Nas duas últimas décadas, a cabala deixou de ser um privilégio de poucos e ganhou o mundo. Mas será que as lições pregadas pelos novos cabalistas são as mesmas ensinadas pelos sábios judeus nos porões da Idade Média?
Texto: Thaís Cavalheiro | Edição de Arte: Alessandra Kalko | Design: Andy Faria
cabala está na moda. Nas livrarias, best sellers prometem curar doenças usando letras hebraicas, mudar sua vida por meio de rituais cabalísticos ou descobrir o significado do seu nome usando a numerologia judaica. Em revistas e programas de televisão, celebridades anunciam que aderiram à onda: Madonna conta aos jornalistas que a cabala mudou sua vida; Winona Ryder é vista usando uma pulseira de lã vermelha, o amuleto cabalístico que espanta o mau-olhado; Ashton Kutcher posa feliz ao lado de Yehuda Berg, diretor de um centro de estudos da cabala em Los Angeles.
Na internet, sites oferecem produtos como o Kabbalah Energy Drink, que garantiria energia para enfrentar todos os obstáculos do dia a dia. Em lojinhas nos shoppings, dá para encontrar desde Árvores da Vida de madeira até pingentes com letras em hebraico talhadas em ouro.
Nunca, em toda a história, a cabala foi estudada e discutida por tanta gente, em tantos lugares diferentes. Na visão de alguns cabalistas, isso é motivo de comemoração, já que os ensinamentos cabalísticos, para eles uma fonte de autoconhecimento e bem-estar, estariam finalmente ao alcance de todos. Para outros, causa preocupação: segundo os mais conservadores, essa “nova cabala” seria uma diluição perigosa de textos complexos, que só poderiam ser entendidos depois de muito estudo, com o auxílio de um mestre.
A discussão, na verdade, é antiga. Há séculos, estudiosos e leigos tentam responder a uma simples pergunta: afinal, a cabala é um conjunto de ensinamentos sofisticados que só pode ser estudado e entendido por um grupo seleto de sábios, ou uma sabedoria universal, que pode e deve ser divulgada para o maior número de pessoas possível?
A história parece apontar para a primeira alternativa, já que, durante séculos a fio, o acesso à cabala ficou restrito a algumas dezenas de pessoas, quase sempre judeus com mais de 40 anos e amplos conhecimentos da tradição religiosa. Mesmo assim, não foram poucos os que se esforçaram para acabar com essas proibições e tornar essa corrente mística mais acessível ao público leigo.
Faz sentido que, no início, a cabala fosse mesmo para poucos. Afinal, quem estivesse interessado no misticismo judeu deveria, para começo de conversa, dominar o aramaico, língua usada no Sefer Yitizirah e no Zohar, as duas obras fundamentais da cabala. Além disso, teria que estudar a guematria, complicadíssimo sistema que associa letras e números, essencial para decodificar os segredos contidos na Torá, a bíblia judaica. E ainda ter um mínimo conhecimento das tradições do judaísmo, para entender os símbolos e as metáforas contidos nesses 3 livros.
Dos porões à internet
O primeiro movimento no sentido de uma popularização foi a publicação, no século 16, da primeira versão impressa do Zohar, antes disponível apenas em brochuras. Com o livro sagrado na mão, dois rabinos tratariam de difundir os ensinamentos do misticismo: tanto Moisés Cordovero quanto Isaac Luria contribuíram decisivamente para divulgar a cabala além dos círculos ortodoxos judaicos. No século 18, foi a vez de o rabino Baal Shem Tov fundar o judaísmo hassídico, que incorporou uma forma mais simplificada da cabala.
Claro, nada disso se compara ao que aconteceria no século 20. Com a tradução do Zohar, primeiro para o hebraico e depois para o inglês, os ensinamentos ganharam o mundo. Logo, seria possível ler trechos do livro sagrado na internet – onde também pipocavam sites com cursos e aplicações práticas da cabala. Nos anos 80, surgiria o maior empreendimento dedicado à cabala: o Kabbalah Centre International, criação da família Berg.
Tudo começou com uma simples unidade, em 1984, em Los Angeles. Aos poucos, porém, o centro foi ganhando notoriedade, com a adesão de celebridades como Madonna e David Beckham. Hoje, a organização comandada pelos irmãos Yehuda e Michael Berg conta com 50 centros espalhados pelo planeta (dois deles no Brasil) e 3 milhões de alunos em todo o mundo.
SABEDORIA UNIVERSAL
Esses números fariam os patriarcas hebreus e os cabalistas medievais se revirar na tumba – afinal, para eles, o segredo era a alma do negócio. Mas será que a cabala tão divulgada hoje é a mesma estudada na Idade Média pelos sábios judeus? “O conhecimento é um só, venha ele dos novos autores, venha ele dos livros da tradição judaica”, diz Yonatan Shani, diretor do Kabbalah Centre do Brasil.
“Estamos falando de uma sabedoria universal, que está na essência de todas as religiões. Deixar de compartilhar esses ensinamentos seria um crime.” Nem todos são da mesma opinião. “A cabala não é para qualquer um”, diz David Zumerkorn, autor do livro Numerologia Judaica e Seus Mistérios (Editora Maayanot). “Trata-se da interpretação espiritual da Torá, o livro mais sagrado do judaísmo.
Só quem conhece aramaico ou hebraico é capaz de interpretar as sagradas escrituras e compreender os ensinamentos nelas ocultos.” Segundo ele, boa parte dos cursos que existem por aí ensina qualquer coisa, menos cabala. “A maior parte deles ensina lições de moral e ética baseadas no Talmud, texto sagrado judaico que funciona como um complemento para a Torá. Não há nada de mau nisso. Mas é bem diferente dos verdadeiros ensinamentos do Zohar.”
Mesmo os que defendem a cabala pop, como o rabino Yehuda Berg, admitem que os ensinamentos foram “simplificados” a fim de se tornarem acessíveis para as pessoas comuns. O resultado, dizem os críticos, fica no limite entre a literatura religiosa e a autoajuda. “O conceito de autoajuda é bastante discutível”, diz Shani.
“Não vendemos a cabala como receita para conseguir bens materiais, amor, sucesso e saúde. Todos querem alcançar a plenitude da vida. Para isso, precisam aprender a lidar com as dificuldades e os desafios do dia a dia, e isso só será possível por meio da transformação pessoal. E é esse o caminho que a cabala nos aponta. Quer chamar de autoajuda? Tudo bem, mas não acho essa a definição mais adequada.”
Uma coisa é certa: já vão longe os tempos em que os judeus eram obrigados a se esconder em porões para discutir a cabala. O acesso à informação está garantido. Resta saber como ele será usado por esses cabalistas em potencial. “Não é bom que uma doutrina que soma mais de 2 mil anos seja convertida em mais um produto, mera comercialização da sabedoria judaica”, diz Ian Mecler, escritor de livros como O Poder de Realização da Cabala.
Ele reconhece, no entanto, o lado positivo da popularização: “Pode ser que isso leve a um desejo de maior aprofundamento no assunto. E daí as pessoas descubram a verdadeira essência da sabedoria judaica”.