Humanos e cães: amizade até depois da morte
Civilizações antigas descobriram cedo as muitas utilidades da cachorrada – fosse na terra, na guerra ou no além.
Grécia: o berço dos molossos
O cachorro mais célebre da Antiguidade aparece na Odisseia, escrita por Homero no século 9 a.C. Odisseu – ou Ulisses – está voltando a seu reino, a Ítaca, após 20 anos de batalhas e andanças. Seu palácio encontra-se ocupado por pretendentes que desejam a mão de sua esposa, Penélope. Ulisses, então, pede à deusa Atena que lhe dê a aparência de um mendigo – e entra disfarçado em casa. Nenhum humano o reconhece. Apenas seu cão, Argos, não se deixa enganar pela ilusão urdida por Atena.
O cachorro fora criado por Ulisses desde filhote. Depois que o mestre partiu para a Guerra de Troia, Argos aguardou fielmente o seu retorno. Todos os dias, deitava-se em frente ao estábulo e esperava o dono chegar. Agora, velho e cheio de pulgas, finalmente o vê entrar no pátio de casa. Levanta-se nas patas fracas e balança o rabo. Mas o rei de Ítaca, com medo de estragar seu disfarce, não retribui a saudação. Uma lágrima escorre pelo rosto de Ulisses.
“Então”, escreve Homero, “Argos deitou-se e entrou na sombra da morte, pois havia cumprido seu destino de rever o dono após 20 anos de separação”. Não se sabe a raça de Argos, mas é provável que fosse um molosso – o cão favorito dos antigos gregos, surgido na região de Molóssia, entre as atuais Grécia e Albânia. Eram usados como pastores, caçadores e guardiões de casas.
Os molossos desapareceram no fim da Antiguidade e sua aparência também é incerta. Uma antiga escultura, hoje no Museu Britânico, em Londres, representa o molosso com uma cabeça de lobo. Alguns estudiosos, contudo, dizem que tinha o focinho largo e achatado; outros, que se parecia com um pit bull. Mas ninguém duvida de sua valentia: lutavam até com leões. Alexandre, o Grande, levou-os em sua campanha militar na Ásia para serem cães de guerra.
Filósofos e guardiões do inferno
O cinismo, uma filosofia criada por Diógenes de Sinope, buscava imitar o jeito despojado dos cães. Diógenes habitava um barril e vivia de esmolas. Daí o apelido de kynikos (cínico) – palavra que vem de kynos (cão). Os cães também figuravam na religião e na mitologia. Hécate, deusa das bruxas, andava com molossos negros. Já Ártemis, deusa da caça, tinha dois cães brancos – Sírio e Fócion. Ainda havia Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada do Hades – o mundo dos mortos.
Roma: contra homens e feras
No século 3 a.C., Roma dominou a Grécia e importou os molossos. Eles foram usados inicialmente para guardar rebanhos e casas. Nas Geórgicas, escritas no século 1, o poeta Virgílio garante: “Quem tem um molosso de guarda jamais precisará se preocupar com lobos, bandoleiros ou ladrões noturnos”. O cão ganhou reputação mítica e ilustrou mosaicos e pinturas por todo o império.
Graças à pele escorregadia e à camada de gordura que cobria seu corpo, conseguia evitar que as feras o mordessem em órgãos vitais. E metia-se a atacar javalis, lobos e até ursos.
A fama de brigão era tão grande que o molosso romano recebeu o apelido de canis pugnax, ou “cão lutador”. Nas arenas do circo romano, atracava-se com tigres, elefantes e gladiadores. A partir do reinado do imperador Marco Aurélio, no fim do século 2, os molossos foram levados também ao campo de batalha.
Usavam anéis com lâminas de ferro no pescoço e nas patas, e às vezes eram deixados sem comer antes dos combates para que se lançassem com ferocidade máxima contra o inimigo. No exército romano, havia companhias inteiras formadas apenas por cachorros e não é exagero dizer que o canis pugnax ajudou a expandir e manter as fronteiras do império. Na Inglaterra, deu origem ao mastiff e ao são-bernardo. Na Itália, seu descendente direto é o cane corso.
Além de proteger contra ladrões e bandoleiros, os cachorros eram defesa contra inimigos sobrenaturais. Os romanos acreditavam que a deusa Trivia, rainha dos fantasmas, assombrasse encruzilhadas e cemitérios. Quando um cachorro começava a latir sem motivo aparente, o dono sabia que Trivia, ou um de seus asseclas espectrais, se aproximava.
A civilização romana também usava cães como simples animais de estimação, sem funções econômicas ou bélicas. Uma das raças mais queridas era o galguinho italiano, que é visto correndo por aí até hoje.
Cave Canem
Nas ruínas de Pompeia, arqueólogos encontraram um mosaico na entrada de uma casa, representando um cachorro com uma coleira e trazendo a legenda “Cave Canem” – em latim, “Cuidado com o cachorro”.
É o mais antigo alerta desse tipo que se conhece – ancestral de muitas placas semelhantes vistas em jardins, muros e garagens modernas. Não se sabe a raça do cachorro retratado, mas o mosaico prova que os romanos tinham cães não apenas nas fazendas e nos exércitos, mas também em suas casas na cidade.
Egito: latidos do outro mundo
Em 1935, o egiptólogo George Reisner encontrou na Necrópole de Gizé a tumba de um cão chamado Abutiu, sepultado há mais de 3 mil anos. Além do nome, a lápide trazia várias honrarias ao mascote: “Sua Majestade ordenou que fosse sepultado com grande cerimônia, que recebesse um sarcófago do tesouro real, linho de alta qualidade e incenso”.
Abutiu viveu por volta de 2280 a.C. e é um dos primeiros animais domésticos conhecidos. É provável que tenha sido um cão de caça de um faraó. Não foram encontrados vestígios de seu corpo, mas a inscrição sugere que Abutiu foi mumificado. Na lápide, ele é descrito como um tesem – uma das raças mais antigas. Cachorros desse tipo eram esbeltos e de orelhas espetadas. Os tesem desapareceram, mas seus descendentes existem até hoje: são os pharaoh hounds. Abutiu não foi o único cão egípcio a receber honrarias póstumas.
Os cachorros eram membros queridos nas famílias egípcias e havia o costume de mumificá-los após a morte. Como sinal de luto, os familiares raspavam os pelos das sobrancelhas. Acreditava-se que o espírito dos cães vivesse após a morte, levando no além uma existência idêntica àquela que tinham na Terra. Na tumba do faraó Ramsés 2º (1279-1213 a.C.), existem gravuras que o retratam andando no mundo dos mortos junto a seus cães.
Os cachorros também eram associados ao deus egípcio Anúbis. Com sua famosa cabeça de chacal, ele conduzia as almas ao Salão da Verdade, onde seriam julgadas por Osíris. Reza a lenda que, ao nascer, Anúbis foi entregue a uma família de cães, que o criaram em meio aos seus filhotes.
Coleiras ancestrais
O mais típico aparato na relação entre humanos e cachorros já existia no Egito há 50 séculos. Prova disso é um afresco retratando um homem que puxa seu cachorro pela coleira – a pintura é de 3500 a.C. As mais antigas coleiras eram apenas anéis de couro ligados a uma corda.
A partir de 2040 a.C., ficaram mais elaboradas, com enfeites de cobre e bronze. Uma delas, encontrada em uma tumba datada do século 14 a.C., é embelezada por desenhos de cavalos e flores de lótus. Além disso, muitas coleiras traziam o nome dos animais – como Corajoso, Confiável e Bom Pastor.
Guias dos Vikings
Alguns estudos apontam que os vikings também acreditavam nos dotes sobrenaturais dos cães. Há indícios de que eles sacrificavam os mascotes para que orientassem almas humanas no mundo dos mortos. Um exemplo é o túmulo de Gokstad, construído por volta do ano 900, na Noruega.
Na tumba, foram encontrados oito cães enterrados com seu dono. Também há várias gravuras que retratam guerreiros vikings chegando ao além, acompanhados de cachorros.
Os Xolos astecas
Os Xoloitzcuintle (“cães pelados”) são uma raça originária do México. A lenda diz que os xolos, como são chamados, teriam sido um presente do deus asteca Xolotl aos homens – que deveriam cuidar deles e alimentá-los. Em troca, os xolos guiariam os espíritos em sua jornada por Mictlan, o Mundo da Morte.
Por isso, esses cães eram sacrificados e enterrados com seus donos. Ossos de xolos foram encontrados em túmulos astecas e de povos pré-colombianos, como maias e toltecas.