“As Provadoras de Hitler”: filme resgata história das mulheres forçadas a degustar os pratos do ditador
Apesar da falta de documentação, caso veio à tona graças ao relato de uma sobrevivente alemã. Longa inspirado no depoimento chega ao Brasil em outubro.

Imagine ter de comer três vezes ao dia sem saber se aquela poderia ser a última refeição da sua vida. Foi essa a rotina de um pequeno grupo de jovens alemãs durante os dois últimos anos e meio da Segunda Guerra Mundial. Elas eram obrigadas a provar a comida preparada para Adolf Hitler para protegê-lo de um possível envenenamento.
Essa história permaneceu praticamente desconhecida por décadas, até vir à tona em 2012, quando Margot Wölk, então com 95 anos, revelou à revista alemã Der Spiegel ter feito parte desse grupo.
Secretária de profissão e casada com um soldado alemão desaparecido no front, Wölk contou que, a partir de 1942, foi levada diariamente, junto a outras 14 mulheres, para uma escola próxima à Toca do Lobo” (Wolfsschanze), quartel-general do Führer na Prússia Oriental (região hoje dividida por Polônia, Letônia e Rússia). Ali, antes que os pratos fossem enviados ao líder nazista, elas tinham de comê-los.
As refeições, todas vegetarianas, seguiam a dieta restrita de Hitler: legumes, massas, arroz e frutas – algumas delas, exóticas e raras em plena guerra. “A comida era boa, muito boa. Mas não podíamos apreciá-la”, disse Wölk em entrevista à imprensa alemã em 2013. “Algumas meninas choravam ao começar a comer, de tanto medo. Tínhamos de comer tudo e esperar por uma hora. Cada refeição era uma roleta-russa.”
Segundo seu relato, a rotina se intensificou após julho de 1944, quando o coronel Claus von Stauffenberg liderou a mais conhecida tentativa de assassinato contra Hitler – a chamada Operação Valquíria, uma bomba escondida em uma maleta na Toca do Lobo. A conspiração fracassou, mas aumentou ainda mais o clima de paranoia no círculo íntimo do ditador.
Wölk sobreviveu por pouco. No fim de 1944, quando o Exército Vermelho da União Soviética se aproximava, um tenente da SS (principal força de segurança e repressão do regime nazista) a colocou em um trem para Berlim. Mais tarde, ele lhe contou que as outras provadoras haviam sido fuziladas pelos soldados soviéticos.
Após a guerra, Wölk voltou à capital alemã devastada, onde foi vítima de múltiplos estupros cometidos por soldados soviéticos. Viveu em silêncio até quase o fim da vida, quando decidiu relatar o que descreveu como os seus “piores anos”. Ela morreu em 2014, aos 96 anos.
Novo filme
Essa história chega agora aos cinemas brasileiros no filme “As Provadoras de Hitler”, dirigido pelo italiano Silvio Soldini, que será exibido no Festival do Rio, que acontece entre 2 e 21 de outubro. A trama acompanha Rosa Sauer, jovem berlinense que, em 1943, se refugia na casa dos sogros, perto da Toca do Lobo, enquanto o marido luta no front. Logo, ela é forçada pela SS a integrar o grupo de mulheres que provam os pratos destinados a Hitler.
Interpretada por Elisa Schlott, Rosa nunca vê o ditador de perto, mas sente sua sombra constante. Ao lado de outras provadoras, ela enfrenta o medo diário da morte, constrói laços de amizade e até vive um romance ambíguo com um oficial da SS, vivido por Max Riemelt.
O roteiro é inspirado no romance Le assaggiatrici (2018), da italiana Rosella Postorino, traduzido em mais de 30 idiomas. Postorino criou uma narrativa ficcional a partir da história de Wölk, mesclando fatos e especulação – como o caso amoroso, que nunca foi confirmado pela sobrevivente.
Confira o trailer a seguir:
“Gostei do fato de a história não julgar os personagens principais, mas mostrá-los como humanos, presos em um sistema horrível”, disse Soldini em entrevista à DW. O diretor, que já havia evitado obras de época, afirmou ter se interessado pelo enfoque em mulheres, algo incomum no vasto repertório cinematográfico sobre a Segunda Guerra.
A atriz Elisa Schlott destacou ao The Guardian o aspecto coletivo da experiência: “Não vejo este como um filme sobre Hitler, mas sobre essas mulheres e a comunidade que elas criaram sob a nuvem negra do nazismo.”
Lançado na Itália em março, o filme já atraiu quase meio milhão de espectadores e foi bem recebido no Festival de Berlim. No Brasil, será exibido no Festival do Rio, um dos principais eventos de cinema do país, nos dias 7, 9 e 11 de outubro.
Segundo Soldini, os paralelos com a atualidade são inevitáveis: “Assim como os provadores, todos nós podemos sentir a violência política do presente, mesmo que tenhamos o privilégio de boas refeições.”
Ficção e realidade
O testemunho de Margot Wölk continua cercado de dúvidas. Historiadores que pesquisaram a rotina da Toca do Lobo – onde cerca de 2.000 pessoas trabalhavam em turnos – nunca encontraram documentos ou depoimentos que confirmassem a existência de um grupo de provadoras de comida.
Felix Bohr, autor de Antes da Queda: os anos de Hitler na Toca do Lobo, relatou ter passado anos em arquivos sem achar menção às mulheres. Segundo ele, a primeira nutricionista a cozinhar separadamente para Hitler, Helene von Exner, foi contratada em julho de 1943. Antes disso, um cozinheiro chamado Otto Günther preparava refeições em grandes panelas para os líderes nazistas baseados na Toca do Lobo.
Quanto às refeições, sua pesquisa revelou reclamações frequentes de visitantes do enclave sobre o menu “sem graça”, geralmente composto de sopa de feijão, vegetais cozidos e batatas. “Ao longo de toda a investigação intensiva sobre as estruturas da Toca do Lobo, não encontrei nenhuma fonte que confirmasse a história de Margot Wölk – mas também não encontrei nenhum documento que a negasse”, disse à DW.
Outro historiador, Sven-Felix Kellerhoff, questionou a lógica de transportar pratos para fora da área mais protegida do complexo. Em artigo para o jornal Welt, destacou que Hitler, que sofria de problemas digestivos nos últimos anos, passou a consumir refeições especiais preparadas em uma cozinha separada dentro da chamada Sperrkreis 1 (Zona de Segurança 1). Para ele, não faria sentido enviar esses pratos para fora da área mais restrita para que as mulheres os degustassem previamente.
Ainda assim, não há provas de que Wölk tenha inventado a história. Para estudiosos, suas memórias tardias podem ter sido moldadas pelo trauma e pelas narrativas pós-guerra. É nesse ponto que entra a leitura artística. O diretor opta por acreditar que a história de Wölk é verdadeira. “Mas se não fosse, não faria muita diferença para mim. O filme e o livro dizem algo importante sobre poder, ditadura, violência e seu impacto sobre as mulheres”, concluiu ao The Guardian.