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Troia: a mãe de todas as guerras

Texto: Eduardo Szklarz e José Francisco Botelho | Design: Andy Faria | Ilustrações: Mike Azevedo e Adams Carvalho


Os poemas de Homero, escritos no século 9 a.C., contam a história do maior conflito travado por exércitos mortais na mitologia: a Guerra de Troia, cujo estopim foi a beleza de uma mulher, Helena. Além disso, Homero contou as aventuras de Odisseu, o mais astuto de todos os heróis gregos.

A Guerra de Troia foi muito mais do que um simples conflito – para os antigos gregos, ela representava aquele momento misterioso em que a mitologia começava a virar história. O épico embate deu origem aos dois maiores poemas da literatura clássica – ambos atribuídos a Homero, que viveu por volta do século 9 a.C. A Ilíada narra acontecimentos ocorridos no último ano da guerra, enquanto a Odisseia relata a atribulada viagem de Odisseu de volta ao lar (Odisseu, como você verá a seguir, foi um dos principais heróis a lutar contra os troianos).

“Os antigos gregos acreditavam que a Guerra de Troia não era ficção, nem mesmo mito. Era um evento histórico ocorrido num passado remoto, que ajudou a forjar a unidade da Grécia”, diz Theresa Urbainczyk, professora de história clássica na University College Dublin, na Irlanda. Alguns arqueólogos acreditam que Troia realmente existiu – sua localização seria no oeste da atual Turquia, em um sítio arqueológico que foi descoberto no final do século 19. “Ninguém sabe ao certo se esse local é mesmo o da Troia homérica”, explica Anderson Zalewsky Vargas, especialista em Antiguidade clássica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Mas tendo ou não existido de verdade, o fato é que a guerra em torno a essa cidade foi o conflito fundador da cultura grega”.

Contudo, o relato de Homero não é maniqueísta. Em vez de uma luta de heróis contra bárbaros, o que o grande poeta grego nos deixou foi uma conflagração de paixões profundamente humanas.

Helena e Páris

Troia (ou Ílion) foi a cidade mais suntuosa e magnífica da mitologia – e sua destruição ocorreu por causa da mais bela mulher que já pisou a Terra: Helena, nascida em Esparta, filha de Zeus e Leda. Desde menina, ela mexia com a fantasia dos homens. Quando Helena virou mulher, os grandes príncipes e guerreiros da Grécia enviaram presentes ao seu pai adotivo, o rei Tíndaro. Antes de escolher um marido para a filha, o monarca obrigou todos os pretendentes a fazer um juramento: se, após o casamento, a moça fosse raptada, todos defenderiam seu legítimo esposo.

O escolhido para desposar Helena foi Menelau, irmão de Agamênon, soberano de Micenas. Menelau assumiu o trono de Esparta após a morte de Tíndaro, mas seu casamento estava condenado ao fracasso. O coração de Helena bateria por outro homem: Páris, filho do rei troiano Príamo e de sua esposa Hécuba.

Embora fosse filho de um rei, Páris foi criado nas encostas de um monte, como pastor – foi lá que serviu de árbitro na disputa de beleza entre as deusas Afrodite, Hera e Palas Atena. Para ganhar a competição, Afrodite prometera ao juiz o amor da mais linda mulher do mundo. Tempos depois, Páris viajou a Esparta, onde Menelau o recebeu cortesmente, como hóspede. Mas nem bem o marido deu as costas, o troiano fugiu com Helena – que, por obra de Afrodite, apaixonara–se por ele à primeira vista.

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Ao saber disso, Menelau invocou o juramento que os pretendentes de Helena haviam feito a Tíndaro. E pediu a seu irmão, Agamênon, que recrutasse um grande exército para arrasar as muralhas de Troia. O rei de Micenas enviou mensageiros a toda a Grécia. E assim reuniu, sob seu comando, a maior tropa de heróis em todas as histórias da mitologia.

Juntos contra Troia

A expedição liderada por Agamênon era um vasto catálogo de reis e guerreiros famosos: Odisseu (entre os romanos, Ulisses), o astuto monarca da Ítaca; Nereu, o sábio e experiente governante de Pilos; Diomedes, rei de Argos; e o brutamonte Ájax, jovem rei de Salamis. Mas a grande estrela sangrenta era mesmo Aquiles, príncipe da Ftia. Era filho de Peleu e da nereida Tétis – que o mergulhou, quando bebê, nas águas do Estige, um dos rios que corriam no inferno grego. Isso tornou a pele e a carne de Aquiles invulneráveis – exceto o calcanhar, a única parte do corpo que não foi molhada pelas águas infernais. Sim, daí vem a expressão calcanhar de Aquiles e toda aquela história.

Além das tropas humanas, também os deuses olímpicos se prepararam para a batalha. Hera e Palas Atena estavam dispostas a devastar Troia, como vingança pela ofensa de Páris, que havia escolhido Afrodite como a mais bela do Olimpo. A deusa do amor, protetora de Páris, defenderia a cidade sitiada, assim como Apolo. Zeus e Poseidon não tinham lealdade definida, pendendo ora para um lado, ora para outro.

Mesmo com tantos heróis reunidos, Agamênon sabia que tomar Troia de assalto era impossível: afinal de contas, as muralhas da cidade foram construídas por Apolo e Poseidon. A obra de mãos divinas não podia ser destruída por engenhos humanos. O jeito era vencer os troianos no cansaço: o exército grego acampou na praia, em frente às portas da cidade, e assim se passaram nove anos, sem um combate decisivo. Durante todo esse tempo, os gregos saquearam cidades vizinhas e aliadas de Troia, como Lesbos e Antandros, deixando palácios em chamas e raptando mulheres. Agamênon sequestrou Criseida, filha de Crises, um sacerdote de Apolo. E Aquiles raptou Briseis, rainha da cidade de Lirnesso. O captor se apaixonou pela prisioneira – e essa nova paixão também teria consequências fatais tanto para gregos quanto troianos.

A fúria de Aquiles

Na primavera do décimo ano, a maré virou – e é nesse ponto da guerra que Homero começa seu relato na Ilíada. Enfurecido pelo rapto de sua filha, o sacerdote Crises implorou a ajuda de Apolo. O mortífero deus da luz, cuja mira jamais falha, empunhou seu arco e lançou setas letais contra a guarnição grega. Durante nove dias, uma praga devastou o exército. Suspeitando da origem da pestilência, os soldados exigiram que Agamênon devolvesse Criseida a seu pai.

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O rei ficou furioso ao ser coagido pelos próprios soldados. E resolveu descontar sua raiva em Aquiles, de quem invejava a popularidade. Por isso, aceitou devolver Criseida com uma condição: “Que Aquiles me entregue Briseis, como compensação por minha perda; ainda esta noite, a rainha de Lirnesso irá aquecer minha cama!” Se a intenção era irritar Aquiles, Agamênon conseguiu. Ofendido, o príncipe invencível abandonou o exército grego. Isolado em sua tenda, à beira do mar, ficou dedilhando sua lira e remoendo o rancor.

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Desde o início da guerra, a defesa de Troia fora liderada pelo nobre e gentil Heitor, filho de Príamo. Era um guerreiro habilidoso, mas que detestava carnificina: lutava apenas por necessidade, e não por glória ou ambição. Por isso, é um dos personagens mais humanos – e mais admirados – no poema de Homero. Ao saber que Aquiles desertara, Heitor aproveitou a oportunidade para contra-atacar. Os portões de Troia se abriram e despejaram milhares de combatentes em direção ao acampamento inimigo. Os arqueiros troianos lançaram flechas incendiárias, e logo o fogo se espalhava pelas barracas e pelos navios ancorados na praia. Mas no meio da fumaça, Heitor avistou um homem coberto por metal dourado – e reconheceu a armadura de Aquiles. Achando que o príncipe da Ftia voltara à luta, Heitor o atacou e cravou a lança na barriga do inimigo. Só ao retirar seu elmo reconheceu o rosto ensanguentado de Pátroclo, primo e melhor amigo de Aquiles. Pátroclo pegara emprestada a temida armadura, na vã tentativa de afugentar os troianos.

Ao saber da morte do amigo, Aquiles jogou cinzas no rosto, chorou e jurou vingança. Logo em seguida, estava de volta à batalha, com uma fúria jamais antes vista entre deuses ou mortais. Com um terrível grito de guerra – “Morram, troianos, morram!” – Aquiles degolou e trespassou centenas de inimigos num único dia. Correu até as portas de Troia, deixando atrás de si um rastro de sangue, e lá desafiou Heitor. O nobre troiano enfrentou o semideus grego – mesmo sabendo que não podia vencer. Aquiles fincou sua lança no pescoço de Heitor, que desabou com uma lufada de sangue. Mas o irascível príncipe de Ftia também tinha os dias contados. Moira, a deusa do destino, decidiu que Aquiles deveria morrer jovem – para viver eternamente na memória dos humanos. Pouco tempo depois, o calcanhar do herói foi atingido por uma flecha envenenada, disparada por Páris. E assim Aquiles foi encontrar o fantasma de Heitor na região dos mortos.

O Cavalo de Troia

O relato da Ilíada termina com os funerais de Heitor. O resto da história é contado em obras como a Eneida, escrita pelo romano Virgílio no século 1. Sem Aquiles, os gregos precisavam de um estratagema para ganhar a guerra, pois a força bruta não funcionava mais. Foi Odisseu, inspirado pela infalível Palas Atena, quem teve a ideia de oferecer aos troianos um presente mortal. Com toras de pinho, os gregos construíram um imenso cavalo oco. Na parte de fora, escreveram as palavras: “A Palas Atena”. Odisseu convenceu os mais valentes a se esconderem, armados, na barriga do animal de madeira. Ao anoitecer, os demais gregos colocaram em prática o restante do plano: incendiaram o próprio acampamento e navegaram até as ilhas mais próximas, onde ficaram escondidos.

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Na manhã seguinte, os troianos viram o acampamento grego reduzido a cinzas e o cavalo gigante na costa. Príamo e seus súditos contemplaram a estátua assombrados. Alguns troianos acharam aquilo estranho. “Não confiem nos gregos nem quando eles trazem presentes!”, gritou o sacerdote Laocoonte. Mas o rei não deu ouvidos. Achou que o cavalo fosse uma oferenda a Palas Atena. Portanto, seria um sacrilégio destruí-lo. Príamo decidiu levar o colosso equino para dentro da cidade – sem saber que, assim, condenava Troia à destruição completa.

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Naquela mesma noite, enquanto os troianos dormiam, o ventre do cavalo despejou guerreiros. Os gregos deslizaram em silêncio pelas ruas e abriram os portões. As tropas ocultas nas ilhas voltaram à praia e invadiram a cidade. No mundo antigo, a misericórdia era uma virtude rara em tempos de guerra, como prova um famoso ditado romano: Vae victis, ou “ai dos vencidos!” Quase todos os homens da cidade foram passados no fio da espada, e as mulheres tornaram-se escravas.

Um dos poucos sobreviventes foi Eneias, sobrinho de Príamo. Segundo a Eneida de Virgílio, ele conseguiu escapar com um pequeno grupo, enquanto Troia era consumida pelas chamas. Após navegar pelo Mediterrâneo, Eneias chegou à Itália, onde seus descendentes fundaram outra cidade, destinada à glória: Roma, que, depois de um tempo, conquistaria a Grécia.

O retorno de Odisseu

Após a destruição de Troia, os heróis gregos embarcaram em seus navios e rumaram para casa. Mas nem todos os retornos foram fáceis. Alguns gregos morreram no caminho, outros levaram anos para pisar na terra natal. Mas nenhuma volta foi tão atribulada e fabulosa quanto a de Odisseu – “aquele homem renomado pelas variadas artes da sabedoria e muito experimentado em sofrimentos”, como canta Homero na Odisseia.

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Odisseu é um dos personagens mais célebres e complexos da mitologia: sua principal virtude heroica não era a força ou a habilidade guerreira, mas a esperteza. Embora fosse astuto, era também azarado: as reviravoltas do destino fizeram com que navegasse durante dez anos, lançado de aventura em aventura, antes de conseguir retornar a casa. E, durante todo o trajeto, Odisseu não esqueceu por um único instante a esposa Penélope e o filho Telêmaco, que o esperavam lá na inatingível Ítaca.

Após partir de Troia, ele desembarcou casualmente na ilha dos Lotófagos, habitada por homens desmemoriados. Isso porque, naquela terra, crescia a deliciosa fruta do lótus, iguaria que apagava todas as lembranças e todo o desejo de voltar para casa. Qualquer viajante que a provasse ficaria ali para sempre. Em vez de comer a fruta do esquecimento, Odisseu e seus marujos seguiram adiante, até desembarcarem na ilha dos ciclopes, tribo de gigantes selvagens com um só olho no meio da testa. Mas os gregos acabaram aprisionados na caverna de Polifemo, o mais feroz dos ciclopes – que, ainda por cima, tinha um gosto por carne humana. Para escapar, Odisseu recorreu a um de seus famosos estratagemas. Primeiro, ofereceu ao gigante antropófago um odre – espécie de cantil antigo – cheio de vinho. Polifemo, embriagado e feliz, perguntou ao prisioneiro: “Como você se chama?” Com sua típica presença de espírito, Odisseu respondeu: “Ninguém”. E o ciclope retrucou: “Excelente, Ninguém! Como agradecimento por esse ótimo vinho, vou devorá-lo por último”. E terminou de beber até a última gota.

Mas logo que o ciclope desmaiou alcoolizado, Odisseu furou seu único olho com um pedaço de lenha e escapou da caverna. Polifemo, aos berros, pediu ajuda aos seus vizinhos ciclopes. Os gigantes acorreram, aos gritos: “O que houve, Polifemo? Quem furou seu olho?” O ciclope cego respondeu: “Ninguém me feriu! Ninguém está escapando!” Achando que Polifemo estivesse louco, os outros gigantes deram de ombros e se afastaram, dando tempo para que Odisseu navegasse para bem longe dali.

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Mas essa vitória trouxe uma terrível onda de má sorte: Polifemo era filho de Poseidon. Enfurecido, o deus dos mares condenou Odisseu a vagar ao léu durante anos, de naufrágio em naufrágio, singrando muitas terras povoadas por monstros e seres fantásticos. Nos mares ao redor de Capri, ouviu o mortífero canto das sereias (que afundavam navios). Na ilha de Ea, enfrentou Circe, feiticeira que tinha o hábito de transformar hóspedes em porcos. No estreito de Messina, viu seus companheiros serem massacrados pelos monstros marinhos Sila e Caríbdis. Mas enfim, com a ajuda de Palas Atena, conseguiu desembarcar na Ítaca – sozinho, barbudo e coberto de farrapos. E foi lá que Odisseu enfrentou seu último grande desafio. Durante a ausência do soberano, o palácio real ficou cheio de pretendentes ambiciosos. Mais de cem aristocratas oportunistas haviam se abancado nas salas, quartos e despensas, cobiçando a mão da rainha e o trono da Ítaca. Mas Penélope era fiel.

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Durante anos, resistiu valentemente aos avanços. Disfarçado de mendigo, Odisseu se esgueirou para dentro de sua própria casa. Revelou sua identidade apenas para o filho Telêmaco, agora um rapagão forte e ágil. Juntos, armaram uma emboscada na sala do trono. Palas Atena, mais uma vez, ajudou seu protegido, guiando seus golpes e lhe dando força redobrada. Com uma chuva de flechadas certeiras, Odisseu e Telêmaco mataram todos os abusados pretendentes.

Só então, após 20 anos de ausência, o calejado Odisseu pôde dormir nos braços da esposa. A Odisseia não conta o resto da história, mas o argentino Jorge Luís Borges, no século 20, imaginou este desfecho para a maior de todas as jornadas: “A rainha agora dorme sobre o peito de seu rei. Mas será ele ainda aquele homem? Aquele que, nos dias e nas noites do desterro, errava pelo mundo como um cão – e dizia que Ninguém era o seu nome?”.


Para saber mais: A Guerra de Troia

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