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Espíritos com bisturis

Médiuns operam pacientes usando facas, bisturis e tesouras sem assepsia e anestésico. Os pacientes não sentem dor e muitos se dizem curados

Por Sílvia Lisboa
Atualizado em 4 nov 2016, 18h59 - Publicado em 1 out 2015, 22h30

Em pé, rodeado por dezenas de pessoas, um homem alto, vestido com uma camisa branca aberta no peito, faz um corte de 3 centímetros na mama esquerda de uma mulher. Enfia dois dedos fundo, cavoca e tira um pedaço de tecido mole. Une a pele com os dedos e dá três pontos com uma agulha grosseira. O ferimento quase não sangra. Ereta, a mulher tem o olhar perdido e o rosto relaxado como se estivesse deitada em uma espreguiçadeira numa praia do Caribe. A operação dura menos de 3 minutos. Ela é levada a uma enfermaria improvisada, enquanto um jovem passa à frente para ser operado. Desta vez, o homem de branco pega uma tesoura envolta em um algodão úmido e enfia bruscamente na narina direita do paciente, que permanece imóvel. O procedimento é ainda mais rápido porque não há cortes. Ao final, o homem diz: “Pode seguir. Você está curado”. Não há gemidos, gritos de dor ou sirenes de ambulância. O silêncio impera no local. Bem-vindo ao mundo das cirurgias espirituais.

É preciso ter estômago forte para acompanhar as operações feitas por João Teixeira de Faria, o João de Deus ou John of God, como é conhecido pelos estrangeiros que representam hoje 70% de seus pacientes. O mais procurado cirurgião espiritual em atividade no mundo já confessou que não aguenta ver sangue. Mas, durante as cirurgias na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, interior de Goiás, a 117 quilômetros de Brasília, ele garante estar possuído por espíritos que têm o dom da cura.

Seriam mais de 30 entidades que operam pelas suas mãos. Ou seja, João de Deus estava tecnicamente fora de si quando enfiou os dois dedos no seio da mulher e a tesoura no nariz do jovem. Sua consciência estaria dominada pelo cirurgião português Augusto de Almeida, morto em 1941, ou pelo próprio Inácio de Loyola, santo do século 14 que dá nome à Casa – ele não sabe dizer qual dos dois.

João de Deus nada mais é do que um fazendeiro semianalfabeto, pai de 11 filhos, de mulheres diferentes. Há 54 anos em atividade, já “tratou” mais de 9 milhões de pessoas. A maioria das cirurgias é realizada sem cortes na pele. As outras, com incisão de facas e bisturis sem assepsia, chamadas de visíveis, são feitas somente em quem pede. Além de atender na Casa Dom Inácio, o médium viaja anualmente para os Estados Unidos, a Áustria e a Suíça para dar conta da fama internacional, muito maior do que em seu próprio país. Na longeva carreira, só houve o registro de uma morte. A austríaca Martha Raucher morreu de infarto em um final de tarde em fevereiro de 2012 na Casa Dom Inácio. João de Deus não estava no local no momento, e a austríaca não havia sido submetida a cirurgias com cortes pelo que se tem notícia. O Ministério Público arquivou as denúncias contra o cirurgião espiritual por falta de provas. No momento, não há nenhuma investigação em curso.

Geralmente, quem procura João de Deus já foi desenganado pela medicina ou está há anos em tratamento sem sucesso. O médium não promete cura a ninguém, mas proliferam relatos sobre seus milagres. Um dos mais famosos é o da atriz Shirley MacLaine, responsável por divulgar o nome do médium no exterior, que diz ter sido curada de um câncer no abdômen com sua ajuda. Em 2012, Oprah Winfrey foi a Abadiânia conhecer pessoalmente John of God. Chegou descrente. “Fui ao Brasil preparada para duvidar do que os meus olhos vissem”, revelou Oprah no seu site. “Mas o corpo não mente. Quando João de Deus entrou na sala e fez sua primeira cirurgia numa mulher que tinha o braço paralisado, ele me chamou para chegar mais perto. Fez uma incisão de 1 polegada no seio dela. Pensei: `Sim, é uma faca mesmo e, sim, é sangue pingando nas suas calças brancas. Como isso pode estar acontecendo sem anestesia, sem ela sequer pestanejar?”, contou Oprah, que foi amparada por uma voluntária para recobrar os sentidos. Apesar do choque, a apresentadora diz ter sentido uma profunda e inexplicável sensação de paz e gratidão. Todo ano, a pequena cidade goiana ganha novos moradores que desejam ser voluntários na Casa Dom Inácio em agradecimento pelas curas. Estima-se que sejam mais de 300 pessoas que largaram tudo para ficar perto do médium.

Bisturis

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Tradição nacional

Junto das Filipinas, o Brasil é a terra dos cirurgiões espirituais. O antropólogo norte-americano Sidney Greenfield, autor da mais ampla pesquisa sobre o tema no Brasil, que resultou no livro Spirits with Scalpels: The Cultural Biology of Religious Healing in Brazil (“Espíritos com bisturis: a cultura biológica das curas religiosas no Brasil, sem edição em português), diz que o sincretismo religioso e a mente aberta do brasileiro contribuíram para manter acesa as velhas crenças místicas no sobrenatural mesmo com o inconstetável avanço da medicina no último século. “Nos Estados Unidos, quando uma criança diz ter visões ou ouvir vozes, ela é levada ao psiquiatra. No Brasil, ela é encaminhada primeiro a um centro espírita. Não se vê como um problema, mas como um dom”, diz Greenfield.

Nem sempre foi assim. O precurssor mais notório de João de Deus, José Pedro de Freitas, conhecido como Zé Arigó, foi condenado duas vezes por exercício ilegal da medicina. Na primeira, em 1958, Arigó recebeu um indulto do então presidente, Juscelino Kubitschek, cuja filha havia sido tratada pelo espírito de Dr. Fritz, um suposto médico alemão morto em 1918, que encarnava no médium, nascido no interior de Minas Gerais. Na segunda condenação, porém, em 1964, Arigó ficou sabendo o significado de indulto (perdão por um crime) e o recusou porque não queria ser perdoado por um crime que não praticara.

Arigó ganhou fama depois de supostamente operar um câncer do senador mineiro Lúcio Bittencourt. Nas vésperas das eleições de 1950, Bittencourt chamou Arigó, um líder sindical carismático de Congonhas (MG), para um comício em Belo Horizonte. Arigó, que até então lutava contra seus poderes mediúnicos, que o atormentavam desde a adolescência, aceitou o convite. Depois do evento, recolheram-se a um hotel. De madrugada, Arigó invadiu o quarto do senador com uma navalha na mão. Bittencourt tentou se defender, mas sentiu o corpo amolecer e perdeu os sentidos. Acordou com o pijama rasgado nas costas e sujo de sangue seco. Atordoado, procurou o hospital e o médico lhe informou que ele havia sido operado. O tumor no pulmões, que quase o deixara fora da campanha, havia sido extirpado por Arigó durante a estranha invasão ao quarto de hotel. Em relato ao jornalista Herculano Pires, autor de Arigó: Vida, Mediunidade e Martírio, o médium diz ter escutado atônito o senador lhe contar o que havia ocorrido. Arigó não lembrava de nada. Não guardara nenhum registro da noite porque não era ele que teria feito a cirurgia, mas Dr. Fritz, o espírito que havia tomado conta da sua consciência.

O episódio na capital mineira marcou o início da carreira paranormal de Arigó. Durante 20 anos, supostamente encarnando Dr. Fritz, Arigó fez cirurgias usando facas de serra, canivetes, bisturis e tesouras sem nenhuma assepsia e anestésico, mas como uma perícia de fazer inveja a cirurgiões experientes – muitos vieram dos EUA para atestar se não era farsa e saíram estupefatos, como o cientista Andrija Puharich, ele mesmo operado por Arigó de um lipoma no braço.

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Os atendimentos de Arigó no Centro Espírita Jesus Nazareno começavam às 7 horas da manhã – à tarde, o médium batia ponto no INSS local. Incorporado pelo espírito de Fritz, assumia um sotaque alemão. Tratava mais de 200 pessoas até o meio-dia, com rispidez. Mandava-os formar filas, fazia as operações em segundos (como João de Deus), mandava embora os casos sem cura e pedia aos mais graves voltarem para novas consultas. Quando não operava, fazia diagnósticos certeiros sem olhar para o doente. Prescrevia longas receitas de remédios, muito deles recém-lançados e estrangeiros. Não cobrava um tostão de ninguém.

Em duas décadas, estima-se que Arigó tenha atendido 2 milhões de pessoas, sem nenhum paciente ter movido uma ação contra ele. As duas condenações por curandeirismo partiram de denúncias da classe médica. Morreu em 1971, em um acidente de carro.

Depois de perder seu pupilo, o espírito de Dr. Fritz seguiu à procura de novos médiuns. Encontrou os irmãos baianos Edivaldo de Oliveira Silva e Oscar Wilde (homônimo do escritor), depois o médico pernambucano Edson Queiroz, que chegou a ter seu registro cassado por dois anos. É um dos espíritos mais presentes nas cirurgias paranormais.

Mas as carreiras dos cirurgiões psi não são sempre imaculadas. Os casos de fraudes e trapaças são frequentes até entre famosos, como o filipino Antonio Agpoa. Antes de morrer, em 1982, o cirurgião foi criticado por ex-pacientes insatisfeitos com seus tratamentos. Apesar de não aceitar pagamento pelas consultas, Agpoa não recusava grandes doações. Acabou milionário – contruiu um hotel 5 estrelas para hospedar a legião de enfermos a sua procura. São fartos também os casos de cirurgias espirituais que não passam de truques ilusionistas. Relatos documentados em revistas médicas dão conta de que tumores e quistos extraídos das supostas operações eram, na verdade, de animais.

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No Brasil, cientistas da Universidade Federal de Juiz de Fora decidiram investigar se as operações de João de Deus não seriam fraudes. O psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde da UFJF, investigou 30 operacões do médium. Em seis delas, recolheu tecidos extraídos e os analisou em laboratório. Todos eram compatíveis com as regiões do corpo operadas. Porém apenas um dos tecidos analisados apresentava anomalias, os demais eram sadios – o que trouxe a dúvida sobre a real necessidade das operações visíveis. “Aparentemente, não teriam efeito específico na cura dos pacientes”, concluiu. Mas não havia truque: os médiuns realmente cortavam a pele. Acompanhados, os pacientes não apresentaram sinais de infecção ou dor.

O antropólogo americano Sidney Greenfield foi ainda mais a fundo na investigação das polêmicas cirurgias. Greenfield veio ao Brasil nos anos 90 e filmou dezenas de operações de norte a sul do Brasil. Para atestar a veracidade dos procedimentos, levou os registros a um congresso de mágicos. Queria saber se estava diante de ilusionistas. Escutou um “não”. Mas os especialistas em truques apontaram algo curioso. Geralmente, as cirurgias eram feitas em centros espíritas, diante de dezenas de doentes. No momento em que os médiuns empunhavam o bisturi, quem estava em volta parecia estar em transe. Hipnotizados. Na Casa Dom Inácio, de João de Deus, por exemplo, é exigido que se vista branco e não se cruzem os braços. Nas paredes e em pequenos altares, santos e pedras espalham-se pela sala, enquanto 150 pessoas oram em silêncio. Há um cenário propício para a meditação. Estava aí uma possível resposta para a segunda pergunta que intriga a ciência: como operações feitas por cirurgiões sem diploma e alheios à higiene não provocam dor ou infecção?

Greenfield colocou os videoteipes embaixo do braço e foi a um congresso de hipnoterapeutas. O material recebeu atenção especial de uma autoridade no assunto, o psicólogo Ernest Rossi, seguidor do psiquiatra americano Milton Erickson, um dos primeiros a aplicar hipnose em uma sessão de terapia. Segundo Erickson, a mente fica naturalmente suscetível a entrar em transe num ciclo que ocorre a cada uma hora e meia ou duas horas, ficando mais focada e aberta às palavras do terapeuta – ele defendia que o paciente devia ficar, no mínimo, duas horas com seu analista. Grande parte dos rituais religiosos leva mais de uma hora e pode envolver rezas, danças, cantos, meditação, depoimentos e tratamento espiritual, incluindo as polêmicas cirurgias com cortes. “Os rituais de umbanda e os kardecistas duram mais que duas horas. Além disso, repetem ‘você não vai sentir dor!’ Essa informação é transmitida ao corpo como um remédio”, explica Greenfield. Um remédio poderoso. Segundo Rossi, palavras, pensamentos e emoções acionam a liberação de hormônios que, eventualmente, amplificam a nossa imunidade.

O clima propício a estados alterados de consciência, combinado com a crença na cura e com alterações hormonais decorrentes do relaxamento e capazes de turbinar a imunidade, é uma das hipóteses para explicar por que uma cirurgia espiritual com corte não provoca dor e pode, surpreendentemente, trazer benefícios. A própria medicina coleciona casos similares. Setecentos anos atrás, um jovem pároco recebeu o diagnóstico de um câncer na tíbia que crescia para fora da pele. Na véspera da cirurgia de amputação, rezou intensamente e, ao adormecer, sonhou que estava curado. Ao acordar, viu que a enorme ferida havia desaparecido. Voltou ao médico, que constatou não haver mais tumor. A doença nunca teria voltado. O jovem, conhecido como são Peregrino, virou o padroeiro da remissão espontânea do câncer e alimentou a crença popular de que é possível reverter prognósticos fatais. Na verdade, a remissão espontânea existe, sim. Em 1966, os médicos Tilden Everson e Warren Cole chegaram à conclusão que ela ocorre uma vez em 100 mil casos. O livro Spontaneous Remission (“Remissão espontânea”, sem tradução para o português), de 1993, documentou 3,5 mil referências a cura espontânea não só de câncer como também de outras doenças graves.

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A investigação sobre o que estaria por trás do sumiço espontâneo do câncer é surpreendente. Em 1891, um jovem cirurgião chamado William Coley, abatido com a perda do seu primeiro paciente, começou uma pesquisa obstinada para descobrir tratamentos mais eficazes. Foi quando se deparou com o relato médico de um imigrante operado duas vezes para a remoção de um tumor do tamanho de um ovo na bochecha. Os cortes da cirurgia não cicatrizaram direito e formaram uma ferida aberta, que acabou infectada por uma bactéria. O paciente ardeu de febre, e os médicos tinham pouco a fazer. Mas a febre cedeu e, ironicamente, o tumor foi diminuindo até desaparecer. Coley não demorou a se dar conta de que a infecção tinha sido, de alguma forma, a responsável pela cura. O sistema imunológico, ativado para combater a bactéria, também se voltou contra o câncer por tabela. Coley teve dificuldades de repetir o caso do imigrante em seus pacientes – às vezes, a infecção acaba matando o doente antes de destruir o câncer. Mas a descoberta mostrou à ciência como o nosso organismo tem capacidade própria para deter inimigos. Só precisamos de uma ajudinha.
 

Cirurgias espirituais
Elas podem ter efeitos reais, sim, mas não podem ser indicadas como tratamento efetivo.
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Com corte

São feitas por médiuns, que alegam encarnar espíritos de médicos, em casas espíritas e entidades filantrópicas, especialmente no Brasil e nas Filipinas, dois países em que a prática segue em alta. As operações duram menos de 5 minutos, não têm anestesia nem assepsia dos materiais usados, como bisturis, facas de serra e tesouras. Em muitos casos, não há sutura. A cicatrização ocorreria mediante “ordem” dos médiuns, assim como a cessação da hemorragia. Os pacientes não costumam sentir dor durante a cirurgia e até hoje não há registro de infecção. Os resultados podem ser inócuos, apesar de haver relatos de cura.

Sem corte

Grande parte das cirurgias espirituais envolve transfusão de “energias”, via orações, meditação e transe. São basicamente duas modalidades: no local e à distância. As operações à distância exigem que o paciente vista branco, deite em lençóis também alvos, com um copo de água ao lado – acredita-se que a água tenha o poder de guardar as boas energias. Para os espíritas, as cirurgias sem corte curam o corpo espiritual do paciente, o “perispírito”, que, quando desorganizado, é fonte de doenças.

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