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A morte pede carona

Conheça a intrincada logística do transporte aéreo de cadáveres. E veja o que acontece se alguém morrer num cruzeiro.

Texto: Guilherme Eler | Ilustração: Denis Freitas | Design: Yasmin Ayumi | Edição: Ana Carolina Leonardi


Reportagem originalmente publicada em 2019

Violoncelo importado. Cachorrinho de raça. Fígado para doação. Caixão funerário com um corpo embalsamado dentro. O porão de uma aeronave está acostumado a receber cargas bem mais inusitadas do que as suas malas cheias de compras de férias.

Segundo dados da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), 470 mil toneladas de cargas cruzaram o Brasil a bordo de aviões comuns só em 2018. Parte desse total era de cargas vivas – a Latam, principal empresa nacional do setor, diz transportar 1.720 animais em rotas domésticas e internacionais todo mês. Outra parte, menor, era de cargas mortas. Literalmente.

Se você viaja de avião com frequência, há chances de que já tenha dividido o veículo com um cadáver (ou partes dele) até seu destino final. Voos domésticos, afinal, são uma maneira comum de fazer o translado de corpos, cinzas, urnas funerárias e ossadas por longas distâncias.

A Latam, que é responsável por 27% do setor de cargas no Brasil, transportou, em média, 104 esquifes – nome técnico de cargas funerárias como caixões ou ossadas – por mês em 2018. Isso quer dizer que há pelo menos três aviões partindo de aeroportos brasileiros com restos mortais na bagagem diariamente – sem contar os voos feitos por Gol e Avianca, companhias que também prestam o serviço, mas preferiram não divulgar seus números. Em maio de 2019, cerca de 2,4 mil aviões comuns decolaram por dia em aeroportos de todo o País.

Corpos são objetos caros de transportar. Suponhamos que uma pessoa tenha morrido em São Paulo, mas precise ser enterrada no Rio. Fretar um avião particular que faça o trajeto custa, no mínimo, R$ 80 mil. Por isso, a maioria dos cadáveres faz a mesma ponte aérea que os vivos, nos aviões tradicionais.

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Para enviar um caixão do Aeroporto de Guarulhos até o do Galeão, na capital carioca, o preço médio é de R$ 4 mil – o valor final vai variar de acordo com o peso do defunto, por exemplo.

Um terço dessa grana fica com as empresas aéreas. O restante vai para as companhias funerárias, que assumem o trabalho de buscar o corpo, prepará-lo da forma adequada e conduzi-lo ao terminal de cargas – onde é placidamente acomodado ao lado das bagagens comuns.

Ilustração da figura da Morte sentada entre dois passageiros em um avião

Burocracia póstuma

O transporte de restos mortais não é como um serviço de frete qualquer – tem regras próprias. “A exigência no caso das aeronaves é rigorosa”,  diz Paulo Coelho, presidente da ABT (Associação Brasileira de Tanatopraxia).

Chama-se “tanatopraxia” a preparação de um corpo sem vida para o transporte, velório e sepultamento. A técnica exigida nos voos é o embalsamamento. Replicada desde a civilização egípcia, é nada menos que a troca de fluidos naturais do corpo por substâncias que auxiliam na preservação, como o formol diluído em água. O corpo não desidrata, e o processo de putrefação desacelera. Fazendo a preparação correta, garante-se que o cadáver permaneça intacto por 15 dias.

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“Após o óbito, modificações de aparência e odor aparecem em menos de oito horas”, diz Coelho. “Se não houvesse a conservação do corpo, poderia haver extravasamento de fluidos corpóreos, gases e exalação de odores, contaminando todo o ambiente.” Ainda assim, o caixão que voa de avião precisa estar envolto em uma urna de proteção específica.

Uma urna funerária que não foi vedada corretamente pode trazer dor de cabeça aos passageiros vivos. Um episódio do tipo aconteceu no Brasil em 2011, quando restos mortais e formol contaminaram 25 bagagens de um voo da Gol vindo de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. O formol pode provocar irritações e queimaduras quando entra em contato com a pele – o que obrigou a companhia a desinfectar as cargas antes de devolvê-las aos usuários.

104 é o número de caixões (ou urnas funerárias) que a Latam transportou por mês, em média, em 2018.

Desde 2011, quando a lei para transporte de cargas funerárias mudou pela última vez, a Anvisa, órgão brasileiro de vigilância sanitária, não controla a presença de cadáveres em aviões. Segundo o órgão, só são feitas inspeções “em casos de emergência em saúde pública ou situações que possam significar algum risco à saúde da população”. Defuntos que faleceram por causa de doenças contagiosas ou contaminados por radioatividade, por exemplo, não podem voar.

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(Yasmin Ayumi/Superinteressante)

 

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Quando a morte não viaja no porão de cargas, mas decide ocupar uma poltrona na cabine, no entanto, a operação se torna um pouco mais complexa.

Pessoas que embarcam vivas eventualmente morrem durante viagens de avião, é claro. Neste exato momento, 1 milhão de vidas estão cruzando o planeta a bordo de aviões. É inevitável que, em algum momento, alguém passe mal, entre em trabalho de parto… Ou vá desta para uma melhor. É bom destacar que esse é um evento raro. Um estudo de 2013, publicado no New England Journal of Medicine, analisou 12 mil emergências médicas aéreas em voos americanos, e só encontrou mortes de passageiros em 36 desses casos – ou seja, uma proporção de 0,3% da amostra.

Quando esses incidentes acontecem, companhias de aviação podem, não à toa, acabar recorrendo a soluções inusitadas. A British Airlines, por exemplo, foi acusada em 2007 de utilizar assentos de primeira classe para armazenar cadáveres. Aviões da Singapore Airlines contam com um compartimento discreto próximo às saídas de emergência, usado para o mesmo fim.

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Segundo a Iata (Agência Internacional de Transportes Aéreos), o procedimento correto é acomodar o falecido sentado ao lado de uma poltrona desocupada. Caso o voo esteja lotado, a orientação é manter a pessoa no seu próprio assento – desde que não obstrua corredores e saídas de emergência.

“Você nunca deve guardar um corpo no banheiro”, explica um funcionário da British Airlines em um documentário da BBC, de 2014. Viagens de avião, quando muito extensas, costumam durar 12, 15 horas. Mas e se o passageiro falecer num navio de cruzeiro, que pode passar dias a fio longe da costa?

Ilustração da Morte tomando sol e um drink no deck de um cruzeiro

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O último cruzeiro?

Cruzeiros são verdadeiras cidades flutuantes: todos carregam toneladas de suprimentos, alguns dessalinizam a própria água para consumo, e muitos possuem até celas de detenção provisória, em meio às estruturas de lazer e acomodações dos passageiros. Há também um necrotério, com câmaras frias prontas para guardar corpos de passageiros que falecem no meio do passeio.

Não existe um levantamento brasileiro – nem mundial – de quantas mortes ocorrem em cruzeiros. E as companhias ou associações do setor também preferem não falar sobre isso. “Para eles, não é bom negócio discutir o fato de que a maioria – se não todos – os navios contam com uma câmara mortuária (que, às vezes, fica lotada)”, diz Ross Klein, professor da Memorial Newfoundland University, no Canadá, e especialista na indústria de cruzeiros. “Isso não se encaixa na imagem de diversão que eles desejam associada às férias que estão vendendo.”

3 óbitos por semana acontecem em cruzeiros do mundo todo, segundo o site Cruise Ship Critic.

Existem sites que tentam manter uma lista atualizada do número de mortes por todo o mundo, compilando notícias de casos desse tipo. A estimativa mais confiável, no entanto, vem do Cruise Ship Critic, guia do Trip Advisor, que estima três mortes por semana em cruzeiros do mundo todo. “Depende da empresa. Algumas, como a Holland America [nos EUA], que possuem uma clientela com mais idade, provavelmente têm mais que isso”, diz Klein.

O fato é que viagens de cruzeiro costumam ser, via de regra, um programa para os mais velhos. Dados do Brasil mostram que quase um terço dos passageiros de cruzeiro (32,1%) tem mais de 55 anos. As viagens de cruzeiro nacionais costumam durar, em média, 5,9 dias. Tempo mais que suficiente para que a existência de um corpo a bordo mobilize uma verdadeira operação logística.

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(Yasmin Ayumi/Superinteressante)

Nenhum passageiro, além dos familiares da vítima, fica sabendo do óbito. Assim que a equipe médica do navio comprova a morte, o corpo segue para um compartimento refrigerado. Essa cabine mortuária fica em uma parte da embarcação restrita a funcionários, e é esvaziada assim que o navio chega ao próximo porto – qualquer que ele seja.

Não há como fazer escalas extras, alterar a rota original, ou esperar pela parada mais conveniente.  Se o enterro vai acontecer no Rio de Janeiro, mas a parada seguinte do navio é em Buenos Aires, o corpo desce e faz o percurso de avião – mesmo que o destino final do cruzeiro seja o próprio Rio.

Apesar de toda a estrutura preparada para  simplificar o processo, uma morte em alto-mar pode ser traumática, também, para o bolso dos parentes do falecido. Todas as despesas ficam por conta da família, que precisa se encarregar da papelada referente ao óbito e de todos os custos do transporte do defunto para o local do enterro – essa sim, a viagem final do passageiro.

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