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A Bíblia como você nunca leu

Pena de morte para virgens, palmadas para as crianças, regras para a poligamia... e uma política radical de juros. Conheça as leis mais curiosas da Bíblia.

Por Tiago Cordeiro
Atualizado em 26 set 2019, 20h54 - Publicado em 24 jun 2012, 22h00

A Bíblia não é apenas a Bíblia. Ela também funciona como uma espécie de Constituição. Natural: o Livro Sagrado não é exatamente um livro, mas uma coleção de 66 livros. Alguns são basicamente de histórias, caso do Gênesis, que narra o início dos tempos e as origens do povo de Israel. Outros não. Eram obras que, antes de entrarem para a Bíblia, tinham vida própria na forma de códigos de conduta. Ou seja: eram versões antigas, escritas entre o século 10 a.C. e 5 a.C., daquilo que hoje conhecemos como “código civil” e “código penal”.

Esses códigos, essas leis, estão principalmente nos livros Deuteronômio e Levítico. Mas aparecem por praticamente toda a Bíblia, inclusive no Novo Testamento, escrito a partir do século 1 e que revisa boa parte dessas leis. Por essas, muitos preceitos bíblicos são contraditórios ou sujeitos a mais de uma interpretação.

“No contexto em que foram escritos, porém, eles ajudaram a formar um povo com uma identidade tão forte que sobreviveria a séculos de diáspora e uma religião que dominaria o mundo ocidental”, diz o historiador Marc Zvi Brettler, professor de estudos judaicos da Universidade Brandeis, nos EUA. Nas próximas páginas, vamos fazer uma viagem pelas leis daquele tempo e daquele espaço. É a Bíblia. Mas como você nunca leu.

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(Good Salt/Superinteressante)

Maridos e esposas

Poucas coisas mudaram tanto nos últimos 3 mil anos como a instituição do casamento. Então esse é o nosso primeiro tópico. Para começar, o Velho Testamento deixa claro que as mulheres deveriam ser funcionárias de seus maridos. Funcionárias mesmo: não só com deveres, mas com direitos também. Se uma esposa fosse “demitida” pelo parceiro, por exemplo, podia ganhar uma carta de recomendação, que a moça podia usar como trunfo na hora de tentar uma vaga de mulher de outro sujeito.

Não é exagero falar em “vaga”: um homem podia ter tantas esposas quanto quisesse (ou melhor: quanto pudesse adquirir e sustentar). A poligamia era a regra. Tanto que o primeiro caso aparece logo no capítulo 4 do primeiro livro da Bíblia: “E tomou Lameque para si duas mulheres” (Gênesis).

A situação era tão comum que vários dos personagens mais importantes do Antigo Testamento viviam com mais de uma esposa sob o mesmo teto. Abraão acolhe uma segunda mulher a pedido de Sara, sua número 1, que não conseguia ter filhos. Depois a própria Sara dá à luz Isaac, enquanto a escrava Hagar tem Ismael. Nota: a tradição considera o primeiro como pai de todos os judeus e o segundo, patriarca dos povos árabes.

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O caso de Jacó, filho de Isaac e também patriarca de todos os judeus, é o mais conhecido: ele casa com as irmãs Lea e Raquel, filhas de Labão. E compra o dote delas trabalhando no pastoreio do sogro por 14 anos – 7 anos de labuta por cada esposa.

Mas nunca na história do Livro Sagrado houve maior predador matrimonial que Salomão, o rei: foram 700 esposas. Setecentas de papel passado, já que o sábio soberano ainda mantinha 300 concubinas. E tudo isso sem pílula nem camisinha… Por isso mesmo o Deuterônimo traz regras para a distribuição de bens entre filhos de diferentes mulheres – os rebentos de mães com mais milhagem em anos de casamento ganham mais. E os primogênitos também. Mas por quê, afinal, a poligamia era a regra lá atrás?

“Provavelmente porque havia mais mulheres do que homens entre os judeus, que com frequência estavam envolvidos em guerras violentas. A poligamia, então, era uma forma de garantir a manutenção da população”, diz o historiador Richard Friedman, professor de estudos judaicos da Universidade da Geórgia. “Além disso, uma mulher solteira tinha pouquíssimas alternativas para sobreviver, a não ser se prostituir. Quando um único homem é provedor de várias mulheres, essa questão acaba minimizada.”

O Novo Testamento não cita tantos exemplos de poligamia, mas sugere que ela ainda era comum no século 1. Jesus não toca no assunto, mas, em duas cartas, são Paulo recomenda que os líderes da nova comunidade cristã tenham apenas uma esposa porque “assim eles teriam mais tempo para dedicar aos fiéis”. “O cristianismo só refuta a poligamia quando se aproxima do poder em Roma, que proibia a poligamia”, afirma Brettler. Como escreve santo Agostinho no século 5, “em nosso tempo, e de acordo com o costume romano, não é mais permitido tomar outra esposa”.

Escravas também tinham direitos: se um homem casava com uma de suas servas, só poderia se divorciar se vendesse a mulher para outro senhor. Bom para a mulher, já que evita a situação constrangedora de trabalhar para o ex – e de graça…

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Menos “feminista” é outra lei bíblica: quando um homem morre e deixa uma viúva, seu irmão deve casar com ela, para garantir que o patrimônio da família não se perca. O adultério, adivinhe, é crime – pudera: no Brasil mesmo era crime até 2005 (detenção de 15 dias a 6 meses, segundo o artigo 240 do Código Penal). A diferença é que lá a pena era de morte mesmo – para ambos os envolvidos na relação sexual fora da lei.

Mais brando é são Paulo, que dá orientações para o dia a dia do casal. Ele até diz que os homens são a cabeça da relação, mas pede que os maridos respeitem as esposas. Um grande salto para nas regras de matrimônio da Antiguidade.

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(Good Salt/Superinteressante)

Sexo

Além de polígamo, qualquer homem podia ter amantes, contanto que oficiais. Eram as concubinas. Jacó trabalhou 14 anos pela posse de suas duas mulheres – mas ganhou duas concubinas de bônus pelos bons serviços prestados.

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Uma série de regras estabelece como deve ser a vida sexual também: toda mulher tem de se casar virgem, ou então poderá ser dispensada pelo marido – por outro lado, se o marido acusar falsamente a esposa de não ter casado casta, deve permanecer com ela até o fim da vida. Para comprovar sua pureza, a acusada devia apresentar testemunhas dispostas a defender a limpidez do passado dela. As leis sexuais, enfim, eram bem abrangentes.

“Quem tiver relações com um animal deve ser morto”, diz o Êxodo. E masturbação também não pode. Como diz o sutil são Paulo: “A mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao marido. E o marido não pode dispor do seu corpo: ele pertence à esposa”. “O sexo na Bíblia é cheio de contradições”, diz o arqueólogo Michael Coogan, autor de God and Sex (“Deus e o Sexo”). “É de se desconfiar que fossem realmente levados a sério naquela época.”

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(Good Salt/Superinteressante)

Bíblia S/A: negócios e finanças

A ética comercial do Livro Sagrado tem regras simples: não roubar nem trapacear no peso ou fazer nada que prejudique a outra parte. A cobrança de juros também é proibida. As ordens se repetem ao longo da Bíblia, sempre em tom firme: “Não tomarás dele juros nem ganho” (Levítico), “Não emprestando com usura, e não recebendo mais do que emprestou” (Ezequiel). E isso numa época em que a grande moeda corrente eram sacos de grãos.

O fato é que a restrição à cobrança de juros é mais antiga do que a Bíblia. As leis da Babilônia, codificadas mil anos antes, já impunham tetos na cobrança de juros, provavelmente para evitar que os mais espertos enriquecessem à custa de empobrecer o resto da sociedade. Jesus, inclusive, radicaliza. Não só condena os juros como também a cobrança do principal (a quantia emprestada inicialmente).

“E se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que mérito há nisso?” (Lucas). Cristo, aliás, dá muita atenção à cobiça. “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mateus, 6:24), diz. E pede que seus seguidores façam como os lírios-do-campo, que recebem proteção e alimento da divindade sem precisar trabalhar. Também diz, para desespero de um fiel cheio de posses, um de seus maiores hits verbais: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus”.

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Mas existe uma exceção na política bíblica de juros: nos casos em que o empréstimo é concedido a um não-judeu (“um estranho”, nas palavras do Deuterônimo), é permitido praticar a usura. Até por isso os judeus se tornaram os grandes banqueiros da Idade Média. Os cristãos também respeitavam a Bíblia, e não emprestavam a juros entre si (para eles, os “estranhos” eram os judeus). Mas num mundo sem juros o estímulo para conceder empréstimos é nulo. Então a maioria cristã pedia empréstimos para quem os concedia, a juros – as minorias judaicas.

O fato de os judeus não terem direito à posse de terras também ajudava – emprestar a juros era uma das poucas formas de renda possíveis para quem não tinha como plantar para acumular excedentes.

Se o Livro Sagrado proíbe a cobrança de juros, mas só entre judeus, o mesmo vale para a escravidão. Você pode ter escravos, contanto que “sejam das nações que estão ao redor de vós; deles comprareis escravos e escravas”, diz o Levítico. Mas havia uma exceção: era possível a um judeu endividado vender a si mesmo para o credor.

“A escravidão era comum entre todos os povos daquela área, mas os servos eram relativamente bem tratados, sem violência desnecessária. Os próprios israelitas seriam respeitados quando foram forçados ao exílio na Babilônia”, afirma a historiadora Catherine Hezser, professora de história das religiões da Universidade de Londres e autora do livro Jewish Slavery in Antiquity (Escravidão Judaica na Antiguidade).

Por isso mesmo, os israelitas são orientados a conceder uma série de direitos a seus escravos, que servem por 6 anos, e no sétimo são libertados. Se ele for escravizado com a esposa, os dois são libertados juntos. Até para punir os indisciplinados existem regras – se o dono arrancasse um olho do servo, seria obrigado a libertá-lo (Êxodo). Ou seja: a Bíblia também servia como uma espécie de CLT para escravos.

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Mas a parte mais humanista nas relações de trabalho previstas na Bíblia é uma regra para os fazendeiros: sempre deixar sem colher as plantações das bordas do terreno. Para quê? Para que as pessoas mais pobres, sem-terra, possam aproveitar essa parte.

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(Good Salt/Superinteressante)

Marvado vinho

O álcool nem sempre foi consumido com moderação na Bíblia. A palavra “vinho” é citada mais de 200 vezes, e os porres são frequentes: Ló é embebedado pelas filhas e Amnon, filho de Davi, está mais pra lá do que pra cá quando é assassinado por ordem de seu irmão Absalão – a quem interessar: foi pelo crime de ter estuprado a própria irmã, Tamar. “Os sacerdotes são orientados a não beber antes de entrar no templo, e o álcool é relacionado à perda de controle pessoal e da capacidade de diferenciar o bem do mal. Mas nada no texto bíblico proíbe o consumo”, diz historiador Marc Zvi Brettler.

O álcool chega a ser recomendado para curar os males da alma. Está no livro Provérbios: “Dai bebida forte ao que está prestes a perecer, e o vinho aos amargurados de espírito”.

Às vezes, a coisa era uma festa da uva mesmo. Davi, num arroubo de populismo, oferece uma jarra de vinho a cada cidadão de Israel. E tem o primeiro milagre de Jesus: transformar água em vinho. Segundo o evangelista João, no melhor vinho da festa. São Paulo vai mais além: recomenda a um discípulo, Timóteo, que troque a água pelo vinho. A dica tinha um motivo prático. “Às vezes, naquele tempo, era mais saudável consumir álcool do que água, que frequentemente era insalubre”, diz Brettler.

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(Good Salt/Superinteressante)

Saúde e educação

A medicina bíblica é obcecada por manchas na pele – uma preocupação muito compreensível para um povo que vivia no deserto, sob um sol escaldante. Os líderes religiosos é que faziam o papel de médicos. “Quando um homem tiver na pele inchação ou pústula, então será levado a Arão ou a um de seus filhos, os sacerdotes” (Levítico).

Os sacerdotes avaliavam pessoalmente cada caso suspeito, seguindo as regras estabelecidas por Deus, transmitidas a Moisés e transcritas no Livro Sagrado. Primeiro, passar azeite sobre o ferimento (o mesmo produto também é recomendado para lavar os cabelos). Depois de uma semana, no retorno da consulta, vem o diagnóstico definitivo: se o pelo sobre a mancha estiver mais claro, e a ferida estiver mais funda do que a pele, o doente tem lepra.

A partir desse momento, a vítima não tem mais espaço na comunidade. É obrigada a andar pelas ruas, anunciando sua condição para evitar que desavisados entrem em contato com o doente e também sejam contaminados. Ocasionalmente, profetas conseguiam curar leprosos. No Novo Testamento, os sacerdotes cristãos são indicados para curar todo tipo de doença. “A oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará” (Tiago).

A preocupação com a pele não era a única norma de conduta social. Era proibido cortar e aparar a barba ou vestir tecidos que misturassem lã e linho (Levítico) – hoje, entre as comunidades que buscam seguir a Bíblia ao pé da letra, existem testadores de tecido, especializados em monitorar a composição das roupas com um microscópio e impedir fiéis de desobedecer à orientação e cometer pecado. Pela regra, também é importante vestir sapatos seguindo uma ordem – primeiro o pé direito. Se for necessário amarrá-lo, é o contrário: primeiro o esquerdo.

A Bíblia também orienta na educação dos filhos. Eles devem ser apresentados a Deus recém-nascidos e, no caso dos meninos, circuncidados no oitavo dia de vida. Ao longo da infância, os pais têm a obrigação de repassar a eles a palavra de Javé. Já o Novo Testamento é mais pedagógico, digamos assim: enfatiza a educação pelo bom exemplo dos pais, para que os jovens respeitem a Deus e se comportem corretamente por vontade própria, e não porque foram forçados. Criar adultos calmos e centrados também é importante.

“E vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do Senhor” (Efésios). Quando não funcionar, o Antigo Testamento indica que um bastão flexível deve ser usado para bater nos desobedientes. O objeto tem até nome, vara da correção, e é indicado para qualquer situação em que o pai considere que a criança não seguiu suas instruções.

“A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma envergonha a sua mãe” (Provérbios), diz o texto bíblico, que promete: o castigo pode dar frutos no futuro. “Disciplina seu filho, e este lhe dará paz, trará grande prazer a sua alma”. Mas cuidado – a punição não pode ser exagerada: “Castiga seu filho, mas não te excedas a ponto de matá-lo” (Provérbios).

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(Good Salt/Superinteressante)

Homossexualidade

O amor entre homens era punido com a morte – a não ser que você fosse o rei Davi. Os livros Samuel I e Samuel II contam a história da amizade entre ele e Jonatã, filho do rei Saul, antecessor de Davi e candidato natural ao trono de Israel. Davi acaba escolhido para a sucessão, mas isso não abala o relacionamento dos dois. Está escrito: “A alma de Jonatã se ligou com a alma de Davi. E Jonatã o amou, como à sua própria alma” (Samuel I). Em outra passagem, Jonatã tira todas as roupas, entrega a Davi e se deita com ele. “E inclinou-se 3 vezes, e beijaram-se um ao outro” (Samuel I).

“Esse relato incomoda os intérpretes tradicionais da Bíblia, que tentam explicar a relação como uma forte amizade, e o beijo como um costume comum entre homens”, diz o historiador finlandês Martii Nissinen, da Universidade de Helsinki e autor de Homoeroticism in the Biblical World (Homoerotismo no Mundo Bíblico). “Mas é difícil negar a referência à homossexualidade nesse caso, mesmo que a lei judaica a proíba expressamente.”

Em mais de uma ocasião, os relacionamentos entre homens são chamados de “abominação” e “pecado contra Javé”. Para alguns especialistas, o Antigo Testamento também sugere um relacionamento homossexual entre duas mulheres, Noemi e sua nora Rute. Está no livro de Rute um trecho em que ela diz a Noemi: “Aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu.” Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada”.

Sacrifícios

Muito sangue jorra na Bíblia. Abraão é orientado a sacrificar seu próprio filho Isaac a Javé – e teria obedecido, caso um anjo não aparecesse no último minuto dizendo era tudo um teste para sua fé. Além disso, durante os 40 dias em que detalha suas regras ao patriarca, Deus exige uma série de sacrifícios de animais.

Os rituais são descritos com grande riqueza de detalhes. Moisés manda matar e drenar 12 bois. O sangue é colocado numa tina. Metade é lançada no altar e o resto sobre a multidão. Carneiros abatidos são esfregados no corpo de fiéis, que seguram seus rins nas mãos para oferecê-los a Javé. Pedaços de bichos são queimados sobre o altar. Era uma forma de trocar favores com os deuses. Por isso mesmo, o sacrifício de animais existe em praticamente todas as culturas da Antiguidade. “O sangue é o maior símbolo da vida. Ao usá-lo em rituais, os fiéis reforçavam seu vínculo com a divindade e se purificavam”, diz Richard Friedman.

Jesus aparece com uma novidade: não pede sangue animal. “Eu quero a misericórdia, não o sacrifício”. Friedman explica: “Na interpretação cristã posterior, o próprio Jesus é considerado o sacrifício final, que limpa os pecados da humanidade de forma definitiva, o que dispensa a morte de animais”.

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(Good Salt/Superinteressante)

Crime e castigo

Sequestro, adultério, homossexualidade, prostituição… Tudo isso dava pena de morte. Até fazer sexo com uma virgem poderia custar a vida do “criminoso”. Esse caso, aliás, é um labirinto jurídico: se um homem transar com uma virgem dentro de uma cidade, os dois morrem; se for no campo, só ele. A lógica é que, dentro da cidade, alguém ouviria a virgem gritando por socorro caso o sexo não fosse consentido. Se ninguém ouviu é porque ela não gritou, supõe a lei. E se não gritou é porque cometeu um crime também – o de consentir. No campo é diferente: não dá para saber se ela gritou ou não. Na dúvida, então, morre só o homem.

Matar também dava em pena de morte, claro: “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu” (Gênesis). Adorar outros deuses também trazia problemas sérios, já que é sinal de desobediência a um mandamento fundamental: “Não terás outros deuses diante de mim”. Moisés chega a mandar matar 3 mil judeus por causa disso.

Matar o próprio escravo também trazia problemas. “Se alguém ferir seu escravo ou sua escrava com um bastão e morrer sob suas mãos, seja punido severamente, mas se sobreviver um ou dois dias, não seja punido, porque é seu dinheiro” (Êxodo). A pena indicada, nesse caso, é o açoite, com um limite de 40 chibatadas.

O Levítico também manda matar prostitutas a pedradas, a não ser que a moça de vida fácil seja filha de um sacerdote. Aí a punição é pior: “Com fogo será queimada”. A regra seria fortemente contestada por Jesus, com a famosa frase que salvou Maria Madalena: “Aquele que não tem pecado atire a primeira pedra”. Ainda assim, nem todos os autores do Novo Testamento parecem concordar com a recomendação de Cristo. As cartas de São Paulo, por exemplo, defendem o respeito à lei romana, que autoriza o apedrejamento a prostitutas.

Como o Antigo Testamento não aceita o aborto, é crime provocá-lo, mesmo que por acidente, mas a pena depende da gravidade da situação. Se dois homens brigarem e, no meio do quebra-pau, ferirem sem querer uma mulher grávida que estava por perto e provocarem a morte do feto, os dois vão pagar uma indenização estabelecida pelo marido – que perdeu um bem precioso, seu herdeiro. Agora, se a mãe ficar gravemente ferida ou morrer, então vale a famosa lei do Talião – “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe” (Êxodo).

Em geral, a pena de morte por apedrejamento não precisava ser julgada pelos sacerdotes. A maioria dos crimes recebia a punição na hora, diante de um grupo de pessoas que presenciaram a cena ou que estavam por perto da cena do crime e foram informadas.

Mas também existem regras mais amenas, estas, sim, negociadas dentro dos tribunais e com direito a defesa do acusado. Por exemplo: o Antigo Testamento estabelece que toda mulher menstruada é tão impura que até mesmo os lugares onde ela se senta devem ser evitados. Se um homem encostar na esposa, na mãe ou na irmã nesse período do mês, ele não pode sair de casa por sete dias. E, se fizer isso, pode ter de pagar uma multa.

Em caso de roubo e furto ou qualquer outro prejuízo ao patrimônio alheio, como matar por acidente o cabrito do vizinho, a pena é o pagamento de 4 vezes o valor do bem que foi levado ou destruído. Se a pessoa que cometeu a infração não tivesse condições de pagar, podia ser vendida como escrava.

Tudo isso, é claro, são aspectos de uma vida cotidiana que não existe mais. Mas com a mensagem essencial dos textos sagrados é diferente. E essa mensagem pode ser resumida em uma frase, que também ecoa em todas as grandes religiões da Terra: não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você. Ou mais ainda, como Jesus diz no Evangelho de Mateus: “Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós”. Está aí uma recomendação impossível de refutar. E que geralmente traz ótimos resultados. Em qualquer lugar, em qualquer tempo.

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