Explosão islâmica
O islamismo é a religião que mais cresce no mundo, oferecendo conforto espiritual para fiéis no mundo inteiro ¿ e dor de cabeça para governantes e líderes de outras religiões.
Ricardo Arnt
Já há mais de 1 bilhão de muçulmanos no mundo. O islamismo ultrapassou o catolicismo em número de fiéis em 1986 e continua a crescer. Nesse ritmo, deverão ser 1,1 bilhão de crentes no ano 2000 (veja gráfico na página 61). O número de adeptos aumenta inclusive em áreas tradicionalmente cristãs, como na Europa, África Ocidental e Estados Unidos. E até no Brasil.
Há muitas razões para essa explosão. Como você verá nesta reportagem, as taxas de natalidade nos países islâmicos são altas (veja mapa na página 61). Depois, o materialismo crescente da civilização moderna intensifica, segundo os estudiosos entrevistados pela SUPER, a busca de espiritualidade e transcendência, multiplicando seitas e religiões – desde as evangélicas à islâmica. Além disso, a filosofia do Islã têm carisma próprio: ela se propõe como síntese do judaísmo e do cristianismo, pregando ética, tolerância e responsabilidade social.
Mas, em contradição com sua doutrina, o islamismo também cresce com a intolerância, prejudicando sua própria imagem, sobretudo no Ocidente. Em vários países, multiplicam-se as correntes radicais fundamentalistas que rejeitam violentamente os valores modernos e estimulam movimentos terroristas (veja a página 62).
Polêmico e adorado, o Islã inspira 41 países e uma multidão de tendências, escolas e movimentos. E se expande cada vez mais.
Uma fé contra o materialismo
O islamismo é a última das três grandes religiões monoteístas, depois do judaísmo e do cristianismo – seus vizinhos na península arábica. Para os muçulmanos, Maomé é o último dos profetas de Deus (Allah, em árabe), numa linhagem que começa com Adão e passa por Noé, Abrãao, Moisés, Davi, Salomão, João Batista e Jesus Cristo. Todos, mensageiros de um mesmo Deus. Vários princípios islâmicos vêm do judaísmo e do cristianismo, como a circuncisão, o culto aos mortos, o juízo final e o próprio conceito de um Deus absoluto, justo e amoroso. Os Dez Mandamentos também valem para os muçulmanos.
A tolerância do Islã é histórica. Árabes, judeus e cristãos misturaram suas culturas na Península Ibérica dominada pelos muçulmanos de 711 até 1492. No Oriente Médio, as três religiões não tinham maiores atritos até as Cruzadas cristãs (1095-1291) acirrarem as tensões. Na Índia, islamismo, hinduísmo e budismo coexistem desde 647.
Unidade árabe
Em contraste com Jesus Cristo, sabe-se tudo sobre Maomé (570- 632), um pastor da tribo quraich, de Meca, que gostava de perfumes e casou onze vezes. No dia 22 de dezembro de 609, sua biografia sofreu uma brusca mudança, quando o anjo Gabriel lhe apareceu, numa visão, com as primeiras revelações do Alcorão, que viria a ser o livro sagrado do Islã. Achou que estava ficando louco e chegou a pensar em suicídio. Mas, aos poucos, acabou aceitando sua condição de profeta.
Durante 23 anos, Maomé recebeu a visita mística do anjo e ditou as palavras divinas que ouviu dele. Abandonou a profissão de condutor de caravanas e assumiu a missão de pregar a fé, opondo-se aos governantes de Meca. Fugiu para Medina, virou chefe da comunidade e, no ano 630, voltou, à frente de um exército, para tomar Meca e fundar o primeiro Estado do Islã – o governo da lei divina. Na verdade, unificou os árabes: o dialeto quraich, a língua do Alcorão, virou língua árabe, falada hoje em 24 países.
O islamismo, portanto, é uma religião jovem. Tem só 1 400 anos. “É a mais apropriada à época em que vivemos”, acha o escritor Mateus Soares de Azevedo, autor de Iniciação ao Islã e Sufismo. “Ela engloba a doutrina judaica e cristã com uma perspectiva universalista, democrática e totalizante, que orienta o crente desde o dia-a-dia até o plano espiritual. Serve para europeus, negros, asiáticos, pobres e intelectuais. E dispensa intermediário, pois cada muçulmano é seu próprio sacerdote.”
Para o professor egípcio Helmi Nasr, diretor do Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo, o islamismo “propõe uma existência ética em que todos são responsáveis diante de Deus”. Os homens não são donos de sua vida, de seus bens nem do planeta. Tudo pertence a Deus.
“Para o muçulmano, os deveres vêm antes dos direitos”, explicou à SUPER o filósofo francês Roger Garaudy, que converteu-se ao islamismo em 1982, quando tinha 69 anos. “O Alcorão condena o culto ao dinheiro e rejeita, radicalmente, os regimes baseados na acumulação de riqueza.” Assim, paradoxalmente, é o próprio materialismo contemporâneo que renova a atualidade do Islã – como seu antídoto.
Fundamentalismo toma o Alcorão ao pé da letra
Fundamentalismo é uma volta às origens. Uma tendência comum em todas as religiões. No islamismo, significa a interpretação literal do Alcorão. Mas há muito mal-entendido nessa leitura. Para começar, confunde-se fundamentalismo com “xiitismo”, o que é meia verdade. Noventa por cento dos muçulmanos são sunitas seguidores da sunna (tradição), que proclamou os califas sucessores de Maomé. Os dez por cento restantes são xiitas, seguidores da shi’at (facção), que defendia Ali, marido de Fátima, filha do Maomé, como o herdeiro espiritual do sogro. O martírio dos filhos de Ali, no ano 680, deu ao culto xiita uma intensidade apaixonada, diferente da sobriedade sunita.
A Revolução Iraniana, em 1979, liderada pelo clero xiita, transformou a palavra em sinônimo de fanatismo para os meios de comunicação do Ocidente. Mas não é bem assim. Há xiitas não-fundamentalistas e que não aceitam o terrorismo. Assim como há sunitas capazes de jogar bombas. Tanto que até os aitolás do Irã criticam os excessos do grupo fundamentalista Talibã, que tomou o poder no Afeganistão, em 1996.
Sem dúvida, a Revolução Iraniana é um marco. Os aitolás derrubaram uma monarquia pró-ocidental e fundaram uma república islâmica. Seu exemplo frutificou. Depois dela, fundamentalistas viraram governo no Sudão e em outros países. Movimentos radicais armados, como o Hamas, palestino, e o Grupo Islâmico Armado, argelino, ameaçam os governos do Líbano, Egito, Turquia, Tunísia, Kuwait, Paquistão e Bangladesh.
O fundamentalismo rejeita valores ocidentais como igualdade entre os sexos ou consumo de álcool. Seu apelo cresce com a migração para os centros urbanos, a industrialização, o desemprego e a exposição da permissividade e da abundância ocidentais na mídia. O ex-embaixador brasileiro na Síria, Antonio Amaral de Sampaio, tem um diagnóstico: “Seu êxito está na frustração dos jovens urbanizados, sem trabalho e sem oportunidades, privados dos valores dos pais. E, ao mesmo tempo, nas universidades, o fundamentalismo substitui as ideologias de esquerda.” Na juventude cresce o ressentimento e a disposição de enfrentar a globalização com a jihad (guerra santa). “O Islã sente-se acuado pela globalização”, diz o embaixador Sampaio.
Nos Estados Unidos, o fundamentalismo inspirou o “nacionalismo negro” do líder Malcolm X (1925-1965), influenciando o movimento pelos direitos civis e atraindo celebridades como Mohamed Ali (ex-Cassius Clay) e Mike Tyson. Na França, expande-se entre trabalhadores imigrantes e desempregados; os muçulmanos franceses já são 4 milhões, 7% da população. Na Alemanha, eles são 2,5 milhões, 3% da população, em sua maioria imigrantes turcos.
Monopólio da verdade
O problema, portanto, é político, não religioso. “O fundamentalismo”, diz o professor palestino-norte americano Edward Said, autor de Orientalismo e professor da Universidade de Columbia, nos EUA, “é menos um retorno às fontes da religião em si e mais uma reação a governos corrompidos”.
Mesmo porque as correntes fundamentalistas não têm monopólio da verdade e divergem entre si. A interpretação das leis corânicas na Indonésia não serve para o Afeganistão, a qual não vale para o Egito e não tem nada a ver com a Tunísia. Muito menos com o Mali. Isso porque, em cada um desses países, o dogma é filtrado pela cultura. “A doutrina religiosa importa menos do que a história social”, disse à SUPER o escritor francês Amin Maalouf, autor de As Cruzadas Vistas pelos Árabes. “Não foi o cristianismo que fez a Europa. Foi a democracia grega e o direito romano que tornaram o cristianismo europeu o que ele é hoje.”
Para Roger Garaudy, o erro dos fundamentalistas é “confundir a lei divina, a sharia, com sua legislação civil, penal e política, a fiqh, que trata de uso de véu, crime ou casamento”. A primeira, para os que crêem, vem de Alá. A segunda vem dos homens. “Aplicar uma disposição jurídica literalmente, porque está escrita no Alcorão, é confundir o que era válido no século VII, na Arábia, com a eternidade. Isso é um crime contra o Islã”.
Uma tradução cuidadosa e muito oficial
Já existe o Alcorão em português. Mas faltava a tradução oficial, que depende da aprovação da Liga Islâmica Mundial, da Arábia Saudita. Para fazê-la, o professor Helmi Nasr tirou licença do Centro de Estudos Árabes, da Universidade de São Paulo, por nada menos do que quatro anos. O pedido de licença foi feito pelo governo brasileiro que, por sua vez, atendia a uma solicitação do governo saudita.
Agora, com todos os 6 239 versículos das 114 suras (capítulos) traduzidos, só falta a fase de checagem, que cabe à Liga. Pode demorar. “A edição francesa foi examinada durante 15 anos”, diz o professor.
Estima-se que já existe meio milhão de muçulmanos no Brasil, principalmente em São Paulo, Brasília e Foz do Iguaçu. O número de mesquitas passou de 1, em 1955, para 45, em 1997. Dessas, 16 estão no interior paulista. O islamismo cresce entre descendentes de árabes e entre negros empenhados em recuperar as raízes islâmicas dos escravos africanos trazidos para o Brasil.
A primeira tiragem da edição oficial do Alcorão em português, a ser vendida em todos os países de língua portuguesa, terá 500 000 exemplares. Talvez não seja suficiente.
PARA SABER MAIS
Islamismo. De Maomé aos Nossos Dias, Neuza Neif Nabhan, São Paulo, Ática, 1996.
Iniciação ao Islã e ao Sufismo, Mateus Soares de Azevedo, Rio, Record, 1994.
Orientalismo, Edward Said, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
As Cruzadas Vistas pelos Árabes, Amin Maalouf, São Paulo, Brasiliense, 1994.
Internet: Cybermuslins: https://www.uoknor.edu/cybermuslim/cy-about.html
Cybermuslins na jihad virtual
Vários grupos pregam o islamismo na Internet. A SUPER entrevistou, pela rede, Mustafha Lokman, da Muslin Students Association, da Universidade de Buffalo, em Nova Iorque.
O islamismo é uma religião muito ativa até na Internet. Por quê?
O Islã oferece uma moral simples. No cristianismo há separação entre Igreja e Estado, vida religiosa e vida secular. No Islã, não. Nós não pensamos em Deus apenas uma vez por semana. Deus, a comunidade, tudo é parte de tudo. A Internet é uma estrada para a fé. Os muçulmanos não podem, nunca, forçar a conversão dos outros, só podem esperar que abram o coração para a mensagem.
Não lhe parece que alguns princípios do Islã, como poligamia ou uso de véu, estejam em contradição com o avanço tecnológico da Internet?
A poligamia desapareceu, praticamente. E tem muitas regras: um homem só pode ter até quatro mulheres, tem que sustentar todas, não pode ter haréns e tem que ajudar a famíla delas. Imagine o custo! É muito raro um muçulmano com mais de uma esposa. E só pode casar de novo se a primeira autorizar.
Quanto ao véu, deve-se vestir com modéstia. Mas ele só é exigido durante as preces. Minha mãe usa para rezar, mas se não quiser, não usa.
A Internet se caracteriza pela transparência. Mas a condenação de escritores como Salman Rushdie e Talisma Nazreen não ajuda a liberdade de expressão.
Salman Rushdie é um muçulmano hindu que culpa o Islã de seus problemas. Ele distorceu a história para ganhar publicidade. Seguiu o caminho de Nikos Kazantzakis, em A Última Tentação de Cristo. Para nós, Maomé é um modelo. Ele retratou sua experiência como uma tara sexual bizarra. Quanto a Talisma Nasreen, ele acusa o Islã pelos problemas das mulheres na sociedade sexista de Bangladesh.
O islamismo do governo bengali é suspeito. Eles misturaram Islã, capitalismo, socialismo, comunismo, fascismo. Não pode dar certo.
Mas Rushdie deve morrer por isso?
Não. Acho que a sentença de morte do governo do Irã contra ele é um exagero. Não precisamos de uma outra inquisição. Os homens têm direito à liberdade de expressão. Mas tudo tem limites. Homens não são deuses.