Texto: Marcos Nogueira | Ilustrações: Felipe del Rio | Design: Carlos Eduardo Hara | Edição: Alexandre Versignassi
Fogos de artifício e campeonatos de comer hot-dog são duas celebrações patrióticas do 4 de Julho, data da independência dos Estados Unidos. No feriado, centenas de pessoas em várias partes do país competem para ver quem é capaz de engolir mais salsichas no menor tempo.
Num desses desafios, em 2014, Walter Eagle Tail estava entre os seis concorrentes. Eagle Tail – “rabo de águia”, em inglês – vendia artesanato indígena no memorial Crazy Horse, um rochedo lapidado com o rosto do chefe Cavalo Louco, do povo Sioux, na Dakota do Sul. Inscreveu-se na gincana que ocorreria num parque em frente ao fórum da cidade de Custer, 2.067 habitantes.
Eagle Tail engasgou e morreu sufocado pelo cachorro-quente. Veterano das Forças Armadas, foi enterrado com honrarias militares e virou nota de rodapé na imprensa.
Comer até morrer – no caso de Walter e de vários outros, literalmente – é um esporte tipicamente americano. Os EUA têm até uma liga de competidores glutões, nos mesmos moldes de NFL (de futebol americano) e da NBA (de basquete): a MLE, Major League Eating. Mas não dá para colocar no lombo dos Estados Unidos todo o fardo da combinação de gula com soberba com ganância – três dos sete dos pecados capitais bíblicos, numa perspectiva moralista. O fascínio pela glutonaria desenfreada ignora fronteiras.
Em Jaunpur, Índia, um homem chamado Subhash Yadav morreu após comer 42 ovos cozidos – seu objetivo era deglutir 50 para ganhar uma aposta de valor equivalente a R$ 140. Em Harvey Bay, Austrália, uma mulher de 60 anos não sobreviveu ao concurso de devorar lamingtons: blocos de pão-de-ló banhados em calda de chocolate e empanados em coco ralado. O pugilista argentino Mario Melo, campeão sul-americano dos pesos-pesados em 1997, morreu de tanto comer croissant em 2018. Biscoitos recheados mataram a paramédica Alexandra Yudina, 23 anos, que participava de um concurso em um bar de Moscou. A competição estava sendo filmada, e a morte da jovem foi exibida na TV russa.
Não existem estatísticas confiáveis das mortes em concursos assim. O mais próximo disso é a compilação feita pelo site americano EatFeats (eatfeats.com), uma espécie de banco de dados da comilança esportiva: 46 episódios fatais. O primeiro desses registros data de 1906, quando três homens foram hospitalizados em Johnsburg, EUA, após uma disputa para coroar o maior devorador de queijo limburger – uma iguaria particularmente fedorenta. Um dos competidores morreu.
46 episódios fatais já foram registrados. É o caso do pugilista argentino Mario Melo, morto em 2018 de tanto comer croissant.
O excesso alimentar é algo tão velho quanto a própria humanidade. São célebres os relatos das orgias da Roma Antiga, em que os participantes forçavam o vômito para voltar a comer. A novidade está na amplitude da repercussão que as disputas atingiram graças às redes sociais. A lista mortuária do EatFeats registra apenas três incidentes em todo o século 20. De 2001 a 2010, são 13 ocorrências. Todos os outros 30 casos rolaram na década que terminou em 2020, quando a conectividade se tornou universal e banal.
Competições de comer têm um paralelo com reality shows como o Big Brother. Ambas as situações atraem pessoas sem talento específico, não exigem conhecimento especializado e oferecem uma polpuda recompensa para o “atleta” vencedor. A fama, que atrai patrocinadores, vem em forma de likes e seguidores. Só que ela chega para pouquíssimos – e às vezes um pouco tarde demais, via obituário.