Texto originalmente publicado pela Super em 2014
John Kennedy tinha um brinquedo novo. Quando os convidados chegaram, o presidente apertou um botão escondido na lateral de sua mesa, acionando um microfone ali no Salão Oval e um gravador no porão da Casa Branca. Era a estreia de uma engenhoca secreta que registrou 260 horas de conversas sigilosas.
Olha que coincidência: a primeira gravação é sobre o Brasil. Das 11h52 às 12h20 de 30 de julho de 1962, debateu-se o futuro e a fritura do presidente João Goulart. O embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, disse que Jango estava “dando a porcaria do país de graça para os…” “…comunistas”, completou Kennedy. O assessor Richard Goodwin ressaltou: “podemos muito bem querer que os militares brasileiros tomem o poder no final do ano”. Isso quase dois anos antes do Golpe de 64.
Desde 1961, com a chocante renúncia de Jânio Quadros e a conturbada posse de Jango, as reuniões de Kennedy sobre nosso país eram monotemáticas: como impedir que o Brasil se tornasse uma gigantesca Cuba? Apesar disso, Lincoln Gordon, embaixador no Rio entre 1961 e 66, morreu em 2009, aos 96 anos, negando que os americanos teriam participado do golpe.
Durante e após a ditadura, que foi até 1985, muitos pesquisadores brasileiros menosprezaram o papel dos americanos, tachando investigações nesse sentido de paranoia e teoria da conspiração. Mas documentos revelados nos últimos anos contam uma história diferente, que vai sendo revelada aos poucos.
As reuniões de Kennedy sobre o Brasil eram monotemáticas: como impedir que nos tornássemos uma uma gigantesca Cuba?
Parte desse material ganhou destaque no documentário O Dia que Durou 21 Anos, da dupla de filho e pai Camillo e Flávio Tavares – autor de um grande livro sobre a luta contra o regime, Memórias do Esquecimento. O filme apresenta gravações e documentos oficiais e expõe justamente a articulação do governo americano e dos militares brasileiros contra Jango. E ainda há muito a ser revelado: Carlos Fico, historiador da UFRJ, estima que mesmo com a Lei de Acesso à Informação ainda não se analisou nem 20% dos arquivos dos órgãos de repressão brasileiros.
De qualquer forma, as informações disponíveis já permitem cravar: Jango caiu com um empurrão dos Estados Unidos. O governo americano instigou os militares, financiou a oposição, boicotou a economia e tinha tropas e navios prontos se fosse necessário intervir. Não foi. Em boa parte, graças ao próprio João Goulart, um presidente que até hoje desafia classificação.
JANGO
O vice-presidente João Goulart soube da renúncia do presidente Jânio Quadros após uma viagem oficial à China, durante uma missão extraconjugal em Cingapura. Em 2018, após 33 anos de democracia, seria uma surpresa se o vice não assumisse, seja quem for e esteja onde estiver.
Em 1961, a regra não era tão clara. Aliás, era feita para confundir: havia eleição para presidente e também para vice. Os vencedores podiam ser de campos opostos. E, em 1960, foram: Jânio era um salvador-da-pátria de direita, Jango um para-raios de todas as tempestades à esquerda. Quando o presidente deixou o campo após sete meses, seu reserva era de outro time. E o árbitro – nesse caso, as Forças Armadas – não quis que o reserva entrasse.
Jango foi defendido em seu estado natal, o Rio Grande do Sul, onde o governador (e seu cunhado) Leonel Brizola criou a Campanha da Legalidade para impor sua posse. Com a nação à beira da guerra civil, aceitou ser presidente em um regime parlamentarista. Ganhou o cargo, mas não o poder.
Mesmo enfraquecido, ele assustava Kennedy, que o recebeu em abril de 1962. A primeira-dama Maria Thereza Goulart, rival à altura de Jacqueline Kennedy, encantou Washington, mas os EUA mantiveram dois pés atrás com Jango. Para os americanos, ele era um radical livre. Além de manter boas relações com Cuba, defendia impostos pesados e até a expropriação de empresas americanas no Brasil. Os relatos de Gordon sugeriam que ele se tratava de uma marionete de Moscou.
Em janeiro de 1963, a 14 meses do golpe, Jango recuperou os poderes presidenciais: 91% votaram contra o parlamentarismo em um plebiscito. O pleito tinha sido convocado por ele, o que os americanos compararam a “uma jogada de Garrincha, um jogador de futebol que corre grandes riscos esperando obter grandes ganhos”.
Mas ser contra o parlamentarismo não significava ser a favor de Jango. Sim, ele contava com o apoio dos pobres: uma pesquisa do Ibope às vésperas do golpe e não divulgada na época mostrava uma aprovação de 86% entre as classes baixas de São Paulo. Mas um levantamento do oposicionista Aníbal Teixeira no mesmo período mostrava que o golpe era apoiado por 80% do exército, 72% dos empresários, 66% do clero e 58% dos estudantes. Na imprensa, tinha fama de indeciso e incompetente. Havia a suspeita de que ele planejava realizar seu próprio golpe, com o apoio da esquerda.
Jango estava encurralado, e muito por culpa dele mesmo. A história seria diferente se ele tivesse apoio dos americanos? Ou dos militares brasileiros? Se bem que aí é especular demais. O alinhamento desses dois grupos não teve início nesse golpe nacional, mas muito antes, em uma guerra mundial.