De pé. Postura ereta. Mão no peito. Mais que entoar palavras, cantar o hino de um país envolve todo um ritual de devoção ufanista em meio a eloquentes frases e brados que vibram pela nação.
Mas esse negócio de “cantar a nação” é coisa recente: os primeiros países a adotar hinos nacionais foram as monarquias europeias, no final do século 18, quando esses governos se viam ameaçados e queriam resgatar o louvor e a grandeza de seus líderes. A tradição dos brados retumbantes se espalhou, sem muita regra. Há hinos que remontam a tragédias históricas, e outros que simplesmente nasceram como músicas (e até tilhas sonoras de filme) gigantescamente populares.
Você, leitor, talvez tenha cantado o hino do Brasil na escola, às sextas-feiras antes da aula, ou estudado a canção nas aulas de história. Há quem tenha decorado o hino todo, sem nunca prestar atenção no que estava dizendo. Aqui, você vai descobrir como o hino fica quando é traduzido para o verdadeiro brasileirês. E, de quebra, pode saborear curiosidades sobre as canções de diferentes países – das mais longas, que ocupariam páginas e páginas, até as que mal preencheriam os 280 caracteres de um tweet.
Só para poliglotas
O regime do Apartheid na África do Sul durou quase cinco décadas. Quando ele acabou, em 1997, o país abraçou o lema de unir a nação – e, nesse espírito, adotou um “hino nacional híbrido”. Partiram do hino ofcial anterior, “Die Stem van Suid Afrika” (O chamado da África do Sul, em africâner) e adicionaram a ele versos da canção “Nkosi Sikelelí iAfrika” (Deus abençoe a África, na língua xhosa), popular entre os povos de origem negra do país desde 1897. O novo hino usa versos de quatro das 11 línguas oficiais do país, e celebra a união entre os “filhos da nação”.
Dos cinemas ao palanque
Imagine se a música “Tropa de Elite” (Osso duro de roer/Pega um, pega geral/ Também vai pegar você) virasse hino nacional. Foi mais ou menos o que rolou na China: a música tema do filme chinês Filhos da Tempestade se tornou a canção oficial do país em 1949. Chamada “Marcha dos Voluntários”, ela foi escolhida por ser “solene” e “inspiradora” – mas também porque estava na cabeça de todo mundo. Já quando Mao Tsé-Tung chegou com a sua Revolução Cultural, a canção foi banida e substituída por “O Leste é Vermelho”, que cita o Partido Comunista e o próprio Mao. Em 1982, “A Marcha dos Voluntários” foi resgatada e incluída na Constituição da República da China em 2004.
Antes da modinha
Muito antes dos hinos nacionais virarem tendência, o Japão já tinha um para chamar de seu. Não era ainda uma canÁão, e sim um poema, criado no século 4. Kimigayo, o Reino do Nosso Imperador, era um texto de prestígio e respeito à autoridade. Quando chegou o momento “auge” dos símbolos patrióticos, foi só musicar o poema e, voilá, estava pronto o curtíssimo hino nacional. Essa versão foi apresentada pela primeira vez à corte do Japão no aniversário do imperador Meiji, em 3 de novembro de 1880. Virou hino oficial em 1888.
Quem cala não consente
A Bósnia-Herzegovina é um dos três países do mundo a ter um hino nacional sem letra (os outros dois são Espanha e San Marino). Após se separar da ex-Iugoslávia, o país ganhou o hino “Jedna si Jedina” (Unida e Única), ofcializado em 1995. A letra ficou por conta de Dino Merlin, um dos cantores mais populares do país – tipo um Roberto Carlos.
O problema é que, logo depois da independência, veio uma sangrenta guerra civil – e, até hoje, os três grupos que vivem no país não se dão nada bem.
Os bósnios muçulmanos são maioria, e estavam satisfeitos com o hino: o “Jedna si Jedina” é baseado em uma velha canção popular deles. Essa conexão ofende os dois outros grupos, de bósnios-sérvios e bósnios-croatas.
Para acalmar os ânimos, em 1998, o país aprovou um hino com uma nova melodia – e sem letra. Foi como se parte dos brasileiros fosse obrigado a parar de cantar “Emoções” no Especial do Rei: os muçulmanos não ficaram felizes, e seguem cantando a letra de “Unida e Única”. Os outros dois grupos reagem cantando o hino da Sérvia e da Croácia. A briga continua.
Do bacanal à veneração à pátria
O idolatrado hino americano, “Star-Spangled Banner” (Estandarte Listro-Estrelado), nasceu durante da Guerra Anglo-Americana de 1812. O advogado Francis Scott Key, poeta amador, viu os britânicos falharem em destruir o Fort McHenry, em Baltimore – e, nos primeiros raios de sol depois do conflito, Key notou a bandeira dos EUA ondulando ao vento.
Mas esse auê patriótico acaba na letra. Para musicar o seu poema, Key simplesmente adaptou-o para encaixar na canção mais popular que viesse à cabeça. O problema é que a melodia escolhida tem uma origem bizarra.
Chamada originalmente de “To Anacreon in Heaven”, ela foi escrita em 1700 como música-tema da Anacreontic Society de Londres, um clube só para cavalheiros inspirado pelo antigo poeta grego Anacreonte – famoso por suas odes ao amor e à bebida. O historiador americano Marc Ferris deixa claro: “a letra original é sobre beber e fazer sexo”. Vide o verso: “eu vou te instruir a entrelaçar a murta de Vênus com a videira de Baco”.
Violência musicada
“A Marselhesa”, famosíssimo hino da França, é notoriamente violenta. A canção, que nasceu nas ruas, traz as singelas frases: “Às armas, cidadãos! Que o sangue impuro banhe o nosso solo!”. Mas se existe uma letra ainda mais violenta, ela é justamente a da Argélia, antiga colônia francesa.
Quando os franceses invadiram seu território, em 1830, a população nativa ficou sem direitos políticos por mais de um século. Em 1920, porém, começaram a surgir movimentos nacionalistas fortes e, depois da 2ª Guerra Mundial, o governo francês se comprometeu a conceder autonomia à Argélia. Só que não cumpriu a promessa. Militantes que a França considerava “uma ameaça à autoridade” foram presos e torturados. Entre eles, estava o poeta Moufdi Zakaria.
Durante uma de suas muitas passagens pela cadeia, Moufdi escreveu a letra de “Kassaman” (O Juramento), futuro hino nacional argelino. Reza a lenda que, sem papel e caneta na cela, Zakaria escreveu os versos na parede, usando o próprio sangue. Com uma origem dessas, o hino nem poderia ser pacífico. “Kassaman” é uma música de guerra, que defende abertamente a luta armada como única forma de alcançar a liberdade.
Uma estrofe, em especial, é dedicada aos colonizadores: ” França, o tempo do insulto acabou. França, o dia de acertar as contas está próximo. Prepare-se para receber uma resposta nossa!”. É claro que um trecho nada diplomático desses já recebeu muitas críticas na Argélia contemporânea. Mas, em 2008, uma PEC cimentou a menção à França no hino – hoje, consta na Constituição do país que o hino nacional argelino deve ser imutável em todas as suas estrofes, sem exceção.
O país mais devoto
Deus é figurinha carimbada em grande parte dos hinos nacionais. Alguns deles chegam a celebrar mais a religião do que a própria pátria. Surpreendentemente, esse não é o caso do Vaticano. Acredite, o ”Hino e Marcha Pontífice” existe puramente para venerar Roma, o berço do cristianismo.
No quesito devocional, ninguém ganha da Nova Zelândia. Seu hino é praticamente uma oração, que, em cinco tweets, roga o nome de Deus diretamente 12 vezes.
O hino nacional, em brasileirês
O hino do Brasil não nasceu de uma vez. A melodia, feita em 1882 para dar aquela valorizada na Independência, foi obra épica de um maestro. Já a letra, de 1909, é de um poeta parnasiano, que usava só as palavras raras e difíceis da nossa língua. Daí o hino ser como é: imponente, mas quase incompreensível. Abaixo, veja como fica a canção da pátria em linguagem direta, sem seus fúlgidos floreios.