O encalhe do navio Ever Given, em 2021, reforçou a importância do elo entre o Mar Vermelho e o Mediterrâneo, por onde transita 12% do comércio marítimo mundial. Conheça sua turbulenta história – e navegue por suas águas.
Texto Rafael Battaglia | Ilustração Rodrigo Damati | Design Juliana Krauss | Edição Alexandre Versignassi e Bruno Vaiano
Texto originalmente publicado em junho de 2021.
“A baía de Porto Said estava triunfante”, escreveu Eça de Queiroz em 17 de novembro de 1869. Antes de se dedicar a livros que caem no vestibular (como A Cidade e as Serras e A Relíquia), o escritor português foi enviado pelo jornal Diário de Notícias para acompanhar a inauguração do Canal de Suez.
Da cidade de Alexandria, no Egito, Queiroz pegou um navio até Porto Said, cidade construída do zero às margens do Mar Mediterrâneo para ser uma das entradas do canal. Nas suas palavras, “era uma cidade improvisada no deserto, de indústrias e operários”. Na época, ela contava com 12 mil habitantes.
A infraestrutura precária contrastava com a cerimônia de inauguração. Havia gente de todo o mundo ali: nobres, príncipes, imperadores. Na baía, navios sediavam bailes e jantares de gala; fogos de artifício iluminavam o céu à noite.
No dia seguinte, um cortejo de embarcações entrou no canal para navegar até a outra extremidade: a cidade de Suez, a 162 km dali, no litoral do Mar Vermelho. Mas não sem antes parar no meio do caminho em Ismaília, que até hoje é a “capital” do canal – o centro de comando e, naqueles dias, o centro da festa. “As ruas estavam cheias de viajantes, equilibrados sobre as excêntricas selas dos camelos e dos dromedários. Havia por toda a parte tocadores, cantadores, mágicos e devoradores de serpentes”, narra Queiroz. O canal não estava 100% nos trinques. Ainda havia trechos com risco de encalhe – foi o que aconteceu com o Latife, um pequeno barco a vapor, no dia da inauguração.
151 anos depois, em março de 2021, outro encalhe fez as atenções se voltarem, novamente, para o Canal de Suez. O navio Ever Given, um dos maiores porta-contêineres do mundo, com 400 m de comprimento, ficou entalado pouco depois de entrar no canal – e bloqueou a passagem por seis dias.
O episódio rendeu memes e um prejuízo nababesco. É que o canal é a rota mais rápida entre a Ásia e a Europa, vital para o transporte de petróleo, gás natural e quase qualquer objeto made in China que você possa comprar. Por ano, mais de 18 mil navios trafegam por lá – 12% de todo o comércio marítimo mundial. Sem ele, a rota alternativa é contornar o Cabo da Boa Esperança, no sul da África, que adiciona mais dias à viagem – e a deixa mais cara. O trajeto entre Suez e o porto de Roterdã, na Holanda (o maior da Europa), costuma levar 11 dias. Pelo cabo, são mais de 26 dias, a um custo extra de US$ 800 mil.
Essa não foi a primeira vez que o Canal de Suez ficou temporariamente fechado. Tampouco a mais longa: em meados do século 20, por exemplo, ele permaneceu oito anos sem ver navios. Hora de embarcar na história desse pequeno milagre da engenharia.