Conheça Bir Tawil, o pedaço de terra que não é de nenhum país
O território em forma de trapézio na fronteira entre Egito e Sudão não é reivindicado por nenhum dos países – e atrai excêntricos em busca do país próprio
Você não gosta de criança mimada? Então passe longe da casa de Jeremiah Heaton, fazendeiro do pacato município de Abingdon, em Virgínia, nos EUA. Em 2014, o chefe de família prometeu à filha que ela seria uma princesa ao pé da letra – do tipo que herda um reino de seus pais. Para cumprir a promessa, conseguiu uma autorização do exército egípcio, cruzou o Saara em uma caravana de 14 horas e fincou uma bandeira no território de Bir Tawil, um pedaço de deserto de 2,060 km2 em forma de trapézio na fronteira do Egito com o Sudão.
Em princípio, não há nada que impeça Heaton de se declarar rei da maior caixa de areia do norte da África – cuja população total é um redondo zero. Nem Sudão nem Egito fazem questão de reivindicar o território de Bir Tawil para si próprios, o que torna essa anomalia geopolítica uma autêntica terra de ninguém.
A história curiosa começou em 1899, quando o Reino Unido ainda era a maior potência imperialista do mundo, e mandava em boa parte da África. Naquele ano, ficou decidido que a fronteira entre Egito – sob ocupação militar britânica – e Sudão – dominado pelo Egito e, por consequência, também pelos britânicos – seria uma linha reta equivalente, no mapa, ao paralelo 22 N.
Essa é a fronteira que o Egito considera correta até hoje.
A prática de fatiar territórios da África de acordo com os interesses europeus foi comum no século 19, e péssima para a vida de seus habitantes originais. Grupos étnicos orgânicos foram separados por linhas retas, e submetidos às línguas e à religião de seus colonizadores. Foi o que aconteceu ali: a tribo nômade Ababda, de raízes culturais egípcias, perdeu um pedaço de terra para o Sudão. E o povo Beja, mais próximo do Sudão, perdeu um longo triângulo de litoral para o Egito.
Em uma tentativa de restaurar essas antigas divisões, em 1902 o Reino Unido decidiu fazer uma pequena alteração na fronteira. Adequá-la à realidade local não tinha nada a ver com bondade católica ou direitos humanos – a verdade é que era mais fácil governar a região sem distúrbios quando cada povo estava do lado certo do mapa.
Essa nova fronteira aumentou o acesso do Sudão ao mar, e por causa disso é adotada pelo país até hoje.
O tempo passou, e após duas guerras mundiais e incontáveis convulsões políticas e guerras civis, os povos nativos já não ocupam a região da mesma maneira. Para completar a confusão, em 1956 o Sudão declarou independência – e automaticamente entrou na briga por espaço, que se intensificou na década de 1990, com a suspeita de que havia jazidas de petróleo às margens do Mar Vermelho.
Resultado? Ambos os países querem o grande (e valioso) triângulo à direita do mapa – onde os dois territórios se sobrepõem. Mas nenhum dos dois se interessa pelo pequeno trapézio no centro. Para o Egito, ele é do Sudão… E para o Sudão, é do Egito.
Quanto a Heaton, bem… Não deu em nada. A comunidade internacional não leva a sério excêntricos como ele – mesmo que sua pequena princesa tenha declarado que lutaria para melhorar a qualidade de vida das crianças africanas. O “Reino do Sudão do Norte”, portanto, continuará por muito tempo sendo só um monte de areia. E, é claro, mexendo com a imaginação de aventureiros de pretensões imperialistas.