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Haiti: A ilha do medo

Sessenta anos depois de os Estados Unidos saírem do Haiti, esse país está com a soberania ameaçada por uma nova intervenção.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h21 - Publicado em 30 set 1994, 22h00

Carlos Eduardo Lina da Silva, de Washington

Sessenta anos depois de os Estados Unidos saírem do Haiti, uma nova invasão americana pode estar a caminho. Hoje, ninguém diria que o país centro-americano já foi a mais próspera colônia das Américas. Poucos lembram, também, que foi a primeira República negra em todo o mundo, fruto de uma revolta de escravos.

Em outubro de 1934, saíam do Haiti os últimos soldados dos Estados Unidos, que haviam ocupado o país por 19 anos. Seis décadas mais tarde, as tropas americanas estão prontas para uma nova invasão, que pode ocorrer a qualquer momento. A seguir, você vai entender a angústia da ex-possessão francesa que já foi a mais rica colônia da América .

O Haiti foi uma das poucas nações que não entraram na onda de democratização da América Latina nos anos 80 e 90. A democracia até pareceu possível em 1990, quando o ex-padre católico Jean-Bertrand Aristide foi escolhido presidente nas primeiras eleições livres desde 1957. Mas Aristide, de convicção socialista, foi deposto nove meses depois da posse, em setembro de 1991. Em seu lugar, assumiu uma Junta Militar chefiada pelo general Raoul Cédras que se encon-tra ainda no poder apesar de todas as pressões.

A invasão, autorizada em 31 de julho último pela Organização das Nações Unidas, é considerada por alguns como a única maneira de reinstaurar a democracia. Outros discordam dessa tese. É o caso do historiador americano Richard Morse, 72 anos, ex-professor nas universidades de Yale, Stanford e Columbia. Em 1954, Morse casou-se com uma atriz haitiana e conhece o Haititanto quanto os Estados Unidos e o Brasil, país em que se especializou em suas pesquisas universitárias.

“A história do Haiti é muito nebulosa para os Estados Unidos”, diz ele, em entrevista exclusiva a SUPERINTERESSANTE. “Se nós a conhecêssemos um pouco melhor, teria sido possível encontrar soluções pacíficas, tanto agora como no passado”.

O curioso é que os americanos já invadiram o Haiti. Em 1915, quando os EUA iniciaram uma longa ocupação do país, que só terminou em 1934. O Haiti passava por uma de suas periódicas crises de poder. Havia luta nas ruas da capital, Porto Príncipe, e o então presidente americano Woodrow Wilson achava que era preciso ensinar os haitianos a elegerem “bons homens”. Entrar no Haiti foi fácil: sair é que foi o problema. Tanto que, agora, o temor de que a história se repita é a única razão que impede o governo americano de ordenar, de imediato, uma nova invasão.

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A possibilidade de sofrer baixas militares no Haiti apavora o atual presidente americano Bill Clinton. Os haitianos possuem recursos para resistir a uma invasão, embora suas Forças Armadas tenham apenas 7 000 homens e seis tanques leves, a Força Aérea, dois a-viões de treinamento e a marinha, quatro barcos de patrulha.

Richard Morse acha muito provável que ocorra uma nova “guerra de cacos” — ou guerra de guerrilha no idioma creole, mistura de francês com línguas da África Ocidental. Não é oficial, mas é largamente usado pela população.

No passado, a guerra de cacos estourou em 1918, três anos depois da entrada dos fuzileiros navais americanos, e durou até 1930. Morreram cem soldados norte-americanos. Hoje, as baixas poderiam ser muito maiores, devido ao atual poder de fogo haitiano. “Os haitianos sabem como atirar”, diz Morse. “Por quatro ou cinco dólares, qualquer um se dispõe a matar um soldado americano”. Deve-se levar em consideração, além do mais, que, para a opinião pública norte-americana pós-Vietnã, qualquer baixa é gravíssima.

Morse não identifica fortes sentimentos anti-americanos na população haitiana. Ele conta que, em maio, em sua mais recente visita a Porto Príncipe (onde tem uma casa), só se ouvia música americana nas ruas. E a maioria das pessoas usava camisetas com símbolos dos Estados Unidos. “Mas tudo isso pode mudar logo que os fuzileiros americanos começarem a matar haitianos”.

O fato é que as relações entre os Estados Unidos e o Haiti sempre foram difíceis. Em 1791, quando começou a revolução de escravos, os americanos apoiaram o governo colonial francês com dinheiro e tropas. E se recusaram a aceitar a independência do país, conquistada por meio da revolução, em 1804. O reconhecimento veio mais de meio século depois, em 1862. Talvez porque, nessa época, o presidente Abraham Lincoln enfrentava a guerra civil americana e precisava de apoio.

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Além desses entraves políticos, há o preconceito. O povo haitiano é visto pelos americanos com receio injustificado. Eles se deixam atemorizar por aspectos da cultura haitiana — como o vodu, religião praticada pela maioria dos haitianos. A reação dos americanos é típica da ignorância de que fala Morse, já que o vodu não é muito diferente do candomblé brasileiro. Como o candomblé, o vodu mistura partes do catolicismo com rituais e crenças de alguns países da África Ocidental, de onde saiu a maioria dos escravos haitianos, no século XVIII. Um dos traços mais peculiares do voduismo é a crença em zumbis, entidades místicas que se manifestariam às vezes como corpos ressuscitados, as vezes como almas destituídas de corpo.

No fim das contas, o que realmente assusta no Haiti é a situação social e econômica. O país está devastado pela miséria e pelas doenças — em especial a AIDS, que assola a população em proporções que só podem ser comparadas às da África.

Um historiador do século XVIII jamais previria tal destino para o Haiti. Ele era então a colônia mais rica das Américas. Em média, 700 navios por ano cruzavam o Atlântico a partir da Europa para ali se abastecerem de açúcar, café, algodão e cacau. Dois terços dos investimentos franceses no exterior eram dirigidos para Saint Dominique, como se chamava a parte ocidental da Ilha de Hispaniola. É possível que apenas a política explique o declínio sofrido desde então.

 

 

Para saber mais

O nascimento da democracia

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(SUPER número 6, ano 3)

A Primeira Guerra Mundial, mesmo

(SUPER número 10, ano 9)

1664 – Piratas na ilha

 

 

Piratas franceses ocupam o oeste da Ilha de Hispaniola, que seria, mais tarde, o Haiti.

 

1697 – Presença francesa

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Espanha e França assinam o Tratado de Rijswijk, dividindo Hispaniola entre si. O lado ocidental (francês) da ilha passa a se chamar Sainte Dominique (hoje Haiti) e o lado oriental (espanhol) Santo Domingo, hoje República Dominicana. Os índios Arawaka — a população nativa — já haviam sido dizimados. A eles se deve o nome Haiti, com o qual chamavam a ilha.

 

1791 – Revolução dos escravos

Sainte Dominique é a mais próspera colônia das Américas (os Estados Unidos já são independentes). Emprega as mais avançadas técnicas agrícolas quando estoura a primeira e única revolta bem sucedida de escravos na América.

 

1801 – A primeira República negra

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Toussaint-Loverture, líder dos escravos, torna-se governador geral e promulga a Constituição. O Haiti torna-se a primeira República negra do mundo. Toussaint acaba morto pelos franceses.

 

1804 – Independência e abolição

Após três anos de combates, SainteDominique obtém a independência e toma o nome Haiti. É a segunda colônia a ficar independente nas depois dos Estados Unidos.

 

1915 – Invasão americana

Tropas americanas invadem o Haiti por ordem do presidente Woodrow Wilson. Os americanos redigem uma nova Constituição para o Haiti. Prevista para durar 10 anos, a intervenção militar americana dura 19 anos.

 

1934 – Retirada dos marines

 

 

Os Estados Unidos se retiram do Haiti. Mesmo assim, mantém o controle direto do país até 1941.

 

1957 – Dinastia Doc

François Duvalier (Papa Doc), vence as eleições e um ano depois cria uma violenta organização paramilitar, os Tonton-Macoute. Essa polícia política o ajudaria a declarar-se presidente vitalício, em 1964. Em 1971, Papa Doc designa seu filho, Jean-Claude Duvalier (Baby Doc), presidente vitalício. Em 1986, Baby Doc é derrubado.

 

1990 – Democracia

O padre Jean-Bertrand Aristide se elege presidente em eleição que pretendia marcar a democratizacão do país. A experiência dura pouco. Em 1991, Roger Lafontant, ex-chefe dos Tontons-Macoute, fracassa numa tentativa de golpe de Estado e é linchado em praça pública até a morte. Aristide acaba deposto pelo comandante militar Raoul Cédras, e exila-se nos Estados Unidos.

 

1993 – Bloqueio

O Haiti tenta sobreviver a sanções econômicas aplicadas pelos Estados Unidos, pela ONU) e pela Comunidade Econômica Européia (CEE, que exigem a volta de um governo legítimo à nação. Cresce o êxodo de refugiados que abandonam o país.

 

1994 – Invasão?

A ONU tenta negociar a volta de Aristide ao poder, mas fracassa e seu Conselho de Segurança autoriza, em 31 de julho, a invasão militar do país. Os interventores, outra vez, seriam os americanos.

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