A era dos titãs voadores, como o 747 e o A380, pode estar chegando ao fim. Eles ainda serão vistos nos céus por algum tempo, mas não sairão mais das fábricas. O foco da indústria está nas aeronaves flexíveis, econômicas e capazes de ir mais longe.
Texto: Emanuel Neves | Edição de Arte: Inara Pacheco | Design: Andy Faria
Um canguru dos grandes chega a medir 2 metros de comprimento, entre o nariz e a ponta da cauda. Se for um Macropus giganteus, conhecido como canguru-cinza-oriental, essa distância pode alcançar quase 3 metros. Em 22 de julho de 2020, porém, controladores aéreos avistaram um canguru de 275 quilômetros sobre o Mar da Tasmânia, entre a Austrália e a Nova Zelândia. A silhueta do marsupial foi aparecendo aos poucos nos radares, logo após o voo VH-OEJ decolar do Aeroporto Internacional de Sydney.
O Boeing 747-400 demorou 90 minutos para delinear a rota em formato de canguru, uma alusão ao logotipo da companhia aérea australiana Qantas. Depois de arrematar o contorno das patas, o jumbo cumpriu sua missão derradeira: cruzou o Oceano Pacífico em direção ao deserto de Mojave, na Califórnia. Lá, seus motores se desligaram pela última vez. E sua fuselagem foi acomodada nas fileiras silenciosas de um dos maiores cemitérios de aviões do mundo.
Daqui em diante, cada vez mais jumbos devem pendurar as turbinas. O voo comemorativo da Qantas marcou a aposentadoria de sua frota de 747, iniciada há 49 anos. Uma semana antes, a British Airways comunicou que não irá mais transportar passageiros na Rainha dos Céus, como o modelo é conhecido. As companhias americanas não contam com esses jatos desde 2017.
Apenas os modelos de carga ainda operam por lá. Além do gigante da Boeing, outro monarca dos ares igualmente começa a sair de cena. A Air France se despediu do A380, da Airbus, em julho. Já a alemã Lufthansa devolveu seis superjumbos à fabricante europeia no início do ano, alegando baixa lucratividade. A própria Qantas cancelou, em fevereiro, seu último pedido do Rei dos Céus.
Maior compradora do A380, a Emirates substituiu parte das encomendas por jatos mais eficientes – como o A330neo e o A350 XWB. Ambos também são widebodies (modelos de fuselagem larga, com até três fileiras de poltronas), mas usam dois, e não quatro motores como o A380. Isso significa menor gasto de manutenção e de combustível, com autonomia de voo semelhante à dos gigantes.
A combinação os torna mais rentáveis e flexíveis. Eles podem ser utilizados sem prejuízo em rotas com menor demanda de passageiros. Jumbos precisam decolar quase sempre cheios para não se tornarem deficitários. Aviões considerados médios também. Mas a tarefa de ocupá-los é bem mais fácil.
O redirecionamento da Emirates levou a Airbus a anunciar, em 2019, o fim da produção do A380. As últimas unidades serão entregues até 2021. A Boeing relutou em confirmar o encerramento do programa 747, inaugurado em 1965. Mas o anúncio oficial veio em 29 de julho. “O mercado simplesmente não suportará níveis maiores de produção neste momento. Temos de nos adaptar”, disse Dave Calhoun, presidente da Boeing, em carta enviada aos funcionários. Ainda restam pedidos do cargueiro 747-8. Serão os últimos da dinastia.
O comunicado confirmou os temores de fãs da aviação e as previsões feitas por especialistas havia alguns anos. “Infelizmente, os jumbos foram vítimas da mudança de estratégia das companhias aéreas”, diz John Grant, diretor da consultoria americana JG Aviation Consultants.
Essa transformação se deve a dois fatores: a mudança no conceito das viagens internacionais e o surgimento de aeronaves que implementaram um novo paradigma de eficiência no mercado. Os jumbos, dessa forma, se tornaram grandes e caros demais para as companhias. Na prática, eles sempre foram.
Modelo ostentação
O 747-100, primeiro avião da série, foi apresentado em setembro de 1968. Era o maior jato de passageiros já feito. A cabine de 6,1 metros de largura comportava até 490 poltronas, distribuídas em três fileiras. Até então, o principal modelo da Boeing era o 707-320, que transportava até 189 pessoas em sua cabine de 3,5 metros de largura.
A empreitada do 747 envolveu 5 mil engenheiros, demandou 50 mil operários e fez a Boeing contrair dívidas equivalentes a US$ 20 bilhões em valores atuais. Para montar a aeronave, a empresa construiu uma fábrica do tamanho de 56 campos de futebol, em Everett, no Estado de Washington. O edifício, ainda hoje, é o maior do mundo em volume.
O 747 surgiu porque a americana Panam queria um avião com o dobro da capacidade do 707 para desafogar o crescente tráfego dos aeroportos. A aeronave se tornou um ícone de uma era de glamour, quando as companhias transportavam um público seleto. Muitas delas montaram áreas de convivência para a primeira classe no andar de cima dos jumbos.
A American Airlines tinha até um piano-bar sob a famosa corcunda do 747. “Os jumbos se encaixavam naquele momento de alta, em que as empresas buscavam ganhar fatias de mercado. Mas hoje estamos num cenário de sobrevivência”, analisa Martha Torres, sócia da L.E.K. Consultoria.
A Boeing vendeu cerca de 1.550 exemplares do jumbo ao longo de meio século. Um terço deles ainda está em atividade. Caçula da família, o 747-800 foi lançado em 2010 e teve apenas 137 pedidos. Estima-se que a empresa tenha obtido prejuízo de US$ 40 milhões para cada 747 fabricado desde 2016, quando a produção se resumiu a seis jatos por ano.
Mas essa derrocada começou a se desenhar ainda na década de 1990, com a evolução dos bimotores. No passado, aviões assim não podiam voar a mais de 60 minutos de distância de um aeroporto alternativo. Era uma norma de segurança para o caso de um dos motores pifar. A medida é conhecida como ETOPS, sigla em inglês para Operação Estendida com Dois Motores.
Em 1988, a independência de alguns bimotores já alcançava 180 minutos. Isso praticamente igualava a maleabilidade de rotas dos quadrimotores. De lá para cá, a tecnologia não parou. O A350 XWB, lançado em 2013, tem ETOPS de 6h10min. Significa que ele pode voar até 4,7 mil quilômetros com apenas um motor. Isso o credencia para atender praticamente todas as rotas existentes. E levando, em média, 315 pessoas – quase tanta gente quanto os jumbos.
Os motores também cresceram em tamanho e potência. Um par deles já é suficiente para sustentar jatos de grande porte – como o 777, o maior bimotor do mundo, que comporta até 550 lugares. A ascensão dos bimotores se consolidou no final dos anos 2000, ajudando a modificar o perfil dos voos internacionais.
Aposta ousada
As rivais Boeing e Airbus chegaram a estudar a possibilidade de desenvolver um avião de grande porte em parceria nos anos 1990. “Nessa época, o conceito de concentrar os passageiros em um hub e distribuí-los para vários destinos era muito forte. Mas a melhoria dos aviões de duas turbinas impulsionou os voos ponto a ponto”, explica o advogado Ricardo Fenelon, ex-diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Um voo point-to-point liga duas cidades que não têm um tráfego tão intenso quanto o dos grandes centros. Rotas assim se justificam a partir do uso de aeronaves flexíveis e econômicas, que possam operar com capacidade média de passageiros.
A Boeing entendeu que, cada vez mais, as pessoas iriam preferir o point-to-point, já que não precisariam fazer escalas. Por isso, desistiu da empreitada e resolveu apostar no programa do 787 Dreamliner. Afinal, a empresa já tinha o 747 para servir os hubs. A Airbus, não. O grupo europeu precisava de um jato para competir nesse segmento e abraçou a quimera de construir não um jumbo, mas um superjumbo para chamar de seu.
O projeto do A380 se arrastou por 12 anos e sugou 18 bilhões de euros em investimentos. Lançado em 2007, o colosso de dois andares completos, com capacidade máxima de 870 lugares, roubou o posto de maioral do 747.
O topo do pódio dos titãs teve um significado especial para a Airbus. E isso despertou a atenção da Emirates. O gigantismo do superjumbo combinava com a ostentação e as demandas do hub de Dubai. Tanto que o A380 virou sinônimo da qualidade e do requinte da companhia dos Emirados Árabes, acostumada a transportar passageiros com alto poder aquisitivo.
A Emirates instalou camas, lounges, bar e até spas com chuveiros em alguns A380. Ao todo, comprou 123 das 315 unidades produzidas até hoje. Mas não evitou o fracasso comercial do modelo. A Airbus projetava vender ao menos 400 unidades para cobrir os custos. Surgida no mesmo ano, a família 787 Dreamliner já soma mais de 1.460 pedidos, embalados pela efervescência das rotas point-to-point e pelas inovações da aeronave.
A era da eficácia
O 787 é feito com 50% de materiais compostos, como CFRP (plástico reforçado com fibra de carbono). Isso torna o jato mais leve, silencioso e menos poluente. A economia, o alcance e a boa capacidade permitiram que companhias menores começassem a operar em rotas internacionais, reconfigurando o setor. O A350 XWB, produzido como uma resposta da Airbus, tem um conceito semelhante. Chega a ser 25% mais econômico do que aeronaves da geração anterior, como o 777-300 ER.
O modelo também aposentou o A340, outro quadrimotor da Airbus. A Delta Airlines, uma das últimas companhias americanas a abandonar os jumbos, substituiu seus 747 pelos A350. Tanto o Dreamliner quanto o XWB têm alcance muito parecido ao do 747 e do A380 – cerca de 15 mil quilômetros. Além disso, gastam menos combustível e é mais fácil de enchê-los de passageiros. Vantagens assim são ainda mais importantes durante as crises, como a vivenciada agora com a pandemia do novo coronavírus.
Em junho, 91% dos 747 e 97% dos A380 existentes no mundo estavam estacionados, segundo o banco Credit Suisse. E a equação dos jumbos ficará cada vez mais complicada de fechar. Isso porque os destinos internacionais serão os últimos a se recuperar do baque ocasionado pela pandemia.
A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, na sigla em inglês) prevê que esse mercado só retorne aos níveis de 2019 por volta de 2023. “A atenção das companhias vai estar voltada para a recuperação, com as rotas locais sendo mais importantes do que as internacionais”, justifica Maurício França, da consultoria L.E.K.
Maratona aérea
Apesar do foco em distâncias curtas, algumas companhias querem ir mais longe do que nunca. É o caso da Qantas. Com seus hubs distantes da Europa e do leste dos EUA, a empresa australiana precisa diminuir a lotação dos jatos para conseguir cobrir rotas muito longas sem precisar de escalas. Essa estratégia deixa a aeronave mais leve e com menor queima de combustível.
Agora, a Qantas estuda uma forma de tornar voos assim mais sustentáveis e com uma melhor experiência para os passageiros, que passam quase 20 horas confinados na cabine. Nesse sentido, a empresa lançou o Projeto Sunrise com o intuito de estimular as fabricantes a melhorar seus modelos de ultralongo alcance.
Já existem alguns em atividade. A Singapore Airlines utiliza um A350-900 ULR adaptado, com 90 lugares a menos e queima de combustível 25% menor, para traçar os 15 mil quilômetros entre Singapura e Nova York – a maior rota existente hoje em dia.
De olho no Sunrise, a Airbus prepara uma versão melhorada do A350-1000, capaz de chegar a 16 mil quilômetros. Já a Boeing está trabalhando nos modelos 777-8 e 777-9 (chamado de Projeto 777-X) para alcançar a mesma distância e entrar nessa maratona aérea. Ainda assim, continua sendo pouco para a Qantas.
Um voo de Londres a Auckland se estende por mais de 18 mil quilômetros. “Esse é um nicho muito específico, que serve a poucas rotas. A rigor, temos uma grande indefinição sobre os rumos do mercado daqui em diante”, pondera John Grant, da JG Aviation Consultants.
O momento de incertezas torna difícil cravar a própria aposentadoria definitiva dos jumbos. A Emirates quer voar com os A380 até 2035, no mínimo. “Pode ser precipitado dizer que os jumbos não serão mais úteis, pois o cenário pode se transformar outra vez no futuro”, conclui Ricardo Fenelon. Talvez ainda possamos presenciar o renascimento dos gigantes.