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E se os chineses tivessem colonizado a América?

Eles trariam as mesmas doenças – mas fariam comércio em vez de guerra, dariam espaço para as tradições locais e protegeriam os astecas dos espanhóis.

Por Fábio Marton
Atualizado em 21 set 2020, 14h18 - Publicado em 16 set 2020, 12h34

8 de novembro de 1519. Após destruir as cidades astecas de Cempoala e Choula, o colonizador espanhol Hernán Cortéz marcha com sua comitiva pelo atual território do México, rumo a Tenochtitlán. O grupo não é muito impressionante: ao longo de seu caminho, entre doenças, tiros e golpes dos nativos, os 500 que desembarcaram haviam se transformado em 190.

Cortéz até havia tentado fazer alianças com os mexicas – o grupo étnico nativo que fundou o Império Asteca –, mas, ao saber o que o espanhol pretendia, eles se recusaram. Mexer com os zanhuitz (“estrangeiros”), como eram conhecidos na América, era pedir por encrenca. As cartas em caracteres estranhos, que um membro da expedição dizia reconhecer como chinês, pouco fizeram para desencorajar o conquistador. Contra todos os conselhos, cobiçoso das riquezas da capital Tenochtitlán, ele marcha.

A primeira coisa a aparecer no horizonte são os pagodes budistas (templos em forma de torre, com múltiplos beirais). Depois, surge o topo de uma mesquita – visão particularmente odiosa aos espanhóis, que haviam acabado de expulsar os mouros da Península Ibérica. Um canhonaço de aviso soa ao fundo. Logo vem a primeira saraivada de balas e flechas disparadas por bestas. O cavalo de Cortéz tomba sob o fogo. Pouco mais de uma dezena de sobreviventes corre para longe da cidade, perseguidos pela coalizão sino-asteca. Esse dia entraria para os anais da história espanhola como A Tragédia de Tenochtitlán.

De volta à vida real. Ao considerar a possibilidade de que os chineses tivessem colonizado a América antes dos ibéricos, a primeira pergunta a fazer é: o que eles iriam querer com o nosso continente? No século 15, os chineses de fato realizaram expedições marítimas longas o suficiente para inspirar este texto. Acontece que essas viagens tinham uma motivação bem diferente das realizadas pelos europeus.

O almirante eunuco (isto é, castrado) Zheng He partiu da China pela primeira vez em 1405, a pedido do imperador Yongle, e continuaria viajando até sua morte, em 1433. Suas viagens levaram à China riquezas exóticas de terras distantes, como pedras preciosas, ébano, chifres de rinoceronte e âmbar-gris. Até girafas africanas chegaram de navio. Mas o maior tesouro foram embaixadores de várias nações – que embarcaram pelo caminho para visitar a China, conhecer o imperador e declarar fidelidade.

A expedição de Zheng He seguiria o traçado da costa da Sibéria até o Estreito de Bering – percorrendo depois o sul do Alasca e a costa oeste da América do Norte

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Apesar dessa pretensão toda, a China não era de estabelecer colônias além-mar. Apenas se expandiu em direção aos vizinhos contíguos. Suponha, então, que Zheng He viesse dar nas costas americanas em busca de vassalos. Ele não faria isso cruzando o Pacífico – uma travessia perigosa. As viagens de Zheng He geralmente contornavam a costa, de maneira similar ao que faziam os comerciantes árabes de seda e especiarias pelo sul da Ásia. A expedição, então, seguiria o traçado da costa da Sibéria até o Estreito de Bering – percorrendo depois o sul do Alasca e a costa oeste da América do Norte; coletando embaixadores e travando relações diplomáticas cordiais no caminho. No México, porém, as coisas poderiam assumir um rumo interessante.

Ainda que os visitantes da Ásia não fossem tão gananciosos quanto os espanhóis, eles obviamente se interessariam pelo ouro, prata e cobre abundantes na América. Obtê-los em troca de manufaturas seria a forma de comércio favorita dos chineses, a exemplo das relações que eles estabeleceram com outros povos asiáticos. Se navegassem mais ao Sul e conhecessem os povos andinos, nos atuais territórios do Peru e do Chile, melhor ainda.

O imperador chinês se mobilizava para ajudar seus vassalos mais próximos. Em 1592, por exemplo, defendeu seus aliados coreanos de uma invasão japonesa. Ou seja: quando os espanhóis chegassem por aqui, talvez encontrassem os nativos guarnecidos por tecnologia e tropas chinesas. Além disso, um ataque aos amigos da China na América repercutiria de maneira negativa nos negócios espanhóis na Ásia. Mesmo que os astecas e chineses estacionados no México não tivessem como enviar um mensageiro a Pequim para avisar da chegada dos europeus, os portugueses, rivais dos espanhóis no comércio com a Ásia, ficariam felizes em dedurar a invasão.

Essa aliança sino-asteca não só atrapalharia a colonização espanhola do lado de cá como faria a China mais forte do lado de lá, por conta do ouro das Américas. As missões do almirante Zheng He foram cortadas após a morte do imperador Yongle, sob influência de elites econômicas que queriam tirar o poder do Estado sobre as trocas comerciais. Uma relação robusta com a América (que teria um nome, quem sabe dōngbù lingyù, “terras do Leste”) poderia ter preservado o interesse dos chineses na navegação e limitado a expansão imperialista europeia na Idade Moderna. Os europeus poderiam ter dominado a África e a costa leste da América, como fizeram, mas não se arriscariam na Ásia.

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Essa aliança sino-asteca não só atrapalharia a colonização espanhola do lado de cá como faria a China mais forte do lado de lá

Os astecas também escapariam da imposição do catolicismo. Por um lado, os chineses abominariam o sacrifício humano. Por outro, eles têm uma cultura sincrética e poderiam não só tolerar como importar deuses da América. A serpente emplumada Quetzalcoatl, um dos principais deuses astecas, é visualmente quase idêntica a um dragão chinês. E aqui há algo curioso: o almirante Zheng He não era budista, e sim islâmico. Ele poderia tentar um pequeno trabalho missionário, fazendo o Alcorão chegar à América antes do cristianismo.

Boas relações à parte, os chineses trariam as mesmas doenças do Velho Mundo, como a varíola, que dizimou nativos pelo continente inteiro, matando muito mais que as armas espanholas. Historiadores estimam que algo entre 80% e 95% da população do continente americano tenha padecido com micróbios importados no primeiro século após o contato com os europeus. Com os chineses, dependendo da intensidade e frequência das interações, poderia acontecer o mesmo.

Somando tudo, os chineses seriam bênção e maldição: trariam os mesmos vírus, mas também blindariam os povos nativos contra os espanhóis. Colombo, Cabral e cia. não deixariam de estabelecer colônias, mas seriam mais contidos. Teríamos uma América com mais memória, relíquias arqueológicas preservadas e participação política de seus habitantes originais.

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