E se a União Soviética não tivesse acabado?
Ficaríamos com uma união meramente simbólica? Ou o país fecharia o cerco em suas repúblicas separatistas – e se tornaria uma potência à chinesa?
25 de dezembro de 1991. O primeiro (e último) presidente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Mikhail Gorbachev, renuncia. Simbolicamente, a bandeira vermelha e amarela é abaixada do mastro no Kremlin, para nunca mais subir novamente. No dia seguinte, o Soviete Supremo da URSS – equivalente ao Poder Legislativo – reconheceu a derrota e declarou o país e si próprio extintos. As forças da liberdade (e do capitalismo) venceram.
Venceram mesmo? O maior estímulo para a dissolução da União Soviética não foi exatamente a democracia – que, numa forma meio caótica, já estava vindo desde 1989. Foi o nacionalismo. As reformas de Gorbachev haviam saído completamente de controle.
Mas não tanto porque as pessoas quisessem mais liberdades civis, e sim porque desejavam a independência de seus países. A própria Rússia, centro da União, já via a URSS como uma relíquia desnecessária.
Em 17 de março de 1991, num referendo nacional, 77,85% dos soviéticos votaram por manter a União Soviética, mas sob outro nome: União das Repúblicas Soberanas Soviéticas. Trocar “Socialista” por “Soberana” é sinal de que, mesmo que a URSS tivesse continuado existindo no papel, os acontecimentos teriam um desfecho semelhante: um agrupamento de países independentes, unidos basicamente por alianças para defesa militar e acordos comerciais. Cada um teria liberdade para decidir o que fazer de suas economias e sistemas políticos.
A linha-dura do Partido Comunista perdeu as estribeiras com a mudança de nome. Um dia antes da assinatura do Novo Acordo de União, que rebatizaria o país, Gorbachev foi preso e declarado “incapaz”. Criou-se um “Comitê Estatal de Emergência”, e o vice de Gorbachev, Gennady Ivanovich Yanayev, assumiu.
O golpe foi um fiasco. Com ele, evaporou a última chance de sobrevivência da União Soviética. Seguiu-se o colapso. A partir de agosto de 1991, as repúblicas declararam independência em sequência – incluindo a própria Rússia, em 13 de dezembro. O Partido Comunista da União Soviética, último elemento de união, também foi para o espaço, com o Soviete Supremo votando pelo fim de suas atividades ainda em agosto. O presidente da recém-restaurada Rússia, Boris Yeltsin, proibiu todas as atividades comunistas no país em 6 de novembro. Ou seja: quando Gorbachev finalmente renunciou, renunciou a um cargo que não existia mais.
Com tudo isso em mente, há alguma hipótese em que a manutenção da URSS teria sido viável? Sim, duas. Ambas têm a ver com o golpe. A primeira, claro, seria o golpe não ter acontecido. Seguiria-se o caminho já combinado, de trocar o “Socialistas” por “Soberanas” e dar independência às repúblicas. Sobreviveria uma união apenas comercial.
Havia tanto desejo disso por parte das repúblicas que algo parecido de fato ocorreu. Em 8 de dezembro, os líderes da Ucrânia, Rússia e Bielorrússia se encontraram em segredo e assinaram um acordo prevendo a Comunidade de Estados Independentes (CEI) como sucessora da União Soviética. A CEI existe até hoje.
Uma hipotética União das Repúblicas Soberanas Soviéticas daria basicamente na mesma que a CEI na vida real. A maioria das repúblicas manteria laços com a Rússia. (Havia algumas exceções. Os países bálticos, que foram os primeiros a cobrar a própria soberania, se tornaram democracias sólidas com IDH alto. E a Geórgia, que sofreu repressão a mando de Gorbachev, não virou parte da CEI.)
A bandeira vermelha, caso não fosse substituída, passaria a representar países capitalistas e, em tese, democráticos – mas, na prática, dominados sem muito pudor por chefes locais. Como ocorre hoje. Até mesmo o ex-agente da KGB Vladimir Putin provavelmente teria ascendido ao poder na Rússia em 1999, substituindo Yeltsin. Ou seja: nessa hipótese mais pacífica, com uma mudança de sigla, apenas os símbolos se manteriam. Restaria pouco do legado de Lenin na União Soviética.
Até aqui, falamos de um mundo em que o golpe não ocorreu – que não fica muito diferente do mundo real. Mas e se o golpe tivesse dado certo?
O principal propósito da linha-dura comunista após tirar Gorbachev seria manter a integridade territorial da URSS. Isso, num país que já se esfacelava em nacionalismos, certamente acabaria em uma guerra civil. Muito parecida com o que aconteceu na ex-comunista Iugoslávia durante os anos 1990.
Haveria um enorme incentivo para uma guerra assim mobilizar interesses além das fronteiras soviéticas. Potências ocidentais poderiam intervir a favor dos países separatistas, inclusive da própria Rússia – que, embora fosse a maior das repúblicas, não queria mais ser uma delas. A China também poderia entrar na brincadeira, e jogaria contra os interesses da URSS: os chineses foram adversários da União Soviética entre o fim dos anos 1950 e 1989, quando Gorbachev restabeleceu as relações.
Nesse cenário, não haveria CEI nem a Rússia de Putin – mas um grupo de países arrasados e alinhados diplomaticamente ao Ocidente após receberem uma ajudinha da Otan para
conquistar a independência.
Dito isso, há uma diferença fundamental entre essa guerra civil russa fictícia e a guerra que rolou na Iugoslávia: armas nucleares. Elas talvez fossem suficientes para afugentar uma intervenção direta internacional. O resto do mundo aguardaria angustiado pela resolução.
Há uma terceira opção: os mísseis ficam nos silos e os separatistas não recebem ajuda internacional. O golpe funciona e a URSS volta para um grau de opressão e fechamento pré-Gorbachev. Com uma diferença: a economia.
Em 1989, enquanto se abria para a iniciativa privada, a China massacrou o protesto estudantil na Praça da Paz Celestial e voltou atrás nas reformas tímidas que havia começado no campo social na década de 1980.
Se a URSS pós-golpe tentasse um crescimento à chinesa – convidando o capitalismo para entrar, mas barrando a liberdade na porta –, ela teria a seu favor um parque industrial e um sistema de educação mais avançados que os da China na mesma época. Por outro lado, infraestrutura para largar na frente não basta se você está em pé de guerra com seus parceiros comerciais. Esse cenário só seria plausível se EUA e URSS topassem relações cordiais.
Resolvido esse ponto, e com os soviéticos agora cheios de grana para investir em armamento, a tensão geopolítica voltaria. Mas, desta vez, com um motivo a menos para a Guerra Fria esquentar: promover um conflito contra um parceiro comercial, afinal, seria um tiro no pé.