Uma rigorosa rotina de meditação transformou o príncipe Sidarta em Buda, dando origem a uma das quatro maiores religiões do mundo.
Texto: Agência Fronteira | Edição de Arte: Juliana Vidigal | Design: Andy Faria | Ilustrações: Índio San
Apersonalidade do filho tirava o sono do rei dos Sakyas. O rajá Sudodana temia que o príncipe Sidarta Gautama fosse seduzido por outro rumo que não a sucessão do trono. Por isso, proibiu o filho de deixar o castelo. Um dia, porém, Sidarta descumpriu a ordem e foi até a cidade, acompanhado pelo amigo e fiel escudeiro Chandaka.
Em Kapilavatsu, capital do reino, localizada entre a Índia e o Nepal, ele se deparou com imagens chocantes – os budistas as chamam de Os Quatro Sinais. Primeiro, Sidarta viu um velho corcunda, de pele encarquilhada, arrastando-se pela rua. Em seguida, ele encontrou um homem doente, com o rosto crivado por úlceras. O terceiro sinal foi um cortejo fúnebre, seguido por uma multidão chorosa.
As três cenas introduziram Sidarta, respectivamente, à velhice, à doença e à morte – chagas inevitáveis da condição humana. Por fim, no quarto sinal, o príncipe avistou um sadhu, espécie de monge mendicante, pedindo comida. Apesar de maltrapilho, o indigente emanava tranquilidade e possuía um raro brilho no olhar. Sidarta foi acometido por uma epifania.
Aquele homem não possuía casa, comida ou dinheiro e ostentava um rosto tomado por um tipo de alegria que o príncipe não identificava em ninguém à sua volta. Da revelação, Sidarta depreendeu que o antídoto para as vicissitudes dos seres não estava nos prazeres materiais, mas, sim, no desapego aos desejos e sensações físicas. Foi quando o pesadelo do pai virou realidade.
O impacto daquela experiência fez Sidarta abdicar da realeza e abraçar o caminho espiritual, partindo para a floresta onde os sadhus costumavam viver. O príncipe despiu-se de suas vestes e as entregou a Chandaka, pedindo-lhe que as devolvesse ao pai.
Depois, raspou a cabeça e se cobriu com uma túnica amarela, a indumentária característica dos monges eremitas da Índia antiga. O herdeiro do trono dos Sakyas tinha 29 anos quando decidiu deixar para trás a mulher, o filho recém-nascido e os luxos da corte para se tornar peregrino na floresta de Kapilavatsu em busca de aprimoramento espiritual.
O rajá Sudodana sempre suspeitou que seu filho fosse aprontar. Quando o príncipe nasceu, em 563 a.C., o vidente e astrólogo Asita compareceu às festividades realizadas no palácio de Lumbini, no sul do Nepal. Ao avistar o menino, Asita se comoveu: a criança teria a aura característica de quem encarna com o potencial para tornar-se um ser iluminado – buddha, em sânscrito, a língua ancestral falada no sudeste da Ásia.
O termo Buda não se refere exatamente a um deus, mas a um estado de consciência. Quem atinge essa condição superior compreende a verdadeira essência da vida – e, portanto, pode ensiná-la aos homens. Segundo algumas correntes dessa filosofia, os Budas surgem para ensinar o dharma – em sânscrito, algo como Lei ou Ética Universal – quando esse conceito já parece esquecido.
Reza a lenda que Asita chorou porque havia esperado desde sempre pelo aparecimento de alguém com essa capacidade, mas não viveria o suficiente para vê-lo em ação. O velho místico, então, profetizou dois destinos possíveis para o príncipe. Se ficasse no palácio após a juventude, Sidarta se transformaria num soberano perfeito e governaria o mundo. Mas, caso optasse pela senda espiritual, ele viraria um homem santo e libertaria a humanidade do sofrimento.
A previsão era, ao mesmo tempo, fantástica e perigosa para Sudodana. Ou o filho colocaria o clã dos Sakyas no comando do planeta ou abdicaria do trono e sairia perambulando por aí. A mente do monarca logo maquinou as providências necessárias para que a primeira opção fosse a única viável. Isso significava moldar o gosto do príncipe pela vida palaciana e, acima de tudo, mantê-lo alheio à dor e às penúrias das pessoas comuns.
Mesmo com todo o esforço de Sudodana, Sidarta não ficou imune aos desgostos da existência. A começar pela morte da mãe, Mahamaya, uma semana após o seu nascimento. Quem o criou foi Mahaprajapati, irmã mais nova de Maya e também esposa do rei. Mas o pai fez o possível para afastar o filho do sofrimento.
Os Sakyas possuíam três castelos, e Sidarta passou a maior parte da infância e da juventude dentro dessas fortalezas. Além disso, quando saía de lá, era apresentado a um mundo cenográfico. Antes das raras incursões públicas da família real, o rajá ordenava a retirada de velhos, mendigos e doentes das ruas.
Tudo deveria ser limpo, festivo e perfeito aos olhos do príncipe. Mais tarde, a adolescência de Sidarta foi marcada por uma maratona de orgias, jogos e delícias mundanas. Ornamentado com peças de arte erótica, o quarto do garoto recebia uma romaria interminável de beldades arregimentadas pelo rei para entreter o filho. Aos 16 anos, Sidarta casou-se com sua prima, a bela Yasodhara, com quem teve seu único filho, Rahula.
Mergulho na floresta
Apesar dos inúmeros prazeres e facilidades, as escrituras budistas dizem que o príncipe era um jovem introspectivo. Vem daí a alcunha Sakyamuni – o sábio silencioso dos Sakyas –, uma das formas como Sidarta ficou conhecido. Por isso, a revelação espiritual do príncipe não foi uma surpresa.
Depois de enxergar Os Quatro Sinais, viver a epifania e fugir do palácio, Sidarta caminhou pelas florestas e adquiriu os hábitos dos gurus que viviam na periferia da capital. O principal deles era a meditação. É aqui que a prática e o praticante – no caso, Sidarta – passam a se confundir.
O príncipe recebeu ensinamentos de dois mestres iogues. Com eles, aprendeu que a meditação pretende pacificar as turbulências da mente e, assim, permitir um ancoramento do ser num ponto cada vez mais central e inabalável de seu interior, onde reside a sapiência completa que o livrará da ignorância e o imunizará de qualquer influência externa. Por meio das técnicas, alcançou avançados estágios de consciência – mas não chegou à iluminação. Ainda lhe faltava ir mais longe e estabelecer o domínio total dos sentidos.
Os ascetas, místicos que optam pela abstenção dos prazeres físicos, pregam a auto mortificação para conseguir isso. Além de meditarem de modo intermitente, eles se dedicam a prolongados jejuns, a fim de purificar o corpo para facilitar a elevação da alma. Sidarta uniu-se a um grupo de ascetas hindus e, com eles, permaneceu durante seis anos, adotando uma dieta rígida – a ponto de comer a cada duas semanas e se alimentar com apenas um grão de arroz por dia. O resultado?
Esquálido, Sidarta não conseguia evoluir em suas práticas meditativas devido à inanição. No auge da fraqueza, ele viu um barqueiro passando pelo rio Nairanjana. O homem possuía um alaúde em mãos e explicava a melhor maneira de afinar o instrumento: “Se apertarmos muito a corda, ela arrebentará. Se a afrouxarmos demais, ela não tocará”.
Os estados mentais elevados, conferidos pela meditação, haviam despertado em Sidarta um senso de compreensão superior sobre as coisas. Essa condição é chamada de vipashyana e refere-se aos insights advindos do processo de introspecção.
A frase do barqueiro fez Sidarta identificar o seu erro. Na busca pela ascensão espiritual, o príncipe fora de um extremo ao outro: saíra da opulência dos castelos para a completa abstenção de recursos, sem chegar aonde queria. A postura correta, ele percebeu, não estava nos opostos, mas na moderação. É o que os budistas definem como o Caminho do Meio. Depois de entender isso, Sidarta aceitou um pote de leite oferecido por uma menina e abandonou os ascetas.
Intensivão
Em caminhada pelas margens do rio Nairanjana, no nordeste da Índia, o príncipe peregrino avistou uma figueira e se recostou para meditar. Sentado sob a copa da árvore, ele prometia não se mover até encontrar a Suprema Sabedoria – prajña, em sânscrito. O conceito de prajña não deriva dos conhecimentos adquiridos por alguém em livros nem se refere a um exercício lógico ou racional.
Esse é um saber que ultrapassa as capacidades da mente comum e está ligado à Mente Universal – algo como o princípio criador de tudo, a Alma Cósmica, a fonte primordial ou, vá lá, Deus. Quem compreende prajña torna-se único com essa força geradora das coisas e conhece a verdade fundamental da vida. A tradição budista chama a isso de nirvana – uma condição de máxima liberdade, na qual os sofrimentos (dukkha) se extinguem, e o adepto atinge a iluminação. Por isso, prajña é considerada a mãe de todos os Budas.
Aos 35 anos, ele ainda não havia alcançado tal nível, mas carregava em seu íntimo a ânsia incontida de obtê-lo. A origem dessa persistência continha a principal coordenada para que ele chegasse lá. Assim, cruzou as pernas em posição de lótus, fechou os olhos e iniciou uma viagem silenciosa com destino às profundezas de si mesmo. O ano era 528 a.C.
Na mitologia do Sudeste Asiático, há um inimigo ferrenho de todo o candidato à iluminação: Mara Devaputra, o demônio que governa o reino das ilusões. Para chegar à sabedoria plena, é necessário abandonar os territórios de Mara, mas esse demônio não costuma nos deixar escalar os seus muros com facilidade.
Durante os 49 dias em que ficou meditando no tronco da árvore – algumas fontes falam em sete dias e sete noites –, Sidarta Gautama travou uma árdua batalha com os enviados de Mara.
Esse exército é formado por medos, tentações, dúvidas, cobiças e ignorância, entre outras imperfeições. A rigor, Mara é parecido com o conceito de Ego, descrito pelo psicanalista Sigmund Freud como a parte consciente da mente.
Para os budistas, o apego à personalidade e ao conceito de Eu – senhor e escravo da mente – pavimenta o sofrimento humano e leva uma alma a criar os karmas (ações) que a mantêm presa à Roda de Samsara (ciclo de reencarnações) até serem expiados por completo.
Ao mergulhar rumo ao cerne da consciência, por meio da meditação e de uma conduta de vida correta, o praticante pode reconhecer o seu eu imutável – a tal Mente Suprema – e aprender a lidar com os truques de sua identidade impermanente e superficial. Em maio de 528 a.C., numa noite de lua cheia, Sidarta Gautama conseguiu isso.
O desperto
Algumas fontes dizem que, ao transcender a própria mente, Sidarta atingiu um estado de onisciência, compreendendo todas as tramas que sustentam a existência humana. Ele também teria descoberto as suas encarnações anteriores e se reconhecido como a continuação de uma linhagem de iluminados.
A partir de então, Sidarta passou a se apresentar como Buda – O Desperto – e iniciou sua senda de ensinamentos. Ele não foi o primeiro. Mesmo antes de existir uma religião budista, outros Budas cruzaram a Terra – as versões variam de seis a 1002 –, mas a origem e as identidades deles se perderam no tempo. Ao contrário dos outros, Sidarta teve o talento para cravar seu nome da história.
Nos 45 anos seguintes, o Buda Gautama dedicou-se a disseminar uma filosofia que contrastava com as religiões vigentes na sociedade hinduísta, cujos saberes espirituais cabiam apenas à casta dos sacerdotes (brâmanes) – um conceito ainda hoje em voga na Índia, embora o sistema de divisões tenha sido oficialmente abolido pelo país em 1950. Ele pregou uma humildade espantosa: foi o único líder espiritual das grandes religiões que se dizia um homem 100% comum.
Alcançou a sabedoria apenas por esforço pessoal, e não porque tivesse superpoderes, como cacife para falar com Deus. Aos 80 anos, morreu vítima de uma disenteria, em Kushinagar, no Nepal. “Que cada um seja uma lâmpada de si mesmo”, disse Sidarta antes de falecer.
A frase resume um dos principais ensinamentos do budismo, a quarta maior religião do mundo, com 500 milhões de adeptos. E essa luz interna começa a se acender justamente quando fechamos os olhos e respiramos fundo.
A nobre cartilha da iluminação
Inspirado nos ensinamentos do príncipe indiano Sidarta Gautama (563 a.C. – 483 a.C.), o budismo é uma mescla de religião e filosofia de vida que busca nos libertar do sofrimento humano por meio da elevação da consciência. E a meditação tem tudo a ver com isso.
Meditação
Está na base do budismo, embora não seja necessariamente obrigatória. Com os exercícios, o adepto pode acalmar a mente e direcionar seu foco para a essência interior, buscando elevar o estado de consciência até a iluminação.
Deus(es)
Para muitos, o budismo é uma religião ateísta porque os praticantes não creem em um Deus como o cristão – o grande responsável pelo Universo. Mas algumas correntes aceitam a ideia de um Buda Primordial, que dá vida a tudo. Sidarta teria sido uma encarnação dessa força divina. E muitas escolas acreditam em divindades, no plural.
O Buda
Sidarta foi um príncipe que viveu na Índia, por volta do século 6 a.C., e que trocou uma vida de luxo por um caminho espiritual. Foi ele que propagou a filosofia do desapego e a busca por iluminação da consciência que, mais tarde, a partir da sua morte, seria sistematizada e se tornaria a religião budista.
O paraíso
Ao atingir a iluminação, o adepto chega ao nirvana e liberta-se dos sofrimentos, fugindo da Roda de Samsara (encarnações). O nirvana não é um lugar, como o paraíso católico, mas um estado de extinção do Eu e de comunhão com a Fonte Criadora. A palavra significa “apagado” em páli – língua derivada do sânscrito.
Os preceitos
A jornada até o nirvana passa pelo aprendizado das Quatro Nobres Verdades: o sofrimento é algo inerente à condição humana; a origem do sofrimento está nos desejos do Ego; o fim do sofrimento depende do desapego aos desejos; a trilha para conseguir isso está no Nobre Caminho Óctuplo.