500 anos de protestantismo em 95 tuítes
O que era só uma proposta de reforma virou protesto e acabou criando novas igrejas cristãs, além de provocar conflitos que moldaram o mundo de hoje.
Martinho Lutero foi o nome mais comentado da Alemanha em 2017. Cartazes anunciavam debates e seminários sobre ele. Estátuas, pinturas e painéis à sua imagem e semelhança foram restaurados. Museus abriram mostras dedicadas ao monge. No fim de maio, a primeira-ministra Angela Merkel, ela mesma filha de um pastor luterano, participou de um congresso protestante, com homenagem a Lutero, ao lado do ex-presidente americano Barack Obama. O Lutherol, uma caixa de remédio recheada com frases de Lutero no lugar das pílulas, saía por 6 euros. Por pouco menos, 4,5 euros, você levava um boneco Playmobil do monge. Versões de 1,5 m de altura do mesmo brinquedo foram expostas em igrejas. As livrarias estavam cheias de edições especiais dedicadas a Lutero, cujo rosto também estampava canecas, vinhos e caixinhas de música. Ele, que combateu a venda de perdão divino pela Igreja Católica, acabou virando marca lucrativa 500 anos depois de iniciar a Reforma Protestante – um movimento que pretendia revigorar o catolicismo, mas que acabou rompendo com ele.
Foi no final de 1517: Lutero tinha 33 anos, era professor universitário. Anexou à porta da Igreja de Todos os Santos, da cidade alemã de Wittenberg, um panfleto em latim. Não havia nada de novo nesse procedimento: professores espalhavam papéis em portas de igrejas para publicar ideias ou resumir conceitos sobre um tema específico. Dessa vez, porém, o conteúdo foi bombástico. As 95 teses de Martinho Lutero foram o estopim de uma guerra dentro do cristianismo, que provocou perseguições e assassinatos. A Reforma Protestante mudou o desenho geopolítico da Europa, moldou a colonização de outros países, especialmente dos EUA, e forçou o catolicismo a se modernizar.
A Reforma Protestante queria revigorar o catolicismo – só rompeu com ele quando não havia outra alternativa.
Os protestantes consideram que a Reforma começou em 31 de outubro de 1517. Usando um martelo gigantesco, Lutero teria pregado suas teses diante de uma multidão boquiaberta. Não foi bem assim: no dia 31, ele enviou o texto para seu superior, o arcebispo de Mainz, Alberto de Bradenburg. Foi só alguns dias depois, em meados de novembro, que o padre usou um martelo discreto para afixar o papel, não se sabe se só na Igreja de Todos os Santos ou em todos os templos católicos da cidade. Possivelmente poucos presenciaram a cena.
Ao receber o texto, o arcebispo Alberto viu sinais de heresia. Encaminhou o documento para Roma e deu início a um processo que culminou com a excomunhão de Lutero em 1521.
Vigário responsável por 11 paróquias da região de Wittenberg, Lutero era um padre de pouca expressão política. Ele foi seguido por outros padres modestos, sem pretensões hierárquicas, que só queriam melhorar a Igreja Católica. Quando isso se mostrou impossível, e só então, romperam com Roma para resetar o cristianismo.
Críticas coerentes
Em apenas dois meses, as teses de Lutero já tinham se disseminado por toda a Europa, da Inglaterra à Rússia. Se conquistaram adeptos rapidamente, é porque, naquele momento do século 16, os fiéis já estavam se acostumando a ouvir, de quando em quando, vozes questionando os dogmas católicos. O inglês John Wycliffe foi um dos primeiros: 135 anos antes do padre alemão, em 1382, ele já desafiava a Igreja ao publicar uma Bíblia em inglês – Roma não aceitava traduções e exigia que os ritos fossem conduzidos sempre em latim.
Wycliffe também criticava o culto aos santos, a venda de indulgências – perdão dos pecados – e a existência do purgatório. Pensamentos parecidos foram levantados por Johannes von Goch, monge agostiniano alemão, que faleceu em 1475 e deixou escritos críticos ao Vaticano, influenciando a geração seguinte. O holandês Wessel Gansfort, que viveu até 1489, criticava a “paganização” dos papas – quando se pensa em Sixto 4º, que autorizou a venda de perdão para mortos, ou em Alexandre 6º, que teve sete filhos liderando uma igreja celibatária, é fácil entender as críticas. Mas o caso mais dramático foi o do padre Jan Hus.
O tcheco escreveu que o papa não podia mandar ninguém usar armas em nome de Deus e queimou documentos católicos que condenavam seus escritos. Por ironia, teve o mesmo fim dos papéis: queimado em praça pública, a mando do papa, em 1415.
Hus deixou seguidores. Seus ensinamentos fundaram a igreja dos hussitas, que chegou a congregar 90% dos tchecos. Rebelados contra as lideranças católicas, entre 1419 e 1431 os hussitas venceram cinco cruzadas enviadas pelo papa antes de serem derrotados e prepararam o terreno para Martin Luther (o sujeito que estamos acostumados a chamar pelo nome aportuguesado: Martinho Lutero).
Linguagem moderna
Monge nascido em Eisleben, no centro da atual Alemanha, Lutero estudou para ser advogado. Quando um raio caiu perto dele, em 1505, tomou um susto tão grande que pediu proteção a Santa Ana, prometendo virar monge se não fosse atingido. Inconformado, seu pai viu o jovem de 21 anos entrar para a ordem de Santo Agostinho. Em 1508, estabeleceu-se em Wittenberg, a 100 km de Eisleben, como padre e professor de teologia. Quando escreveu suas 95 teses, estava inconformado com a visita de Johann Tetzel à região. O frei dominicano estava vendendo as indulgências, papéis que garantiam perdão total dos pecados.
O dinheiro seria usado para construir a Basílica de São Pedro, no Vaticano – inaugurada só em 1667. Os fiéis de Wittenberg faziam fila para comprar o perdão papal, que valia para todo tipo de pecado, mas expirava em oito anos. Foi sobre isso que o monge Martinho xingou muito no Twitter da época. “Lutero queria debater o que era necessário para o perdão dos pecados. Na visão dele, o que valia era o arrependimento sincero e uma vida de atitudes corretas”, diz o historiador James Payton Jr., da Universidade Redeemer, no Canadá.
A principal arma de Lutero para propagar sua indignação foi a mídia mais moderna daqueles tempos: a imprensa, que permitia a divulgação rápida de muitas cópias em papel. Além disso, ele estava quase 500 anos à frente do seu tempo. Agrupadas sob o título Debate para o esclarecimento da virtude das indulgências, as teses de Lutero eram como 95 tuítes, sintéticos e altamente viralizáveis. Tanto que são “retuitados” até hoje – reproduzimos alguns deles a seguir.
Os tuítes reproduzidos aqui são traduções de algumas das 95 teses que Martinho publicou em 1517.
Seus textos eram publicados com centenas de cópias e um didatismo que ajudava a impulsionar suas ideias. Sua Bíblia traduzida para o alemão, de 1534, era tão influente que ajudou a moldar a literatura do país e a própria maneira de as pessoas falarem. Lutero a escreveu enquanto vivia escondido da perseguição católica num castelo em Wittenberg. “Muitos príncipes queriam fortalecer suas posições e se incomodavam com a interferência da Igreja. Eles adotaram com maior facilidade as ideias de Lutero”, afirma Roger Olson, teólogo da Universidade Baylor, no Texas. “O príncipe da região de Wittenberg, Frederico, o Sábio, garantiu que Lutero não tivesse o mesmo destino de Jan Hus.”
Lutero também abriu um precedente importante ao romper com o celibato e casar, aos 41 anos, com Katharina von Bora, uma freira de 26 anos, membro de um grupo de 12 religiosas que ele havia ajudado a fugir do convento de Nimbschen em 1523. “Todas as fugitivas haviam casado, exceto Katharina, que era considerada feia e de gênio difícil”, conta o historiador Horst Immel, que vive em Bretten, onde nasceu um dos mais importantes parceiros de Martinho, Felipe Melâncton.
Cada cabeça, uma sentença
Muitos outros católicos seguiram o padre. Melâncton ajudou nas discussões teológicas mais acirradas e ganhou poder em Wittenberg ao casar com a filha do prefeito, Katharina Krapp.
Os ex-monges Johann Esch e Heinrich Voes foram os primeiros mártires da causa, queimados em Bruxelas em 1523. John Smyth e John Murton fundaram a Igreja Batista na Inglaterra. Na Dinamarca, Hans Tausen forçou monges franciscanos a dividir a igreja do mosteiro: à tarde os protestantes se reuniam; à noite, os católicos.
Essas atitudes demonstram uma importante lição contida na atitude de Lutero: agora era possível questionar a religião e debater detalhes complexos da teologia cristã. Como resultado, surgiram líderes que não concordavam nem com o papa, nem com os luteranos.
Um deles foi Jean Calvin , mais conhecido por aqui como João Calvino. Ele realizou na Suíça o mesmo que Lutero na Alemanha. Nascido na França, esse advogado e teólogo migrou quando a Reforma provocou revoltas em sua terra natal. Amparado em Basel pelo reformador Johannes Oecolampadius, Calvino foi decisivo para a instalação do protestantismo e a perseguição a católicos e hereges protestantes. “A reforma proposta por Lutero não foi tão bem-sucedida fora da Alemanha. No norte da Europa, ela avançou graças a Calvino”, afirma Andrew Pettegree, fundador do Instituto de Estudos da Reforma Protestante da Universidade de St. Andrews, na Escócia.
Calvino criticava o estilo mais diplomático de Lutero e adotou rituais mais austeros, sem músicas e imagens relacionados aos cultos. A herança de Lutero na Alemanha foi bem diferente: ainda hoje, ao entrar em uma igreja luterana no país, a impressão é de estar em um templo católico. A igreja protestante de São João em Tüningen, por exemplo, é cheia de imagens de santos, incluindo vitrais da Virgem Maria. “Os luteranos consideram Maria e os santos como exemplos de vida, e não como pessoas a serem adoradas. Por isso, não recusam imagens em suas igrejas, como fazem os calvinistas”, diz a historiadora local Elisabeth Tielsch.
Teologia bélica
Além dos embates teológicos entre os protestantes, havia a pressão de lideranças católicas interessadas em manter suas terras sob controle papal. Num contexto de fim do feudalismo e começo da formação de nações, algumas reunidas sob o chamado Sacro Império Romano, as guerras e revoluções políticas eram inevitáveis. A primeira aconteceu logo em 1524.
A Revolta dos Camponeses se espalhou por todas as regiões de língua alemã. Cidades menores, que não eram residências de arcebispos nem centros de peregrinação, eram mais inclinadas a aceitar a Reforma. Questionar as condições sociais foi o próximo passo.
Os camponeses acabaram massacrados: foram mais de 100 mil mortos, contra poucas centenas de vítimas entre os soldados mercenários contratados pelos aristocratas católicos. A revolução protestante também causou uma onda de invasão de igrejas e destruição de imagens. Entre os anos 1520 e 1550, quebra-quebras aconteceram em Zurique, Copenhagen, Genebra e outras cidades nas atuais Holanda, Bélgica, França e Escócia.
Mas o maior conflito, que deixou marcas definitivas no continente, foi a Guerra dos Trinta Anos, travada na Europa Central entre 1618 e 1648. Uma combinação de motivações sociais e políticas, mas principalmente religiosas, enterrou de vez o feudalismo e resultou na morte de 8 milhões de pessoas.
América puritana
A reforma representou também um endurecimento das normas comportamentais. “Se eles condenaram o celibato entre os padres e abriram as portas dos conventos”, escreveu o filósofo François-Marie Voltaire no século 18, “foi apenas para transformar toda a sociedade num convento. Shows de entretenimento foram proibidos pela religião; por mais de 200 anos nenhum instrumento musical foi permitido em Genebra”, completa.
Hoje os protestantes estão espalhados pelo mundo e por diferentes denominações. Não suplantaram o catolicismo em número de fiéis, mas forçaram o Vaticano a realizar mudanças drásticas. “De certa forma, a Igreja Católica foi salva pela Reforma. Sua estrutura se modernizou e os papas passaram a ser homens mais comprometidos com o aspecto religioso da instituição”, diz Andrew Pettegree. Novos grupos religiosos, especialmente os jesuítas, ajudariam a conter a expansão das igrejas reformadas na Europa e levariam o catolicismo a terras novas, do Brasil ao Japão. Por outro lado, foram protestantes que colonizaram os EUA e a Austrália. Hoje eles são mais de 800 milhões no mundo, contra 1,2 bilhão de católicos.
Em Wittenberg, desde 1858, as portas da Igreja de Todos os Santos são comemorativas. Contêm as 95 teses que deram início à revolução. Lutero faleceu em 1546. Tinha 62 anos e foi enterrado com pompa ao lado do púlpito da igreja onde mudou a história. Em 31 de outubro de 2017, boa parte da Alemanha vai parar para celebrar seu feito – com a possível exceção das cidades católicas, como Worms, onde Lutero foi declarado herege em 1521, por ordem de Carlos 5º. “Até hoje, um protestante tem dificuldades para se casar numa cidade católica, e vice-versa”, diz o historiador Henry Gerlach antes de arrematar: “Quinhentos anos depois, a tensão não se dissipou.”
Raízes protestantes
A Reforma originou centenas de denominações. Veja a trajetória de algumas:
*O jornalista viajou a convite do Centro de Turismo Alemão (DZT).