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E se a Revolução Russa não tivesse acontecido?

Guerra Fria, Chernobyl, Estado Novo, internet. É fácil listar o que não haveria na ausência de um dos eventos definidores do século 20. Mas o que haveria?

Por Fábio Marton
Atualizado em 12 abr 2023, 15h09 - Publicado em 18 fev 2022, 07h43

Em novembro de 1917, aconteceu algo que nem Karl Marx imaginaria: o país mais extenso do mundo (e o terceiro maior em população) passaria a ser administrado por seguidores radicais seus.

Literalmente não imaginaria: a previsão de Marx era a de que as revoluções socialistas começariam justamente nos lugares onde o capitalismo era mais avançado – e que seria liderada por operários, não por intelectuais de um partido político, caso de Lenin e Trotski liderando o Partido Social Democrático Trabalhista Russo (Bolchevique).

Sem a Revolução Russa, nada seria igual, pois não teria havido a Guerra Fria. Sem ela, não haveria internet, porque ela é fruto de um esforço dos militares americanos de criar uma rede capaz de resistir a uma guerra nuclear: a Arpanet. E a exploração espacial talvez estivesse engatinhando ainda, já que ela começou de carona em mísseis intercontinentais.

Também não haveria Chernobyl, a Grande Fome na Ucrânia em 1932, os 20 milhões de mortos no regime de Stalin. Por aqui, não teria Estado Novo ou ditadura militar, nascidos do medo de uma revolução comunista.

Enfim, a Revolução Russa é um evento tão definidor da história que é fácil estender indefinidamente a parte do “não haveria”. Mas o que haveria?

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Revolução haveria. Porque o que os revolucionários bolcheviques liderados por Lenin fizeram foi uma revolução dentro de uma revolução.

Em fevereiro de 1917, uma revolta maciça de civis e militares, insatisfeitos com as derrotas da Rússia na Primeira Guerra e a penúria causada por ela, na forma de racionamento de pão, tomou as ruas da capital Petrogrado (hoje São Petersburgo). O czar se viu forçado a abdicar, e os revolucionários declararam a Rússia uma república.

O governo foi formado por uma aliança entre socialistas moderados (Lenin se recusou a participar, pois de moderado não tinha nada). Assumiu como líder provisório o advogado Alexander Kerensky, do Partido Revolucionário Socialista – apesar do nome, uma agremiação não-marxista, que pretendia criar uma democracia liberal.

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Kerensky, porém, não atendeu à maior demanda de todas, que era acabar com a guerra. Mais derrotas e mais penúrias se acumularam. Seu governo se revelaria impopular.

Em julho de 1917, uma revolta armada explodiu em Petrogrado. O partido de Lenin foi acusado de causar a violência – na prática, tinha sido uma explosão espontânea de revolta contra a participação desastrosa da Rússia na Guerra. Como resultado, vários líderes do partido foram presos, e Lenin escapou para a Finlândia.

Nesse ponto, os bolcheviques pareciam destinados a entrar para a história como revolucionários frustrados, como na Comuna de Paris de 1871. Até a estupidez de seus adversários mudar sua sorte.

Em agosto de 1917, o general Lavr Kornilov, supremo comandante do Exército Russo, moveu tropas contra Petrogrado. Ainda se discute se ele queria mesmo dar um golpe ou achava que os bolcheviques haviam dominado a cidade. De qualquer forma, o resultado foi o seguinte: Kerensky decidiu armar a população e libertar os bolcheviques para ajudar na resistência. E o resto é história. Em 7 de novembro, os bolcheviques tomariam a cidade e o governo do fraco e impopular Kerensky teria um fim.

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Kerensky provavelmente não tinha futuro: se o plano de Kornilov não era dar um golpe, outro militar o faria. Mesmo se, por algum milagre, o governo Kerensky sobrevivesse, dificilmente seriam os moderados a ganhar as eleições prometidas pelo governo provisório.

E aqui teríamos uma grande inversão na história: Kornilov era um extremista de direita. Durante a Guerra Civil Russa que se seguiu à revolução bolchevique, na qual suas forças enfrentaram o Exército Vermelho, foi autor de frases como “quanto maior o terror, maior a vitória” e que venceria mesmo se “tivesse que queimar metade do país e derramar o sangue de três quartos dos russos”.

O grupo de Kornilov também era altamente antissemita. Judeus russos fugiam para a Alemanha nessa época. Até 150 mil deles foram mortos pelo Exército Voluntário (chamado “Branco”) fundado por Kornilov.

Ninguém está chamando os bolcheviques de bonzinhos. Os conservadores tinham o Terror Branco, eles tinham o Terror Vermelho – terror era uma estratégia assumida pelos dois lados. Mas o que estava em disputa na Guerra Civil Russa não era a democracia liberal versus o regime soviético. Era entre uma ditadura comunista contra uma ditadura de extrema direita – fascista, apesar de esse nome só ter surgido na Itália de 1919.

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Se a Rússia não tivesse se tornado a capital da esquerda radical, viraria a da direita radical. Caso a monarquia fosse restabelecida, seria como mera figura simbólica. Não muda nada: a Itália fascista também era uma monarquia, com o rei Vítor Emanuel III apoiando Mussolini até a invasão aliada da Itália em 1943.

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Falando em Mussolini, sem a vitória bolchevique, figuras como ele e Hitler talvez não tivessem o apoio crucial das classes médias e altas para fazerem o que fizeram. A Itália acabou por dar poder aos fascistas em 1922, após o dito Biênio Vermelho, dois anos de agitação revolucionária movida por conselhos de trabalhadores industriais, inspirados nos sovietes russos. A Alemanha chegou a ter um regime comunista, a República Soviética da Bavária – que durou menos de um mês em 1919.

Sem o medo dos comunistas, não seria tão fácil a essas figuras barulhentas de classe baixa ganharem o apoio crucial dos industriais para obter o poder absoluto. Hitler mesmo inventou que os judeus da Alemanha estariam trabalhando com os comunistas soviéticos, numa conspiração lunática que ele chamava de “judeo-bolchevismo”.

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Sem Hitler, não haveria a Segunda Guerra como a conhecemos. Mas o conflito poderia vir com outros protagonistas. A Grande Depressão, iniciada em 1929, arrasaria as economias do mesmo jeito – inclusive a russa, que, em sua versão soviética, estava isolada da economia mundial e passaria os anos 1930 se industrializando brutalmente sob Stalin.

Quando a miséria levasse a agitações sociais nessa Rússia de extrema direita, os sentimentos bélicos aflorariam. Não apenas lá. O mesmo aconteceria nas versões alternativas (não-fascistas) da Alemanha e da Itália. Isso poderia levar a um conflito continental, depois global.

Seria uma Segunda Guerra mais como a Primeira. Tão letal quanto a da vida real, só que mais impopular. É mais fácil explicar por que lutar contra ditadores caricatos e ideologias exóticas que contra líderes tidos por normais, como foi com os monarcas da Alemanha e da Áustria na Primeira Guerra.

Na vida real, 80% das baixas alemãs da guerra foram contra os soviéticos. Um conflito mundial com uma Rússia mais frágil, não-industrializada, descambaria numa guerra bem mais longa e, como a Primeira, extremamente custosa. Até chegar à exaustão da população com racionamentos.

Estariam, assim, países como a Inglaterra e os Estados Unidos na mesma posição da Rússia em 1917: cheios de trabalhadores e soldados profundamente revoltados com a guerra. E talvez chegássemos à maior ironia de todas: a implantação de ditaduras comunistas poderia acontecer justamente nos países capitalistas mais avançados. Como Marx imaginava.

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