“Eu detesto a América”: professor encontra 148 cartas de Alan Turing
As cartas, publicadas entre 1949 e seu suicídio, em 1954, mostram a rotina acadêmica de convites para palestras e entrevistas
Tem gente que dá sorte quando, em um monótono dia de folga, resolve arrumar o armário. É o caso do cientista da computação Jim Miles, professor da Universidade de Manchester, na Inglaterra. Em maio deste ano ele decidiu pôr ordem em uma das salas mais bagunçadas da instituição de ensino, lotada de arquivos antigos. E encontrou, em sua incursão empoeirada, uma pasta com 148 correspondências de Alan Turing – escritas entre 1949 e seu suicídio, em 1954.
Elas não revelam muito sobre a vida particular do pai da computação – parecem mais a versão analógica de um e-mail corporativo, com pitadas de spam. Das cartas que já estão no ar, a que mais chama a atenção é uma resposta lacônica escrita em 1953, quando Turing foi convidado para participar de uma conferência acadêmica nos EUA: “Eu não gostaria de fazer a viagem. Eu detesto a América.”
Outra é um educado pedido de um repórter da revista Chess – publicação britânica especializada em xadrez que existe até hoje. “Caro Sr. Turing, a imprensa deu várias notícias truncadas sobre a partida de xadrez proposta entre a sua máquina de calcular e a Universidade de Princeton. Eu apreciaria profundamente algumas palavras confirmando o que você realmente alega sobre seu cérebro eletrônico.” A carta faz referência a uma das primeiras tentativas de usar um computador para competir com um ser humano no jogo de tabuleiro – um dos primeiros passos rumo ao Deep Blue da IBM, que venceria o enxadrista Gary Kasparov em 1996, 40 anos depois.
Ele foi atencioso com o repórter: disse que não sabia nada sobre a suposta partida eletrônica, mas que não se importaria de tentar. E explicou que “a máquina em si não é jogadora de xadrez, mas tem funções múltiplas e pode, em princípio, jogar xadrez como uma de suas muitas atividades.”
Também foram encontrados um convite para visitar o MIT e um roteiro de rádio escrito a mão para um programa da BCC sobre inteligência artificial.
O arquivo não contém nada valioso sobre os dois fatos mais conhecidos da vida do pesquisador. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele colaborou com as forças armadas britânicas para decifrar a criptografia usada pelo exército alemão – mas o assunto, na década de 1950, ainda era segredo de Estado e não seria mencionado em correspondências casuais. Em 1952, foi acusado de “ato sexual ilícito” – Turing era homossexual – e submetido à castração química prevista em lei na época. Cometeu suicídio em 1954, embora algumas versões afirmem que sua morte foi acidental. Hoje, ele dá nome a uma lei de anistia retroativa, que perdoa todos os homossexuais condenados no Reino Unido ao longo da história.
A Universidade de Manchester já digitalizou todos os documentos, a lista está disponível aqui. “Quando eu vi aquilo pela primeira vez, eu pensei ‘não pode ser o que eu estou pensando que é'”, declarou Miles. “Uma inspeção rápida revelou que, de fato, aquilo era um arquivo de cartas e correspondências de Alan Turing. Me impressiona que isso tenha ficado desaparecido por tanto tempo.”