dá. A ação acontece num futuro distante, mas o cenário não tem nada de tecnológico. O que aparece ali é uma nova Idade Média. Uma civilização colapsada. E a única esperança de sobrevivência é encontrar um outro planeta para substituir a Terra.
Fora a parte interplanetária, foi o que aconteceu há 3 mil anos. Uma mudança no clima criou uma seca de proporções bíblicas, bagunçou a história da humanidade e marcou o início daquilo que os historiadores chamam de “Primeira Idade Média” – uma era das trevas que precedeu a Antiguidade clássica, a dos gregos e dos romanos.
Pois é: houve outra Idade Média além daquela que todo mundo conhece. Como a história teima em andar em círculos, o período imediatamente anterior a essa primeira Idade Média foi justamente uma época de pujança. Um tempo em que o início do comércio marítimo e a invenção da escrita engatilharam a primeira “globalização” da história.
Era uma globalização restrita às poucas áreas civilizadas que o mundo tinha na época, claro. Estamos falando de uma mancha no mapa que ia das ilhas gregas até a foz do Tigre e do Eufrates, na Mesopotâmia, onde hoje fica o sul do Iraque. No meio, o Egito, e ali pertinho a protagonista desta nossa história: Canaã, a terra que, segundo a Bíblia, Deus tinha prometido dar aos descendentes de Abraão – o homem que daria origem aos israelitas.
Seja como for, a história real por trás do Êxodo é bem diferente da que está na Bíblia. O Livro Sagrado diz que, por volta de 1600 a.C., todos os israelitas deixaram Canaã e foram morar no Egito. Na época, “todos os israelitas” eram só um grupo de pouco mais de cem pessoas: o velho patriarca Jacó mais seus filhos, netos e as várias esposas de cada um. Jacó, de acordo com a mitologia bíblica, tinha sido rebatizado por um anjo com o nome de “Israel” (falaremos sobre a etimologia do termo mais adiante) – daí a palavra “israelita”.
Os descendentes de Jacó, segue a Bíblia, cresceram e se multiplicaram na terra dos egípcios. Tudo ia bem, até que um faraó xenófobo decide acabar com a brincadeira dos imigrantes: transforma todos os israelitas em escravos. Eles passam 400 anos debaixo de chicote, até que Moisés, um desses descendentes, liberta os israelitas, e leva todo mundo de volta para a velha Canaã, de onde o patriarca Jacó tinha saído.
Só que não. Ao contrário do que diz a Bíblia, os israelitas nunca foram escravos no Egito – pelo menos não o povo israelita inteiro. Para entender o que realmente aconteceu lá atrás, temos que conhecer melhor um mundo perdido no tempo: o Oriente Médio de 3.200 anos atrás. É para lá que vamos agora.
Potências da Idade do Bronze
O Oriente Médio fervilhava por volta de 2.000 a.C.. O leste do Mediterrâneo estava congestionado de cargueiros (a remo, mas ainda assim cargueiros). Mais para o Oriente, comerciantes subiam o rio Eufrates carregados de grãos e tecidos, e desciam com metais extraídos dos confins do mundo antigo – como a cordilheira nevada de Elburz, no Irã de hoje. Era tanto movimento que no sul da Mesopotâmia, coração da Babilônia, 90% das pessoas viviam em cidades. É quase a mesma taxa de urbanização do Estado de São Paulo (94%).
No Egito, era parecido. Mas com as cidades um pouco mais espalhadas, pululando ao longo das margens férteis do Nilo – Mênfis, Tebas, Heliópolis… Do outro lado do mar onde o rio desemboca, ficava a civilização Micênica – que daria origem à cultura grega. Ali perto, onde hoje está a Turquia, reinava o império hitita.
Essas civilizações formavam o quarteto de ferro da Idade do Bronze. E fizeram dessa época uma era de ouro da economia mundial. Começou por volta de 3000 a.C., com a invenção do próprio bronze.
Antes disso, o único metal usado em larga escala para fazer armas era o cobre. Por dois motivos: ele é abundante e tem um ponto de fusão baixo. Derrete a 1.085 ºC – o dobro da temperatura de cruzeiro de um fogão comum de hoje. Era uma quantidade de calor não muito difícil de obter com tecnologia de 5 mil anos atrás.
Mas as armas de cobre não eram tudo isso, porque esse metal é maleável e quebradiço. Até funcionava para pontas de lanças e de flechas. Mas as espadas de cobre, as primeiras que a humanidade forjava, não eram confiáveis. Rompiam-se fácil.
Só que uma hora esse problema acabou. Alguns iluminados, mundo antigo afora, foram percebendo que se você colocasse outro metal para derreter junto com o cobre ele ficava duro que nem aço – não que alguém soubesse o que era aço na época, mas você entendeu.
Esse metal mágico era o estanho. Cobre + estanho = bronze, a liga metálica que mudou o mundo. Pronto. Graças ao bronze, passaram a produzir espadas maiores, mais resistentes, mais afiadas; capacetes seguros; escudos indestrutíveis – pelo menos para os padrões da época.
Um exército com equipamentos de bronze podia subjugar facilmente um que contasse só com armas de cobre. E foi o que aconteceu mundo antigo afora. Com muito bronze e muita organização militar, babilônios, egípcios, micênicos e hititas dominaram suas vizinhanças, dando origem aos primeiros impérios de todos os tempos.
O Egito engolfou Canaã, território que hoje abriga Israel e Palestina. Na época, Canãa era só o nome de uma terra mesmo. Não havia um “império cananeu” nem nada assim.
O que tinha ali eram vários povos dividindo aquele território um pouco maior que Alagoas: jebuseus, gesuritas, jebedeus… Cada um vivendo numa cidade-estado independente, com seu próprio rei. E cada rei, agora, era um vassalo do Egito, obrigado a fornecer súditos para trabalhar como escravos nas terras faraônicas (os impérios mantinham uma larga mão de obra escravizada, de modo que boa parte de seus cidadãos pudesse se dedicar aos exércitos profissionais).
“Se um israelita, seja homem ou mulher, for vendido a você como escravo, ele será seu escravo seis anos; no sétimo você lhe dará liberdade (…). Lembre que você foi escravo no Egito, e que o senhor, nosso Deus, o tirou de lá” – Deuteronômio, capítulo 15, versículos 12 e 15.
O clima bélico trouxe outra novidade: as relações internacionais. Arqueólogos descobriram ao longo do século 20 centenas de cartas oficiais trocadas entre autoridades da época. Eram tabletes de argila que eles mandavam uns para os outros num ritmo frenético, trocando informações comerciais. Quase sempre numa língua franca, o acádio, idioma dos babilônios – provavelmente porque eles foram os inventores da escrita.
O motor do comércio era uma commodity, o estanho. Porque trata-se de um metal raro. Para cada 25 toneladas de cobre no mundo, existe só uma de estanho. Egito e Babilônia nem tinham minas de estanho em seus domínios. Então dependiam do comércio internacional para fabricar suas armas de bronze, um artigo tão indispensável quanto comida.
Micênios (gregos), hititas (turcos) e outros povos menores da época, então, vendiam estanho para as potências em troca de ouro e, principalmente, grãos – mercadoria que abundava nas margens do Nilo, do Tigre e do Eufrates.
“A importância estratégica do estanho na Idade do Bronze não era diferente da que o petróleo tem hoje”, diz a arqueóloga Carol Bell, do University College, em Londres. Na prática, era uma corrida armamentista alimentando uma certa paz. Bom para todas as partes.
Mas aí o tempo virou.
Javé é o Deus único, cultuado pelos hebreus desde a aliança com Abraão, em 1700 a.C (nota: nas Bíblias em português, o nome “Javé” geralmente é substituído por “Senhor”) .
Os israelitas cultuavam os deuses cananeus: El, Baal, Asherah… Javé provavelmente foi importado da atual Arábia Saudita por volta de 1100 a.C., e ganhou traços das personalidades de El e de Baal.
A “primeira Idade Média”
De uma hora para outra, todas as potências da Idade do Bronze entraram em decadência. Governos caíram, o comércio cessou. Populações começaram a morrer de fome. Invasões bárbaras, de povos sem pátria, viraram rotina nas fronteiras dos impérios.
O motivo para esse colapso global era um mistério até outro dia. Mas agora as coisas estão mais claras: parece ter havido uma mudança climática profunda, que gerou anos seguidos de seca. Se falta de água hoje já é o caos, imagina há 3 mil anos.
A causa para a seca? Não existem certezas aí, só hipóteses. Uma delas é a de Brandon Lee Drake, especialista em paleoclima da Universidade do Novo México. Ele detectou que houve um resfriamento súbito das águas do Mediterrâneo nessa época. “Isso pode ter limitado o fluxo de umidade para a atmosfera, reduzindo a quantidade de chuvas”, diz.
Outro pesquisador, o arqueólogo Israel Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv, jogou mais luz sobre essa questão. Em 2013, ele foi até o Mar da Galileia, no norte de Israel, e coletou amostras de lama do fundo do lago. Quanto mais fundo você cava, mais antiga a lama que você encontra.
Finkelstein foi até a camada que correspondia ao ano de 1250 a.C., com margem de erro de 40 anos, e viu algo surpreendente: a lama revelava que a vegetação estava toda esturricada naquela época. Dá para saber disso porque a camada de lama continha bem menos pólen fossilizado que o normal. Ou seja: havia menos flores para soltar pólen no lago. E, se havia menos flores, é porque a vegetação estava seca.
“Não tenho mais grãos nas minhas terras”, escreveu a rainha dos hititas para o faraó do Egito. O destinatário era Ramsés II, o provável faraó do Êxodo.
O primeiro registro de que alguma coisa estava fora da ordem no clima está gravado num daqueles tabletes diplomáticos: da rainha dos hititas para o faraó do Egito. “Não tenho mais grãos nas minhas terras”, ela informa, numa mensagem enviada justamente em 1250 a.C. O destinatário era Ramsés II, o provável faraó do Êxodo.
É aí que a história da mudança climática começa a se cruzar com a da fuga dos escravos. Na Grécia, na Turquia e no Chipre, governantes abandonaram palácios. Em Canaã, várias cidades-estado acabaram desertas. Com o caos reinando, grupos armados até a medula embarcaram para saquear o lugar mais rico que havia por perto: o Egito.
Foram várias incursões. Os egípcios acabaram pegos tão de surpresa que nem sabiam como chamar os invasores – gregos? hititas? Os documentos que sobraram para contar história chamam esse pessoal de um nome genérico: “Povos do Mar”. Eles foram para esta primeira Idade Média, que começava a se instaurar, o que os vikings seriam para a segunda.
Se a coisa já estava feia com as secas, piorou depois dos Povos do Mar. Com eles atrapalhando o tráfego no Mediterrâneo, o comércio de estanho foi para as cucuias. Resultado: o Egito ficou militarmente mais fraco, e o resto do mundo, mais faminto. Mais dois motivos para continuar invadindo o Egito.
Os militares do império, então, tiveram de largar as fortificações em Canaã, na periferia do império, para defender suas próprias cidades dos Povos do Mar. Isso mais o colapso dos reinos cananeus abriu caminho para que um desses povos tomasse um pedaço da costa da Terra Prometida, bem onde hoje fica a Faixa de Gaza, e colonizasse o lugar.
O território acabou rebatizado como “Filístia”. E eles se tornariam os filisteus da Bíblia. E não foi só para eles que a porteira de Canaã tinha se aberto. Agora chegava a hora de outro povo entrar na festa: os israelitas.
A Páscoa judaica comemora a “passagem” (pesach) do anjo da morte sobre o Egito: matando primogênitos locais, e poupando as crianças israelitas.
A Páscoa surgiu como uma festa para comemorar a colheita da primavera. Só depois passou a ser associada ao Êxodo e, bem mais tarde, à ressurreição de Cristo.
As origens do povo israelita
Os israelitas tiveram uma origem bem diferente da que está na Bíblia. Os do Livro Sagrado eram uma família quando saíram de Canaã, certo? No cativeiro egípcio, teriam se multiplicado, se tornando uma nação de fato. Os da vida real, não.
Além de nunca terem migrado para o Egito, começaram sua história não como uma família, mas como várias tribos nômades. Elas pastoreavam nas montanhas de Canaã, dormiam em tendas, e viviam de vender carne e leite para as cidades-estado do lugar. Os povos vizinhos se referiam a esses nômades às vezes como “shasu”, às vezes como “apiru” – esse pode ter dado origem ao termo “hebreu” – que mais tarde designaria o grupo étnico ao qual essas tribos pertenciam.
Por que dá para cravar que os 400 anos no Egito e a história do Êxodo são um mito? Primeiro, pela magnitude do evento. A Bíblia diz que 2 milhões de hebreus fugiram do Egito – o equivalente a 3% da população mundial da época, estimada em 70 milhões de almas. Some isso ao fato de os egípcios terem deixado sua história muito bem registrada. E não existe nada sobre essa eventual fuga. A única inscrição egípcia da Idade do Bronze que menciona a palavra “Israel” diz justamente que eles eram um povo nômade de Canaã.
Com a seca, esses nômades tinham um problema. Os pastores israelitas vendiam carne de seus cabritos e leite de suas cabras para as cidades cananeias, em troca de grãos. Mas ei: a produção agrícola não tinha ido para o espaço? Pois é.
“Agora as comunidades das terras baixas não tinham mais como suprir grãos, então eles tiveram de se assentar”, diz o arqueólogo Israel Finkelstein. A vida tinha dado um limão para os israelitas, mas eles produziram uma limonada. Deram um jeito de plantar suas hortas, levantaram casas, formaram suas primeiras vilas. E, quando a secura acabou, estavam engatilhados para montar uma nação de verdade, com fronteiras, cidades, exército.
Só tem um detalhe. Esses primeiros israelitas não acreditavam em Deus. Não no Deus da Bíblia. Eles cultuavam as mesmas divindades dos seus vizinhos cananeus: Baal, Asherá e, acima de todos, El, o Altíssimo.
O próprio nome do grupo carregava, e ainda carrega, o nome de “El”. “Israel”, segundo especialistas em hebraico antigo, quer dizer algo como “Sob o comando de El”, o que faz sentido para um grupo de pastores nômades que ainda não tinha se solidificado como uma nação – e que não tinha um soberano.
El era o chefe do panteão cananeu, uma divindade pagã. O Deus hebreu com “D” maiúsculo, que seria adotado mais tarde, é outra entidade: Javé. Só que Javé ainda não existia no mundo israelita. De onde ele viria, então? Do Êxodo.
O Mar Vermelho se abre, sob o comando de Moisés, para que o povo israelita escape da escravidão no Egito.
O mito da travessia talvez reflita, com uma dose de espetáculo, a memória de uma época de seca, em que o nível de alguns lagos baixou drasticamente.
Como o Êxodo se tornou o mito fundador de Israel
Mas, se a fuga em massa do Egito não aconteceu, o que foi o Êxodo? O consenso entre os especialistas é que algum grupo de escravos cananeus (não necessariamente hebreus), ou vários grupos, fugiram durante a crise do império egípcio e encontraram abrigo entre os israelitas em Canaã.
Esses ex-escravos teriam chegado contando histórias mirabolantes de fuga. Talvez tenham falado sobre ter atravessado a pé alguma região onde sabiam que antes havia só água – nesse caso, a teoria da mudança climática justificaria o mito da abertura do Mar Vermelho.
Seja como for, as histórias de escravizados que escaparam do Egito rumo à liberdade em Canaã acabaram entrando para o folclore do povo israelita. Em algum momento, toda aquela população passou a acreditar que todos os seus antepassados tinham vindo do Egito. A fuga da escravidão se tornaria o mito fundador do povo judeu (termo que vem de “Judá”, nome de uma das tribos israelitas).
Richard Freedman, historiador da Universidade da Califórnia, e especialista em Velho Testamento, vai mais longe. Ele imagina que o grupo vindo do Egito teria um papel bem mais central que o de meros contadores de histórias mirabolantes. Eles se tornariam os principais autores da Bíblia.
Para entender a teoria dele, precisamos lembrar que os pastores israelitas não formavam exatamente uma nação, mas uma união de famílias extendidas. Cada uma dessas grandes famílias, com suas centenas de membros, formava uma tribo. Ok. Cada tribo era tida como descendente de um dos filhos de Jacó . Segundo a Bíblia, então, os israelitas do Egito já estavam divididos nesses clãs. O consenso entre os historiadores, porém, é que o grupo tenha criado a história de uma ancestralidade comum para unir seus laços.
O número de tribos segue a lógica torta dos Três Mosqueteiros, que eram quatro. A tradição sempre fala em 12 tribos. Mas eram 13. E o Dartagnan das tribos israelitas, assim como acontece no livro de Alexandre Dumas, era justamente a mais importante, pelo menos do ponto de vista religioso: a tribo de Levi, a dos sacerdotes, que provavelmente escreveram a maior parte da Bíblia.
As tábuas dos 10 Mandamentos foram ditadas por Javé para Moisés. Elas mais as 613 leis da Bíblia.
O código de leis dos israelitas, finalizado no século 5 a.C., é herança dos babilônios, que tinham feito a primeira “Constituição” da Terra, em 1700 a.C.
Os sacerdotes que escreveram a Bíblia
Os levitas não contavam como tribo (apesar de serem chamados de “tribo”) porque não tinham um território próprio. Como formavam a classe dos sacerdotes, viviam espalhados por todas as outras tribo. Segundo a Bíblia, Levi era um dos filhos de Jacó.
Independentemente do fato de Jacó ter ou não existido na vida real, isso significaria que os levitas sempre estiveram entre os israelitas. Só que uma leitura mais atenta do Livro Sagrado coloca um caroço nesse angu: o trecho mais antigo da Bíblia toda é a Canção de Débora (Juízes, 5), um poema composto por volta de 1100 a.C. Ele cita dez tribos de Israel, não 13. E a ausência mais marcante é a dos levitas, dada a importância do grupo. Para Friedman, a justificativa da ausência é simples: “‘É que os levitas ainda não estavam em Israel. Quando a Canção de Débora foi escrita, eles eram escravos no Egito”.
Outra evidência a favor dessa tese é que só a tribo dos levitas tem membros com nomes egípcios: Fineias, Hofni, Moisés…
Sim, Moisés é retratado na Bíblia como um membro da tribo dos levitas. Pelo ponto de vista de Friedman, isso acontece porque os trechos da Bíblia que falam sobre Moisés só foram escritos séculos depois dos eventos que citamos aqui, quando os ex-escravizados já tinham formado a tribo dos levitas. Então nada mais natural que descrever Moisés, o salvador, como membro dessa tribo na hora de colocar a história no papel.
Na Bíblia, o jovem Moisés matou um egípcio que estava batendo num hebreu. Para evitar represálias, ele foge do Egito e migra para Midian, uma região ao sul de Canaã, onde hoje fica a Arábia Saudita. Aí casa com uma midianita e passa a vida criando cabras por lá mesmo. A vida inteira, praticamente. No relato bíblico, Deus só convoca Moisés para tirar os escravos do Egito quando ele já está com 80 anos.
Mas o que interessa aqui é outro ponto: a preocupação do texto em relacioná-lo com a região de Midian. É que os textos mais antigos da Bíblia não revelam apenas a ausência dos levitas no início da história de Israel. Eles também dizem que Javé é um deus que veio do Sul. Das vizinhanças de Midian.
Para Friedman, isso indica que Javé era o deus do povo de Midian antes de se tornar o do povo de Israel. E que quem trouxe para os israelitas a cultura de acreditar nessa divindade foram justamente os levitas.
A hipótese é que, na vida real, algum grupo que tinha fugido do Egito fez uma escala em Midian. Uma parada de alguns anos, talvez, na qual teriam incorporado a religião do lugar. Então teriam atribuído ao deus midianita, Javé, a graça por terem conseguido escapar do cativeiro. Depois rumaram para o Norte, chegando aos domínios israelitas.
Uma vez ali, como vimos aqui, eles assumiram o comando da religião. E transformaram os hebreus em seguidores de Javé – extirpando El e os outros deuses cananeus das crenças israelitas. “Os hebreus podiam ter inventado que Javé era filho de El, ou algo assim. Mas não: por algum motivo, preferiram assumir que os dois eram a mesma entidade”, diz Friedman.
E assim ficou na Bíblia: deus é chamado alternadamente de “El” (ou Elohim, uma derivação) e de “Javé” no Livro Sagrado. Mas essa dupla personalidade divina acontece só até a primeira conversa de Deus com Moisés. O Senhor diz a ele que seu nome é Javé, e ponto final. E é assim que Deus segue sendo chamado no restante da Bíblia. Pela teoria de Friedman, essa linha do tempo do Livro Sagrado (escrita séculos mais tarde dos eventos que descrevemos aqui) reflete o fato de que os israelitas só passaram a conhecer Javé depois da chegada dos levitas.
Levitas que, mais tarde, fariam as leis que estão no Velho Testamento – e que vão bem mais longe do que os Dez Mandamentos. O código legal dos hebreus tem 613 leis.
No fundo, os levitas se tornaram os organizadores da nova nação, que daria origem aos reinos de Israel e Judá. Uma nação que começou pequena, pastoril, sempre espremida entre grandes potências. Com todos os ingredientes para ter se tornado irrelevante. Mas que soube contar histórias extraordinárias, e, com elas, criou o monoteísmo.