Da Vinci e Michelangelo foram mais que contemporâneos: foram rivais, daqueles que passam uma vida inteira se estranhando.
Texto: Carol Castro | Edição de Arte: Leonardo Drehmer | Design: Andy Faria
Florença, comecinho do século 16. Leonardo da Vinci, então um senhor na faixa dos 50 anos e já famoso por causa de seus múltiplos talentos, passeava com um amigo perto do Palazzo Spini quando foi abordado por um grupo de rapazes. Eles queriam a opinião de tão renomado artista sobre um trecho de Inferno, obra do escritor Dante Alighieri que estava em evidência na época.
Justo naquele instante, também passava por ali um rapagão de nome Michelangelo Buonarroti, 23 anos mais novo. Não deu outra: os jovens convidaram-no para se juntar ao debate. O que ninguém ali imaginava, porém, é que Da Vinci não simpatizava com aquele moço. Antes mesmo de cumprimentá-lo, foi logo tentando passar-lhe uma rasteira. “Michelangelo vai explicar isso para vocês”, anunciou o mestre, crente de que colocaria o desafeto em uma saia justa.
O jovem artista viu naquela atitude uma intenção de ridicularizá-lo. E revidou. “Explique-se você, que fez um modelo de cavalo que jamais poderia terminar.” Consumada a malcriação, virou as costas e foi embora, deixando seu oponente imóvel, o rosto vermelho de raiva.
Michelangelo havia tocado em um dos pontos fracos de Da Vinci. Por anos, ele tentara concluir um projeto ambicioso, batizado O Grande Cavalo. Seria a maior estátua equestre do mundo, com 15 metros de altura e aproximadamente 70 toneladas – uma encomenda feita em 1488 por Ludovico Sforza, duque de Milão. Mas o monumento nunca saiu do papel.
Quando a cidade se viu ameaçada pelo exército francês de Luís 12, em 1494, todo o bronze disponível teve de ser fundido para a fabricação de canhões. Sem matéria-prima, Leonardo da Vinci foi obrigado a se conformar. Em 1499, decidiu ir embora para Veneza levando na mala uma enorme frustração. Aquilo o incomodaria por muito tempo. E Michelangelo sabia disso.
O encontro ocorrido nas cercanias do Palazzo Spini provavelmente foi o único episódio em que os dois artistas estiveram frente a frente, mas a história de estranhamento entre eles não se resume a isso.
Em 1504, quando os poderosos de Florença convocaram seus melhores artistas para decidir onde seria instalado o Davi de Michelangelo. Da Vinci foi um dos que deram palpite. Tentou sacaneá-lo de novo, sugerindo que a estátua ganhasse um “ornamento decente” antes de ser exposta ao público. Ou seja: defendeu que o pênis e as nádegas do herói bíblico fossem cobertos.
“Com essa atitude, Leonardo não foi pudico, mas malicioso”, escreve o jornalista britânico Jonathan Jones em The Lost Battles: Leonardo, Michelangelo and the Artistic Duel that Defined the Renaissance (“As Batalhas Perdidas: Leonardo, Michelangelo e o Duelo Artístico que Definiu a Renascença”, inédito no Brasil). O autor acredita que Da Vinci ficou com inveja, de tão perfeita que a escultura era. Ao sugerir um tapa-sexo, sua intenção seria desmerecê-la.
O episódio mais documentado da rivalidade entre os dois, no entanto, ocorreu um pouco antes, em 1503, quando Da Vinci foi incumbido de pintar o afresco A Batalha de Anghiari. A ideia era eternizar em uma das paredes do Palazzo Vecchio a vitória do exército florentino contra as tropas de Milão em 1440.
A cena era motivo de orgulho para a cidade. E o artista correspondeu à expectativa logo de cara, apresentando um rascunho de tirar o fôlego antes mesmo de dar início à pintura.
Da Vinci teria alguns meses para concluir a obra, pela qual recebera pagamento adiantado. Só que nada funcionou como deveria. Ainda no início do trabalho, o artista se deparou com o mesmo problema enfrentado ao pintar A Última Ceia: umidade excessiva. Acabou estourando o prazo, e ainda pediu mais dinheiro para concluir o serviço. Piero Soderini, que havia encomendado a obra, não tinha nada de bobo. Era político. E conhecia bem a fama de enrolão do seu contratado.
Para reduzir o risco de levar um chapéu, convidou Michelangelo para pintar outro momento histórico, A Batalha de Cascina, na parede oposta da mesma sala. Esperava que a competição entre os dois colocasse ambos sob pressão. Em tese, um bom plano. Só que a estratégia redundaria não apenas em um, mas em dois enormes fiascos.
Em 1505, Da Vinci se mandou para Milão, onde tinha encomendas por concluir. E Michelangelo nem passou dos esboços. Naquele mesmo ano, foi designado pelo papa Júlio 2º para grandes projetos em Roma – entre eles, a monumental decoração do teto da Capela Sistina.
Alguma coisa em comum
Além da genialidade, os dois artistas teriam compartilhado das mesmas preferências sexuais.
Apesar de suas diferenças, Da Vinci e Michelangelo tinham algumas coisas em comum. A primeira, e mais notável de todas, era o perfeccionismo. Obcecados pelo resgate da cultura clássica (um dos pilares do Renascimento), ambos buscavam a perfeição estética em tudo que se propunham a fazer. Não por acaso, são unanimemente considerados dois dos artistas mais geniais da história da humanidade.
Outra semelhança entre eles, não tão unânime assim, diz respeito a suas preferências sexuais. Especula-se que ambos teriam sido gays. Em 1476, quando ainda era aprendiz de Andrea del Verrocchio, Da Vinci foi acusado anonimamente de sodomia e homossexualidade, mas a denúncia foi arquivada por falta de provas. Anos mais tarde, por volta de 1500, ele “adotou” o belo e jovem Salai como seu pupilo. Alguns biógrafos acreditam, com base em suposições, que havia entre eles algo além de uma relação meramente profissional.
Com Michelangelo, a história é parecida. Em 1530, ele teria se apaixonado por um jovem da nobreza romana chamado Tommaso Cavalieri. Sabe-se que os dois foram grandes amigos, mas o relacionamento amoroso entre eles carece de comprovação. Indícios existem, como alguns sonetos de amor escritos pelo artista e supostamente dedicados ao jovem. Mesmo assim, não é possível afirmar que eles tenham sido amantes.