Gladiadores: Os que vão Morrer
Considerados cruéis e violentos, os torneios de gladiadores levavam os antigos romanos ao delírio. Serviam como termômetro da popularidade dos imperadores que ao promovê-los demonstravam apreço pelo povo
Maria Inês Zanchetta
Quando a banda de música entoava os primeiros acordes, era sinal de que ia começar o desfile dos gladiadores no anfiteatro da Roma imperial. Desarmados, eles davam a volta na arena e depois, perfilados, paravam diante do imperador e exclamavam: “Ave, Imperador, os que vão morrer te saúdam”. Então principiavam os combates, que provocavam excitação nos romanos e cujo final era, quase sempre, a morte. Na arena, pares de gladiadores davam um verdadeiro show de destreza, agilidade e coragem. Um homem alto e forte, vestido com um calção curto, manejava uma grande rede com a mão direita; na esquerda empunhava um tridente — quem lutava com esse armamento era chamado retiarius.
Com gestos precisos, o retiarius tentava enredar o adversário, um secutor, que combatia com espada, escudo e um elmo liso, para que a rede não o envolvesse com facilidade. Se o retiarius capturava o secutor, matava-o com o tridente. Não longe deles, outra dupla se batia: um thraex (trácio), com seu punhal curvo e um pequeno escudo redondo, se defendia de um mirmillo, que usando elmo e escudo retangular como proteção procurava atingi-lo com sua afiada espada.
Venciam os mais hábeis e corajosos, e a violência e o sangue deliciavam a platéia. No calendário de diversões dos romanos, do final do século II a.C. ao século V d.C., esses torneios foram muito populares. Neles se inspirou o poeta latino Marcial, no século I, para escrever versos que exaltavam a valentia de um gladiador: “Hermes faz as delícias de Roma e de seu século; Hermes é hábil no manejo de todas as armas; Hermes é gladiador e mestre de esgrima; Hermes é o terror e o espanto de seus rivais; Hermes sabe vencer, e vencer sem golpear; Hermes só pode ser superado por si mesmo”.
Os gladiadores eram, na maioria, escravos, prisioneiros de guerra ou alugados por seus senhores, homens condenados a trabalhos forçados ou jovens livres, de famílias empobrecidas, que abraçavam a profissão em busca de dinheiro e recompensas generosamente distribuídas aos vitoriosos. Havia também os condenados à morte, mas estes não podiam se defender — entravam na arena desarmados. Alguns gladiadores escravos até se aposentavam quando, após determinado número de combates, recebiam a liberdade, simbolizada por uma espada de madeira, além de ouro e jóias.
Escravos ou homens livres, num aspecto os gladiadores eram iguais: tinham invejáveis condições físicas. Todos, sem distinção de classe social, admiravam os lutadores. As mulheres, sobretudo. No século I, o poeta Juvenal satirizou um gladiador de nome Sérgio, que tinha os olhos sempre lacrimejantes, o rosto coberto de cicatrizes e o nariz permanentemente esfolado pelo uso constante do elmo. Apesar desses defeitos, Sérgio vivia rodeado de belas mulheres, patrícias e plebéias. Segundo o poeta romano Ovídio (43 a.C.-17 d.C.), as romanas freqüentavam os espetáculos pelos mesmos motivos que levam as mulheres modernas ao jóquei ou aos estádios esportivos: para verem e, sobretudo, para serem vistas.
Essa admiração feminina pelos gladiadores convertia-se, por vezes, em rumorosos casos de amor. Dizia-se que Cômodo, filho do imperador Marco Aurélio e de sua mulher Faustina, era, na realidade, fruto de um amor proibido entre ela e um gladiador. Embora os combates fossem provas de habilidade, técnica e domínio dos nervos, a morte era sua principal finalidade, e devia ser digna para não decepcionar o público. Para tanto, existiam em Roma, Alexandria, Pérgamo, Cápua e inúmeras cidades do império escolas especializadas no treinamento desses lutadores.
Nelas, a disciplina era rigorosa e a lei vigente era a do chicote, pois ali se misturavam criminosos, escravos e homens livres. Esse tratamento, por vezes, levava alguns ao suicídio ou à revolta. Eles aprendiam a lutar com uma enorme variedade de armas e, freqüentemente, os gladiadores não se enfrentavam com o mesmo armamento. Da mesma forma que um retiarius enfrentava um secutor e um thraex um mirmillo, havia também os samnitis, que usavam escudo grande e oblongo, capacete com viseira e espada curta. Os hoplomachi iam para a arena completamente protegidos por uma couraça, além de perneiras, viseira e escudo. Outros, como os essedarii, lutavam em cima de uma carruagem, enquanto os andabatae combatiam a cavalo, com um escudo e uma viseira totalmente fechada que os deixava às cegas. Os dimachaearum lutavam com uma pequena espada em cada mão e os laquearii usavam apenas um laço para derrotar seus adversários.
Embora usassem equipamentos diferentes, as condições dos gladiadores deviam ser equilibradas, para que nenhum deles ficasse em posição de inferioridade diante do outro. Isso tudo porque ao público não interessava apenas o contraste entre dois homens, mas entre diferentes técnicas de luta. Os condenados à morte, desarmados eram levados à arena geralmente ao meio-dia, horário em que o anfiteatro estava quase vazio. Era comum que os gladiadores enfrentassem feras, como leões ou panteras. Essas lutas eram chamadas venationes (caçadas), e conta-se que Pompeu (106-48 a.C.), general da República, fez matar quinhentos leões em cinco dias, enquanto Júlio César, também general (100-44 a.C.), promoveu a matança de quatrocentos num único dia.
Não há dúvida de que tais espetáculos eram acontecimentos oficiais que faziam parte da vida da cidade. A visão tradicional que se tem desses combates foi inspirada na célebre frase de Juvenal de que o povo só queria pão e circo. Mas os historiadores discordam. “A versão de que o imperador para governar tinha que dar pão e circo é simples demais, até porque ele participava pessoalmente das cerimônias e ali media sua popularidade”, explica a historiadora Maria Luiza Corassin, da USP.
“Os cidadãos de Roma tinham direito a alguns privilégios e os espetáculos promovidos pelo imperador eram uma forma que ele tinha de demonstrar seu apreço pela população, que, obviamente, não era ociosa como se costuma imaginar”, afirma Maria Luiza, professora de História de Roma. Os espectadores participavam do espetáculo com entusiasmo, gritando o nome de seus favoritos, alertando-os para as manobras de seus antagonistas e mesmo dando sugestões que, muitas vezes, se revelavam úteis até para os lutadores mais experientes. Na véspera dos combates, havia um banquete para gladiadores, mestres, admiradores e apostadores — estes queriam vê-los de perto para apostar com mais segurança. No dia seguinte, os armamentos eram inspecionados e as armas deviam estar bem afiadas.
Quando não havia vencedores — e isso podia acontecer —, o combate era anulado. Se o vencido não estava morto, a decisão de matá-lo ou não cabia ao vencedor, que sempre a transferia ao imperador ou à autoridade que o representava. Mas. normalmente, interrogava-se o público. O derrotado podia pedir clemência erguendo um dedo da mão esquerda, mas os mais valentes recusavam-se a isso e assim ganhavam a simpatia dos espectadores, que, levantando o polegar da mão direita, gritavam: “Livre, livre”. Se, no entanto, abaixassem o polegar, era morte certa. Aos gritos de “degola, degola”, o derrotado tinha o pescoço cortado.
Nos intervalos das lutas, a arena cheia de sangue era coberta com areia limpa pelos servos. Ao mesmo tempo, retiravam-se os mortos e feridos. Nas arquibancadas, vendiam-se refrescos, salsichas e bolos, da mesma forma que hoje nos estádios de esportes se vendem refrigerantes, cerveja e cachorro-quente.
A origem dos sangrentos combates de gladiadores remonta aos tempos dos etruscos, muito antes de a cidade de Roma ser fundada. Os antepassados dos romanos enterravam seus mortos executando rituais fúnebres, entre os quais se incluíam lutas onde servos e escravos eram sacrificados em honra ao morto. A princípio tinham caráter puramente religioso e só aconteciam de vez em quando, com a finalidade de tranqüilizar o espírito dos mortos.
Já no final da era republicana tais lutas não tinham mais relação com cerimônias fúnebres. A primeira vez que se ofereceu um torneio de gladiadores aberto ao público em geral foi em 264 a.C., quinhentos anos depois da fundação de Roma. Naquela ocasião, três duplas se enfrentaram. Um século depois, em honra à memória do pai do general da República Tito Flávio (227-174 a.C.), promoveu-se um torneio que durou três dias, com combates de 74 gladiadores. Nessa época, o espetáculo era patrocinado por particulares e só em 105 a.C. os cônsules Rutilo Rufo e Caio Manlio organizaram pela primeira vez um combate com caráter oficial. Ao se transformar em espetáculos públicos, as lutas perderam definitivamente qualquer ligação com a religião.
Mas era preciso um local apropriado para os torneios e por isso os romanos inventaram o anfiteatro. O primeiro foi construído em 53 a.C. A rigor, eram dois teatros de madeira, um de costas para o outro. Dessa forma serviam apenas para representações teatrais, mas, quando havia um torneio, um mecanismo girava os dois teatros, que se juntavam e formavam uma elipse: o anfiteatro. Antes da invenção, os combates se realizavam no fórum, onde se montava uma estrutura de madeira para essa finalidade. Sob os imperadores é que os torneios se incorporaram definitivamente ao calendário das diversões romanas.
Foi durante o reinado de Augusto (de 31 a.C a 14 d.C.) que se construiu o primeiro anfiteatro permanente, destruído no incêndio de Roma em 64. Só no tempo da dinastia dos Flávios é que se iniciou a construção do Coliseu, durante o governo de Vespasiano (69-79), entre os anos 70 e 72. Ele foi inaugurado por Tito em 80.
Com quatro andares e capacidade para abrigar 60 mil pessoas, tinha vários portões por onde entravam os espectadores com fichas numeradas. Nas primeiras filas sentavam-se as autoridades e nas restantes o público em geral. Às mulheres só era permitido sentar nas partes mais altas das arquibancadas, por sinal muito desconfortáveis. Já no Circo Máximo, que comportava 250 mil pessoas, realizavam-se corridas de quadrigas — carros com estrutura de madeira muito leve puxados por quatro cavalos. Em cima do carro ia o auriga, ou cocheiro, precariamente equilibrado.
Vestido com uma túnica leve, capacete de metal, faixas protegendo as pernas e chicote na mão direita, trazia as rédeas presas à cintura. Vencia quem chegasse primeiro à meta final e quem conseguisse sobreviver aos acidentes, muito freqüentes. Um auriga famoso foi Marco Aurélio Polinice, que chegou a correr num carro puxado por oito cavalos — verdadeira façanha, em carros tão frágeis e sem equilíbrio. Os imperadores adoravam promover torneios. Augusto, por exemplo, durante seu longo governo organizou oito, nos quais combateram 10 mil homens. Muito mais longe foi Trajano (período de 98-117): num espetáculo que durou 117 dias, ele fez lutar esse mesmo número de gladiadores. O luxo também cresceu e no reinado de Nero (54-68) os lutadores exibiam vestes enfeitadas de âmbar.
Domiciano, que governou de 81 a 96, chegou ao cúmulo da sofisticação ao organizar combates noturnos nos quais as espadas brilhavam na escuridão. Não sabendo mais o que inventar, esse imperador lançou pigmeus e mulheres na arena. Ao lado disso, o comércio de gladiadores tornou-se um negócio muito lucrativo e os organizadores dos torneios recorriam a empresários, que eram donos das escolas de gladiadores — os lanistas —, para comprá-los. Mas houve quem, diante da perspectiva de servir de diversão, optasse pela rebelião. A mais famosa e perigosa delas foi promovida por Espártaco, um prisioneiro de guerra trácio que amotinou a escola de gladiadores de Cápua em 73 a.C. Líder de mais de 60 mil homens, ele conseguiu derrotar exércitos e balançar os alicerces da República, até ser aniquilado. Os torneios foram abolidos em 313 pelo imperador Constantino, mas sem muito sucesso, pois continuaram até o século V, quando se tornaram definitivamente proibidos.
Para saber mais:
(SUPER número 8, ano 2)
O vilão reabilitado
(SUPER número 10, ano 7)
O incrível seqüestro de Charles Elbrick
(SUPER número 9, ano 8)
Gladiadores modernos
O prazer de assistir sentados a cenas violentas e sangrentas não foi, com certeza, privilégio dos antigos romanos. Em junho deste ano milhares de pessoas em todo o mundo assistiram pela televisão à grossa pancadaria na qual o lutador Mike Tyson derrotou seu adversário Michael Spinks, esmurrando seus braços, ombros, cabeça, baço e rosto. Por apenas 91 segundos de socos e sangue, 22 mil espectadores que lotaram o Cassino Trump Plaza, em Atlantic City (EUA), pagaram de 100 a 1 500 dólares (cerca de 32 mil a 476 mil cruzados, valores do final de julho). Nas primeiras filas era possível distinguir personalidades como os atores Jack Nicholson e Warren Beatty, a sensual cantora Madonna e até mesmo o romancista Stephen King, especialista em histórias de terror.
O espetáculo rendeu 70 milhões de dólares (cerca de 22 bilhões de cruzados) e só a emissora de televisão americana HBO, que comprou os direitos de gravação, pagou 3,1 milhões de dólares (ou 951 milhões de cruzados). Sem falar nas emissoras do mundo inteiro que adquiriram os direitos de retransmissão. Mas foi Tyson quem mais faturou: 22 milhões de dólares (6,9 bilhões de cruzados), enquanto Spinks recebeu 13,5 milhões de dólares (4,2 bilhões de cruzados) para apanhar. Considerado o mais impressionante fenômeno do boxe desde que Muhammad Ali (Cassius Clay) deixou os ringues em 1980, Tyson é o atual campeão mundial dos pesos pesados.
O boxe é o único esporte moderno em que o objetivo dos contendores é causar dano físico ao adversário. Embora não busquem matar, como seus antepassados da Roma imperial, isso não está formalmente proibido — e as mortes nos ringues têm sido bem freqüentes.
As origens do boxe podem ser buscadas na Grécia antiga, mas foi no final do século XVII, em Londres, que ele se transformou num esporte, com regras e regulamentos. Entretanto, no governo da rainha Vitória (período de 1837 a 1901), tanto a Igreja quanto a polícia passaram a reprimir o violento esporte. O boxe, então, emigrou para os Estados Unidos, e ali nasceram e se formaram suas maiores estrelas: Joe Frazier, Joe Louis, Rocky Marciano, George Foreman, Cassius Clay, entre outros.