A guerra dos mundos
O encontro na Suíça concentra, desde 1971, a nata da elite econômica, ferrenha defensora do livre-comércio, do Estado mínimo, da economia regulada pela lei da oferta e da procura, sem a interferência dos governos.
Rodrigo Ratier
Protegidos pela melhor segurança que 13 milhões de dólares podem comprar, 2 150 executivos, políticos e acadêmicos de 99 países reuniram-se entre 23 e 28 de janeiro em Davos, uma cidadezinha encravada nos Alpes suíços. Na mesma época, espalhados em quase 10 mil barracas de lona armadas no Parque Harmonia, às margens do rio Guaíba, ou aproveitando a “hospedagem solidária” dos gaúchos, 100 mil estudantes, militantes da esquerda e membros de ONGs de 156 países juntaram-se em Porto Alegre. Dos dois lados, o objetivo era o mesmo: debater os rumos do planeta. Fora isso, o Fórum Econômico e o Fórum Social Mundial nasceram para serem opostos nas formas de organização, no público e nas visões de mundo.
O encontro na Suíça concentra, desde 1971, a nata da elite econômica, ferrenha defensora do livre-comércio, do Estado mínimo, da economia regulada pela lei da oferta e da procura, sem a interferência dos governos. Criado em janeiro de 2001 para aproveitar a coincidência das datas, o evento em Porto Alegre é uma espécie de anti-Davos. Descontente com a receita liberal de globalização, a reunião afirma que a abertura econômica aumentou as dívidas dos países pobres, a economia sem controle virou palco da ação de especuladores e os governos liberais não dão conta do bem-estar dos cidadãos.
No entanto, alguns sinais de comunicação entre esses dois mundos puderam ser sentidos em 2003. Abalado pelos prejuízos nas bolsas de valores e pela crise mundial, o Fórum Econômico abriu espaços para discussões acerca das saídas para retomar o crescimento e amenizar a pobreza. Nesse cenário, a presença do presidente do Brasil foi saudada como boa notícia. Ponto para Lula. Primeiro governante a participar no mesmo ano dos dois fóruns, ele propôs um fundo internacional de combate à fome e articulou a discussão de temas comuns nas próximas edições dos dois eventos. “Se a visita de Lula não altera o equilíbrio de forças, tem o mérito de abrir um precedente que pode servir como ponto de contato entre Davos e Porto Alegre”, diz a historiadora Zilda Iokoi, da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, começa a haver, no Fórum Econômico, a percepção de que é preciso ceder mais direitos ao mundo em desenvolvimento.
Do outro lado do mundo, algumas das organizações reunidas em Porto Alegre começam a acreditar na perspectiva de mudar o sistema a partir de suas próprias regras. As propostas incluem a taxação das transações internacionais, o cancelamento das dívidas externas ou o fechamento de paraísos fiscais. Além de manifestações contra o trabalho infantil, que contaram com o apoio da Organização Internacional do Trabalho, das Nações Unidas. Sobrou espaço ainda para um pouco de autocrítica. “O grande problema é que faltou costurar uma declaração final que abrangesse ao menos os temas consensuais, como os protestos contra a guerra e a militarização”, diz o sociólogo Emir Sader, professor da USP e integrante do Conselho Internacional do Fórum Social. “Esse é um desafio que enfrentaremos nos próximos encontros.”
Agenda global
Duas visões que dividem o mundo
TEMAS
DESIGUALDADE MUNDIAL
FÓRUM ECONÔMICO (Davos)
• A globalização e o crescimento econômico reduzem a desigualdade
• Políticas do Banco Mundial e do FMI auxiliam a economia dos países em desenvolvimento
• Perdão parcial das dívidas de 26 países pobres (não inclui o Brasil)
FÓRUM CIAL (Porto Alegre)
• A globalização aumentou a desigualdade e concentrou renda
• FMI e Banco Mundial prejudicam países em desenvolvimento
• Cancelamento total das dívidas externas de todos os países pobres (incluindo o Brasil)
TEMAS
COMBATE À POBREZA
FÓRUM ECONÔMICO (Davos)
• Redução da pobreza passa pelo crescimento da economia e por governos estáveis
• Ênfase no assistencialismo: Lula propôs um fundo de combate à fome, bancado pelos sete países mais ricos
• Ênfase na filantropia: Bill Gates doou 200 milhões de dólares para pesquisas de doenças endêmicas em países pobres
FÓRUM CIAL (Porto Alegre)
• Redução da pobreza passa pela inclusão de um bilhão de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por dia
• Sozinhos, assistencialismo e filantropia não resolvem problema
• Ênfase em programas de segurança alimentar, distribuição de renda e de propriedade, como a reforma agrária
TEMAS
AMBIENTE
FÓRUM ECONÔMICO (Davos)
• Modelo de desenvolvimento atual pode ser prejudicial e precisa de ajustes
• Opção por acordos internacionais e medidas graduais para conter a degradação no longo prazo
FÓRUM CIAL (Porto Alegre)
• Modelo de desenvolvimento atual é predatório e precisa ser substituído
• Opção pelo desenvolvimento sustentável (exploração de riquezas naturais com pouco prejuízo ao meio ambiente)
TEMAS
RUMOS PARA A ECONOMIA
FÓRUM ECONÔMICO (Davos)
• Prioridade: reativar o crescimento
• Resgatar a confiança nas empresas
• Resgatar a confiança nas bolsas de valores e no mercado financeiro
• Governo deve cuidar de setores básicos, como saúde e educação
FÓRUM CIAL (Porto Alegre)
• Prioridade: distribuir riquezas
• Conter avanço das multinacionais, que destroem a produção local e empregam pouco
• Criação de taxas sobre transações financeiras internacionais
• Governo deve garantir o bem-estar e pode intervir na economia
TEMAS
COMÉRCIO ENTRE PAÍSES
FÓRUM ECONÔMICO (Davos)
• Livre-comércio é a melhor forma de gerar e compartilhar riqueza
• Fim dos protecionismos
• Respeito às regras estabelecidas na OMC
FÓRUM CIAL (Porto Alegre)
• Livre-comércio é desastroso para os países pobres.
• Fim dos protecionismos dos países ricos
• Fim do domínio americano na OMC
TEMAS
GUERRA
FÓRUM ECONÔMICO (Davos)
• Ação militar no Iraque deve ter aprovação da ONU (Estados Unidos e Inglaterra se isolaram)
• Maiores investimentos militares para conter o terrorismo
FÓRUM CIAL (Porto Alegre)
• Contra a invasão do Iraque; solução pacífica para os 80 conflitos em andamento
• Reduzir gastos com armas (hoje, são 800 bilhões de dólares por ano)