Cerveja, atropelamento e 39 °C: a maratona olímpica de Paris em 1900
Sinalização errada, pausa para uma gelada e ouro para um padeiro francês, que na verdade era uma marceneiro de Luxemburgo – teve de tudo na primeira vez que Paris sediou os Jogos
Quando se trata de bizarrices, a maratona é talvez a prova olímpica com a maior ficha corrida para mostrar. Houve o carteiro cubano Félix Carvajal em 1904, por exemplo, que perdeu todo o dinheiro no jogo ao chegar em St. Louis para as Olimpíadas e foi correr de calça (um colega se compadeceu e cortou a vestimenta com uma tesoura).
Houve também o ex-padre que invadiu o circuito de Atenas (2004) e agarrou o brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima, que liderava a prova e acabou ficando só com o bronze.
E houve a maratona de 1900, em Paris, as primeiras Olimpíadas sediadas na cidade. Apenas 14 corredores participaram do circuito de 40.260 km (hoje, a prova tem 42.195 km), que partia do parque Bois de Boulogne e terminava no estádio La Croix-Catelan, um trajeto desenhado para circunavegar as fortificações da capital francesa. Um dos atletas, canadense, chamava-se Ronald McDonald!
Logo no começo, os três britânicos que participavam desistiram da prova. Isso porque o trajeto da maratona simplesmente não foi isolado para os habitantes da cidade. Os atletas tinham que disputar espaço com carroças, bicicletas, bondes, pedestres irritados e até mesmo, veja só, rebanhos de gado. O Canadá tinha um segundo atleta, Richard Grant, que reclamou ter sido atingido por uma bicicleta enquanto estava na liderança.
Outro grande problema eram as condições climáticas – a maratona de Paris 1900 foi a mais quente da história da prova, com relatos variando entre 35 ºC e 39 ºC. Para ajudar, a largada foi dada às 14h36, no momento mais quente do dia.
Quem logo pediu arrego foi o francês George Touquet-Daunis, um dos favoritos ao ouro. O que se diz é que, exausto com o calor, o atleta resolveu parar num dos bares locais para tomar umas cervejas. De lá, ele não saiu: estava quente demais para continuar.
O favoritismo passou então para o suíço Ernst Fast, mas ele se deparou com um grande desafio: encontrar o caminho certo. Ao longo da prova, havia apenas seis checkpoints para sinalizar aos corredores que eles estavam no sentido correto.
Correndo em um trajeto não isolado e mal sinalizado, Fast precisou parar e pedir direções para um policial francês. O homem ajudou, claro – acidentalmente indicando o caminho errado. Com isso, Fast acabou perdendo a liderança e, eventualmente, a medalha de ouro. Conta-se que o policial, após descobrir que privou o suíço da medalha devido ao seu engano, cometeu suicídio.
Com a corrida aberta, quem acabou ganhando foi o francês Michel Théato, atingindo a marca de 2h59m45s. Mas a polêmica logo veio: o americano Arthur Newton e outras delegações acusaram Théato de usar atalhos para trapacear e chegar na frente. Segundo eles, o vencedor havia trabalhado como entregador numa padaria e conhecia muito bem o mapa da cidade.
As acusações foram desmentidas (Théato na verdade era marceneiro), mas o atleta só foi receber sua medalha de ouro em 1912. Isso se deveu a dois motivos: primeiro, porque a maratona não aparecia no programa oficial dos Jogos de 1900. Segundo, porque as medalhas só começaram a ser distribuídas nos Jogos de 1904.
E não acabou por aí. Muitos anos mais tarde, já no século 21, o historiador Alain Bouillé descobriu que Théato na verdade havia nascido em Luxemburgo. Em 2004, o Grão-Ducado daquele país formalizou no COI um pedido para que a medalha de ouro do atleta fosse oficializada para sua nação, em vez da França, mas o pedido foi negado.
Com isso, Luxemburgo permanece com uma única medalha de ouro em toda sua história nas Olimpíadas, a de Josy Barthel em 1952 (duas se você contar a medalha de François Faber em 1920, mas ele competiu por um time misto).
Após as Olimpíadas, Michel Théato se tornou maratonista profissional, mas nunca mais conseguiu um resultado digno de nota.