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A reconstrução de Anita

Ela cometeu adultério, trocou de marido e se casou com a revolução. Lutou em batalhas no Brasil e foi perseguida na Itália

Por Paulo Markun
Atualizado em 15 dez 2016, 18h48 - Publicado em 31 jul 1999, 22h00

Ana Maria de Jesus Ribeiro mudou de nome e carimbou seu passaporte para a História aos 18 anos, quando abandonou o primeiro marido, um sapateiro, para embarcar no navio comandado pelo revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882). Virou Anita. Dez anos depois, em 4 de agosto de 1849 – há exatos 150 anos –, com a cabeça a prêmio e perseguida pelo Exército austríaco, morreu nos braços de Garibaldi, numa fazenda em Mandriole, 400 quilômetros ao nordeste de Roma, na Itália. Lá, é venerada como heroína da unificação. Mas, no Brasil, onde nasceu e combateu ao lado dos rebeldes republicanos na Revolução Farroupilha (1835-1845), é quase desconhecida.

Tanto que só passou a existir, oficialmente, há três meses. Só no último dia 11 de maio, o cartório de Laguna, em Santa Catarina, por iniciativa da Câmara Municipal, expediu o chamado mandado de registro de nascimento tardio. O documento afirma que Ana Maria de Jesus Ribeiro nasceu em Laguna, em 30 de agosto de 1821. Ninguém sabe se a data e o local estão corretos. Naquela época não existia certidão de nascimento e o chamado “assento de batismo” jamais foi encontrado.

Heroína sem rosto

A história de Anita daria um filme de ação. Várias vezes ela lutou com armas de fogo. Capturada em combate, fugiu embrenhando-se pela mata por mais de uma semana. Salvou o filho recém-nascido, partindo a galope, seminua, no meio da noite. Em Montevidéu, no Uruguai, teve mais três filhos, enquanto o marido lutava ao lado dos republicanos uruguaios contra a invasão argentina comandada pelo caudilho Juan Manuel Rosas (1793-1877). Foi para a Itália, acompanhou muitas vitórias e derrotas de Garibaldi em batalhas e, mesmo sem lutar, cuidou de feridos e organizou hospitais. Conheceu reis e revolucionários. Foi perseguida até morrer. Virou um mito.

De tudo o que se escreveu sobre Anita, boa parte é pura ficção. A trajetória da moça humilde de Laguna foi deturpada tanto pelos entusiastas, que a vêem como uma supermulher, quanto pelos críticos, que a consideram uma analfabeta atraída por um sedutor latino – uma “china”, como os gaúchos chamavam as mulheres que iam atrás dos homens na guerra, levando os filhos junto. A diferença é que ela era a mulher do chefe.

Nem seu rosto é descrito com precisão. Dos quadros e desenhos que a representam, apenas um é tido como fiel a seus traços. Até os relatos daqueles que a viram são contraditórios. Para uns, tinha “pele escura, traços interessantes e delicada constituição física”. Para outros, “olhos ardentes e másculo peito”. Houve quem confundisse suas sardas com marcas de varíola.

Apesar da mitologia heróica, da depreciação crítica e das lacunas documentais, a mulher que surge da reconstrução histórica de Anita não tem nada de duvidoso naquilo que é mais importante: caráter. A catarinense foi uma heroína em tudo, na paixão, na família e na guerra.

Ela trocou o sapateiro pelo aventureiro

A certidão que comprova o casamento de Anita, em 1835, com o sapateiro Manuel Duarte de Aguiar, quando ela tinha 14 anos, está bem arquivada na Arquidiocese de Tubarão, em Santa Catarina, vizinha de Laguna. Porém, pouco sabemos sobre seus anos de casada. Depoimentos esparsos indicam que o marido era um tipo calado e passava noites pescando. Bem diferente do italiano sedutor, de 32 anos, que chegou a Laguna no comando do barco farroupilha Seival, em 20 de julho de 1839.

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Giuseppe Garibaldi, marinheiro, republicano e socialista, fugira de Gênova em 1834, condenado à morte por participar de um motim no reino de Piemonte, noroeste da Itália. Viera para a América do Sul seguindo milhares de imigrantes italianos. No Rio de Janeiro, encontrou exilados italianos, aliados dos republicanos uruguaios liderados por José Rivera (1790-1854), que apoiavam a revolta republicana dos farrapos gaúchos.

Por intermédio desses, obteve uma carta de corsário da República de Piratini, recém-proclamada pelos rebeldes em 1836, no Rio Grande do Sul. Assim, ganhou o “direito” de atacar navios do Império do Brasil. Em 1837, Garibaldi zarpou do Rio de Janeiro para Montevidéu, num barco de pesca, com nove italianos, atacando navios brasileiros ao longo da costa. Do Uruguai rumou para Laguna, para continuar a luta.

Seu encontro com Anita, que era sobrinha de um farroupilha, foi fulminante. Em sua autobiografia, Memorie di Garibaldi, o italiano não economizou pontos de exclamação: “Um homem que tinha conhecido convidou-me a tomar café em sua casa. Entramos e a primeira pessoa que me apareceu era Anita. A mãe dos meus filhos! A companheira da minha vida, nos bons e nos maus momentos! A mulher cuja coragem tantas vezes ambiciono!”

Lua-de-mel no mar

Anita largou o sapateiro e seguiu a paixão numa perigosa viagem de lua-de-mel pela costa brasileira. Atacaram embarcações e foram perseguidos pela Marinha imperial. Já no primeiro combate, em 1839, no litoral catarinense de Imbituba, mostrou fibra, de carabina em punho. Mandada ao porão do barco para se proteger, voltou com três marujos que se escondiam do tiroteio.

Diversas vezes mostrou sangue-frio. Na batalha em que as tropas imperiais recuperaram Laguna, em novembro de 1839, teve comportamento heróico e corajoso. Só abandonou a luta no último momento, depois de resgatar o amante.

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Derrotados os farrapos em Santa Catarina, o casal fugiu para o Uruguai. Ali, Garibaldi foi convidado pelo governo para lutar contra as tropas argentinas do caudilho Juan Manuel Rosas, que invadira o país em 1839 para controlar o comércio do Rio da Prata. O italiano ganhou o comando de um navio e organizou a Legião Italiana, um batalhão de imigrantes famosos pelas camisas vermelhas. Chefiou a defesa de Montevidéu. Suas vitórias militares levaram sua fama para a Europa. Enquanto isso, a brasileira se dedicava ao lar e mais três filhos. E aprendia a fazer política.

Vocação para herói

Giuseppe Garibaldi comprou briga em dois continentes

Garibaldi nasceu em 1807, em Nizza, a atual Nice francesa. Era marinheiro, gostava mais de aventuras do que de livros. Odiava padres, tinha voz de tenor, barba e cabelos ruivos e um belo nariz grego. Em Gênova, foi amigo do republicano Giuseppe Mazzini (1805-1872), o ideólogo da unificação italiana.

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Exilado na América do Sul de 1834 a 1848, aprendeu técnicas de guerrilha e batalha. Voltou para lutar pela independência Italiana. Em 1849, elegeu-se deputado à Assembléia Constituinte de Roma e liderou a proclamação da República na cidade. Chefiou sua defesa contra um exército francês mas foi derrotado. Exilou-se de novo e retornou à Itália em 1854 como general piemontês. Conquistou a Sicília e Nápoles em cinco meses e entregou-as ao rei Vitor Emanuel II. Lutou contra os austríacos nos Bálcãs, em 1866, e na França contra a invasão da Prússia, em 1870. Nesse ano, viu a Itália unificar-se, o ideal de toda a sua luta. Morreu em 1882, como herói nacional, na Ilha de Caprera, ao norte da Sardenha.

Catorze meses de amor e guerra

Uma nota curta na quarta página do jornal genovês La Lega Italiana de 3 de março de 1848 informava: “Ontem chegou a este porto a esposa do general Garibaldi com dois filhos. Diversos cidadãos presentearam-na com uma bandeira tricolor italiana em sinal de homenagem”. O periódico errou. Na verdade, a brasileira levava três filhos, Menotti, Teresita e Ricciotti. Depois de alguns dias na casa de amigos, Anita partiu para Nice, para morar com a sogra.

Em junho, chegou Giuseppe. Uma multidão esperava por ele e pelos sessenta camisas vermelhas vindos do Uruguai. Foram dias de alegria, até ele partir com a tropa para Gênova, para oferecê-la ao rei Carlos Alberto, do Piemonte – o mesmo que tentara derrubar em 1834 e que o condenara à morte.

Garibaldi engoliu as divergências com o rei porque os patriotas queriam a unificação da Itália, que o Piemonte liderava. Na época, a península era um aglomerado de reinos. Os principais eram os Estados Pontifícios (do papa); o Piemonte-Sardenha (dinastia de Savóia, italiana); Veneza, Lombardia e Tirol (dinastia Habsburgo, austríaca); Parma e o Reino das Duas Sicílias (dinastia Bourbon, espanhola). Uma confusão.

Soldado e grávida

Mas, se Giuseppe imaginava que conseguiria manter Anita em casa enquanto lutava, estava enganado. Em novembro, a brasileira foi com ele até Florença. Só voltou para Nice, sob protesto, quando a Legião Italiana – agora um exército crescente de camisas vermelhas – se preparava para cruzar os Montes Apeninos para enfrentar os austríacos. Em fevereiro de 1849, repetiu a teimosia, seguindo o marido até Rieti, perto de Roma. Só voltou para casa porque adoeceu.

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Ela não desistia. Em junho de 1849, Garibaldi comandava a defesa da República de Roma contra os franceses. Um dia, quando comia pão com queijo com os oficiais no quartel-general de Villa Spada, alguém bateu à porta. O comandante abriu, abraçou quem entrava e disse: “Senhores, temos mais um soldado!” Era Anita, grávida, que havia atravessado a região controlada pelos austríacos para juntar-se a ele.

Mas os franceses saíram vitoriosos e Roma se rendeu. Garibaldi não aceitou a derrota e partiu em direção a Veneza. Anita foi junto, vestida como homem. Foi sua última viagem. As cavalgadas noturnas, a má alimentação e as noites ao relento minaram sua saúde. Ao chegar à República de São Marino, ardia de febre. Ainda assim, continuou.

Em 1º de agosto, ao chegarem a Cesenatico, no litoral do Mar Adriático, tomaram barcos para alcançar mais rapido Veneza, mas foram perseguidos por uma esquadra austríaca. Desembarcaram numa praia deserta – ela, carregada. Dois dias depois chegaram a uma fazenda em Mandriole, perto de Ravena, onde um médico os esperava. Tarde demais. Na noite do dia 4 de agosto de 1849, ao ser finalmente colocada numa cama, Anita morreu, talvez de malária. Garibaldi, arrasado, não assistiu ao enterro. Saiu às pressas, para escapar dos austríacos. O corpo da brasileira foi enterrado no cemitério da Igreja de San Alberto, em Madriole. Em 1932, seus restos mortais ganharam um mausoléu em Roma. Lá continuam. Até hoje.

Para saber mais

De Sonhos e Utopias. Yvonne Capuano, Editora Melhoramentos, São Paulo, 1999.

Anita Garibaldi: Perfil de uma Heroína Brasileira. Wolfganfg Ludwig Rau, Editora Edeme, Florianópolis, 1975.

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Mensagem de esperança

Há apenas quatro cartas de autoria comprovada de Anita Garibaldi.

Se Anita era alfabetizada ou não é mais uma lacuna no enredo da catarinense idolatrada pelos italianos.

A caligrafia diferente em cada uma das cartas consideradas autênticas indica que as mensagens foram ditadas. Nesta mensagem, de 7 de março de 1848, enviada de Nice para Montevidéu, ela manda um recado animador ao marido:

“As coisas caminham muito bem na Itália. Em Nápoles, na Toscana e no Piemonte foi promulgada a Constituição e Roma a terá dentro em pouco. (… ) Por todo canto não se fala em outra coisa a não ser unir a Itália mediante uma Liga política e alfandegária e depois liberar os companheiros lombardos do domínio estrangeiro (…). Tenho recebido mil finezas. Sua devotada serva, Ana Garibaldi.”

No Brasil e no Uruguai

Em nove anos, o casal teve quatro filhos e guerreou nos dois países.

1. Primeiro encontro

Em agosto de 1839, Garibaldi conheceu Anita. Em suas memórias, conta que a viu na casa de um conhecido, em Laguna. Na hora, teria dito apenas uma frase: “Tu devi esser mia”, ou seja, “Você tem que ser minha”. O suposto encontro, à beira de uma fonte de água mineral, virou uma das versões românticas consagradas da mitologia do casal.

2. Combate

Em novembro de 1839, quando a esquadra imperial atacou os farrapos em Laguna, Anita comandou as baterias do navio Rio Pardo. Ela mesma fez a pontaria do canhão. A brava cruzou a zona de combate doze vezes, num bote, carregando munição e feridos.

3. Prisão

Em dezembro de 1839, os farrapos sofreram uma derrota decisiva em Curitibanos, em Santa Catarina. Garibaldi conseguiu fugir com um pequeno grupo. Anita ficou para trás e acabou presa. Mas conseguiu escapar a cavalo e se escondeu durante oito dias no mato. Depois, reencontrou Garibaldi em Lages.

4. Tropeiros

Em setembro de 1840, Anita e o filho Menotti, de 12 dias, foram atacados em São Luís das Mostardas. De madrugada, ela fugiu com o bebê, a cavalo, de camisola, quase nua. Garibaldi, então, desistiu da guerra e decidiu ir para o Uruguai. Atravessaram o Rio Grande do Sul em cinqüenta dias, levando 900 reses. Chegaram apenas 300.

5. Montevidéu

De 1841 a 1848, em Montevidéu, Anita teve mais três filhos – Ricciotti, Teresita e Rosita, que morreu com 1 ano de idade – e casou-se com o amante. Garibaldi virou comandante da Marinha uruguaia e fundou a Legião Italiana, com imigrantes italianos republicanos. Na casa da Calle 25 de Mayo, Anita recebia revolucionários e aprendia a fazer política.

As batalhas na Europa

Na Itália, Anita Garibaldi viveu só um ano intenso

1. Festa em Nice

Em março de 1848, Anita e seus filhos chegaram a Nizza (Nice) e foram recebidos por 3 000 italianos – uma prova de que o proscrito Garibaldi se tornara um herói. Em terras italianas, ela não se conformou com o papel de mãe e esposa. Por três vezes, deixou Nice para ir atrás do marido, que percorria a Itália, lutando pela independência e pela unificação.

2. Madrinha da tropa

Em fevereiro de 1849, na cidade de Rieti, ao norte de Roma, Anita passou um mês feliz ao lado de Giuseppe. Lá ela organizou o hospital militar, mas ficou doente e teve de voltar a Nice quando Garibaldi partiu com os 1 264 homens armados para atacar os austríacos.

3. Fuga de Roma

Em julho de 1849, quando os romanos deram por perdida a guerra contra os franceses, Garibaldi fugiu da cidade com 4 000 homens e a mulher. Anita não aceitou a proposta de ficar em Roma ou ir para o exílio nos Estados Unidos. Foi junto, vestida como soldado, de cabelos curtos e grávida de cinco meses.

4. Final trágico

Em agosto, depois de uma fuga de 550 quilômetros, Garibaldi e Anita, gravemente doente, chegaram a uma fazenda em Mandriole, perto de Ravena, no nordeste de Roma, onde um médico os esperava. Tarde demais. A brasileira morreu nos braços do marido. Sempre acossado pelos austríacos, Garibaldi partiu sem ver a esposa ser enterrada numa cova rasa.

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