Cleópatra: A rainha dos Reis
Para reviver a glória dos faraós do Egito, Cleópatra seduziu os dois mais poderosos chefes romanos de seu tempo. Um terceiro a derrotou.
Ano 51 a.C. Cleópatra, aos 18 anos, torna-se rainha do Egito com a morte de seu pai Ptolomeu XII. É provável que os oráculos profetizassem que a jovem ambiciosa, meio grega, meio macedônica, estava destinada a interferir nos meandros da História. Mas tudo que Cleópatra queria era manter-se no poder. O Egito, celeiro do mundo ocidental e uma das nações mais ricas do Mediterrâneo, representava um troféu muito cobiçado pelos inquietos romanos; afinal, uma centena de anos antes eles haviam começado sua expansão para o Oriente. Mais de uma vez falara-se em anexação e o próprio pai de Cleópatra só conseguiu manter-se no trono distribuindo subornos. Assim, a rainha ainda adolescente sabia muito bem que o caminho para a permanência no poder passava por Roma — e seus governantes. Tornou-se amante e aliada de Júlio César (100-44 a.C.), o primeiro ditador romano. Mais tarde, conquistou as atenções de seu sucessor, Marco Antônio (82 ou 81-30 a.C.).
A história desses romances, misto de desejo e jogo de interesses, repercutiria intensamente na política romana, que passava por um período crucial. A República, implantada em 509 a.C., agonizava em meio à guerra civil. Os generais mais ricos, que podiam pagar seus exércitos, procuravam obter o poder para si. “Nesse tabuleiro de xadrez Cleópatra manobra com habilidade”, avalia o professor de História Antiga Ciro Flamarion Cardoso, da Universidade Federal Fluminense. “Num mundo em que os negócios do Estado estavam nas mãos dos homens, ela usou a sedução para vencer como estadista.” A personagem Cleópatra, na maioria dos livros de História, encarna como nenhuma outra mulher da Antigüidade o papel de irresistível sedutora. “Mas esta é uma visão deformada”, critica Flamarion Cardoso, que se diz um admirador da figura histórica da rainha. “Cleópatra foi uma administradora competente, uma mulher culta, que além do mais devia ter consideráveis dotes eróticos. Apostou na sua estratégia e perdeu. E a História não costuma ter complacência com os vencidos.”
Surpreendentemente, apenas há poucas décadas, passou-se a pesquisar com outro enfoque a vida da rainha do Egito. Até então, baseados no que diziam seus inimigos, que por sinal não eram poucos, os textos clássicos a descreveram de maneira extremamente pejorativa— mulher venal, amante de orgias, que conseguiu, com seus ardís, enfeitiçar dois generais romanos. Além das lendas, são poucos os registros históricos dignos desse nome sobre Cleópatra. Para evocar a sua aparência existem algumas efígies em moedas e um busto no Museu Britânico, em Londres. Não se sabe, portanto, se a moça tinha os olhos claros e cabelos loiros dos macedônios, ou a tez morena dos gregos. Parecia ter olhos grandes, boca pequena e bem desenhada. “Se o seu nariz tivesse sido mais curto, toda a face da Terra teria mudado”, disse o matemático francês Blaise Pascal (1623-1662), pioneiro da Teoria da Probabilidade. O nariz era aquilino . O fato é que a beleza não constituía o seu maior atributo. Plutarco, o historiador romano que viveu um século depois, explicava de outro modo o fascínio que ela exercia: “A presença de Cleópatra era irresistível e havia tal encanto em sua pessoa e no seu modo de falar, misturado com uma força singular que permeava cada palavra e cada gesto, que a todos ela subjugava.”
Cleópatra pertencia à dinastia de Ptolomeu, um dos generais de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), cujo império se estendia do Egito até a Índia. “Alexandre, de origem macedônica absorveu a cultura oriental e se comportou como um monarca divino”, classifica o professor de História Antiga Ricardo Mário Gonçalves, da Universidade de São Paulo. “Os sucessores imitaram o seu exemplo.” Depois da morte do imperador, suas terras foram divididas, cabendo a Ptolomeu o Egito. Para consolidar seu poder, o general se fez sagrar faraó, retomando as tradições das linhagens que comandaram o país durante três milênios, sob cuja autoridade se desenvolveu uma peculiar civilização de que as pirâmides são o signo mais conhecido. Cleópatra VII Thea Philopator (deusa que ama o pai, em grego) era o seu nome todo. Herdeira da dinastia ptolomaica, gostava de vestir-se como Ísis, a deusa-mãe, de quem se dizia a reencarnação.
Nascida em 69 a.C., na rica Alexandria cujo porto era o mais importante da época, nada mais natural que Cleópatra se sentisse uma deusa. Dos jardins do seu palácio, ela podia ver algumas das maravilhas legadas ao mundo por seus antepassados: a mais famosa biblioteca da Antigüidade, com mais de 700 mil volumes, e um museu freqüentado por sábios do Mediterrâneo. Os Ptolomeu eram patronos das artes e muito do que se conhece hoje de filosofia e ciência gregas foi conservado em Alexandria, a capital do Egito. Do palácio também se avistava a féerica agitação do porto, os monumentos e o magnífico farol, construído por Ptolomeu II, uma das Sete Maravilhas do Mundo (SUPERINTERESSANTE número 1, ano 3). Como regente do Egito, Cleópatra controlava, com a ajuda de administradores gregos, não só a vida da cidade mas a agricultura ao longo do Nilo, de onde provinha a fabulosa riqueza de seu país. Dispondo de poder absoluto, tinha objetivos definidos para o seu reinado, além de obstinação suficiente para dedicar a vida à realização de suas ambições: garantir a riqueza e a independência do Egito e restaurar a glória dos faraós.
Cercada de uma corte corrupta, Cleópatra não tinha escrúpulos. Mandou matar quatro dos cinco irmãos (dois homens e três mulheres) que podiam atrapalhar-lhe os planos. Era porém uma mulher culta. Nas negociações comerciais e nos encontros diplomáticos dispensava intérpretes, sendo a única rainha macedônica a falar o egípcio — além de nove outras línguas. Durante o seu reinado, patrocinou as artes e as ciências e teria, segundo alguns historiadores, escrito duas obras: um improvável tratado sobre pesos e medidas e outro, mais compatível com sua figura no imaginário popular, sobre penteados e cosméticos. Para conquistar a confiança do povo, subiu o Nilo até Tebas, onde presidiu uma cerimônia de culto ao touro sagrado, manifestação do deus Ra. Nos 21 anos em que governou o Egito, evitou que a massa se rebelasse, o que contraria a afirmação de que era odiada por sua crueldade.
Em compensação, logo que se tornou rainha, enfrentou a primeira conspiração palaciana. Como de costume entre os Ptolomeu, Cleópatra deveria dividir o trono com seu irmão Ptolomeu XIII, de apenas 10 anos, de quem era formalmente a mulher. Temendo, com bons motivos, que ela pretendesse governar sozinha, os tutores do irmão-marido a expulsaram para a Síria. Nesse meio tempo, o triunvirato que governava Roma desde 60 a.C. havia se desfeito e César disputava com Pompeu o controle da República. Pompeu foi assassinado em 48 a.C.. no Egito, para onde César se dirigiu com suas legiões. A fim de entrar incógnita em Alexandria e conquistar as graças de César, Cleópatra arquitetou um plano ao seu estilo. Detalhe miúdo, ela se fez embrulhar num tapete, colocado nos ombros de um servo. Pode-se imaginar a expressão do ditador romano, ao ver o que continha o tapete desdobrado aos seus pés. Não espanta que a apresentação tenha terminado na cama. Seja como for, no dia seguinte César entregaria o controle do Egito para Cleópatra. Era um presente sujeito a condições. Em troca, a rainha, que mais tarde deu à luz a um filho apropriadamente chamado Cesário Ihe garantiu riquezas para sustentar seus exércitos.
Assim, apesar do que diziam as más línguas da época, a sedução de César não era cega. Mas, ao voltar a Roma, em 46 a.C., depois de uma vitoriosa campanha na Ásia Menor, o ditador convidou a rainha a visitá-lo. E, para provar a todos que Cleópatra era mais do que uma amante casual, mandou colocar sua estátua no templo dos próprios ancestrais dedicado a Vênus, como se sabe, a deusa do amor e da beleza na mitologia romana. César tinha então 54 anos. Cleópatra, 23. Os dias do conquistador, no entanto, estavam contados. Os inimigos acreditavam que ele pretendia tornar-se rei e instalar o governo do império em Alexandria para ficar junto da amante. Em 44 a.C., num dos episódios mais dramáticos da história de Roma, César foi assassinado por um grupo de republicanos. Sua morte pôs um fim à primeira campanha de Cleópatra pelo poder. Discretamente, retirou-se para o Egito à espera dos desdobramentos que não tardariam, na luta em Roma.
Divulgado por Marco Antônio, o melhor amigo de César, o testamento do finado não mencionava sequer uma vez o nome de Cleópatra nem fornecia indicação de um eventual projeto monárquico. Os conspiradores que acreditavam que a morte de César traria de volta a República tiveram de sair do país. Formou-se um novo triunvirato com Marco Antônio, Otávio — um jovem de 18 anos, herdeiro de César — e Lépido, o maior de seus generais. Logo ficou claro que a ambição dos dois primeiros iria jogá-los um contra o outro. Em 42 a.C., na primeira batalha de que os dois participam juntos, em Filipos, na Grécia, o maior quinhão da glória cabe a Marco Antônio — ou assim parece, já que nessa época Otávio era apenas um rapaz doente. Para consolidar o poder recém-conquistado, Antônio sonha com uma invasão da Pérsia e, para esse objetivo, convoca todos os aliados da República Romana a um encontro em Tarso, na Síria. É a oportunidade que Cleópatra esperava para voltar à História. Sua entrada é nada menos que triunfal. Baseado nos textos de Plutarco, o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) imortalizaria acenara peça Antônio e Cleópatra, em que a rainha, adornada como Vênus, aparece na popa dourada de um barco com velas de cor púrpura enfunadas ao vento. Cleópatra se faz abanar com plumas de avestruz por meninos vestidos de Cupido, enquanto, ao som de flautas, oboés e alaúdes, escravos movem ritmicamente os remos de prata. A ser verdadeira a cena, Hollywood não terá inventado nada de novo na breguíssima reconstrução de Cleópatra, filmado em 1963, com Elizabeth Taylor. Dado a festas e ostentações, como poderia Marco Antônio resistir? No golpe de misericórdia, Cleópatra, aos 29 anos e no auge de seus encantos, convida o general quarentão para um banquete inigualável. Segundo Plutarco, dai em diante Cleópatra fez o que quis de Marco Antônio: “Ela despertou e inflamou paixões até então adormecidas em sua natureza, abafou e finalmente corrompeu quaisquer resquícios de bondade e justiça que ainda subsistissem nele.”Na realidade, o general era emotivo, bêbado e mulherengo”, precisa Flamarion Cardoso, da Universidade Federal Fluminense.
Marco Antônio desistiu da campanha da Pérsia e aceitou o convite da rainha para visitar Alexandria. Na bela cidade eles formaram uma sociedade chamada “os que vivem para o prazer”, bem ao gosto do general romano. Em 34 a.C., Antônio deu a Cleópatra, como prova de amor, a ilha de Chipre, mais a Líbia e a Síria, a Armênia, a Média (no noroeste do atual Irã) e a Cilícia (sudeste da atual Turquia) — e, é claro, o velho Egito. Em troca, como já havia acontecido com César, a rainha sustentaria com suas riquezas as legiões romanas. Marco Antônio foi um amante mais generoso do que seu antecessor. Numa das festas que promoveu, deu a Cleópatra o título de Rainha dos Reis, repartindo entre Cesário, o filho que ela tivera com César e as três crianças que eram filhos dela consigo, partes das terras conquistadas pelo seu exército. Em Roma, tais doações foram usadas por Otávio para indispor o populacho contra seu rival. Segundo o professor Ricardo Gonçalves, “ao unir-se com Cleópatra, Marco Antônio tornou-se para os romanos um monarca despótico e absolutista. Enquanto Otávio, embora também quisesse o poder absoluto, parecia agir como um defensor da República.” Não tardou que ambos se guerreassem. A batalha de Ácio, no leste da Grécia. em 31 a.C., foi definitiva. Embora seu exército fosse melhor preparado, Antônio não conseguiu furar o bloqueio marítimo montado por Otávio. Cleópatra, ao lado do amante, foi a primeira a reconhecer a derrota e fugir para o Egito. Para não perdê-la, Marco Antônio foi atrás, abandonando os que ainda lutavam — pecado imperdoável para um chefe militar. No Egito, o par formou a sociedade dos “inseparáveis na morte”. Como bom soldado, ele matou-se com a espada. Cleópatra, porém, tinha apego à vida. Prisioneira dos romanos, com 39 anos, apelou para a velha fórmula, tentando seduzir Otávio. Mas este recusou o jogo. Não restou mais nada à rainha senão suicidar-se, fazendo-se picar por uma áspide, pequena cobra venenosa.
Para saber mais:
(Super número 3, ano 4)
O mito masculino da mulher fatal
Morena, cabelos negros, olhos cor de violeta. Assim era a Cleópatra made in Hollywood, por quem o público masculino suspirava em 1963. Não só o público: o ator inglês Richard Burton, que fazia Marco Antônio no filme, sucumbiu aos encantos, como se diz, de Elizabeth Taylor-Cleópatra e com ela viveu um longo, intermitente e tempestuoso casamento. O episódio, que um dia talvez vire filme também, foi um acréscimo primoroso para fixar no imaginário popular o mito de Cleópatra mulher fatal, cuja dimensão trágica está em ser ela ao mesmo tempo prêmio e perdição para o homem. “Cleópatra é capaz de deixar qualquer homem a seus pés, mas homem algum pode ser feliz a seu lado”, resume o professor Flávio Di Giorgi, que leciona Lingüística e Teoria Literária na PUC de São Paulo.
Com uma história que mistura política, intriga, violência, luxo e erotismo, é natural que a arte se apropriasse da figura da rainha do Egito, desde as pinturas que descrevem de forma romântica e grandiloqüente o seu suicídio às peças de Shakespeare e Bernard Shaw e ao romance histórico de Théophile Gautier. Vivendo num ambiente de opulência e sensualidade — a corte dos faraós na faustosa Alexandria — Cleópatra é esculpida como a mulher irresistível que usa o corpo para conseguir o que quer dos homens e depois os descarta. Ou, segundo analisa o psicanalista Renato Mezan, também professor da PUC, “como ela não tem existência real, sendo apenas a projeção dos desejos masculinos, o mito a despoja de sentimentos”.