Enquanto na Europa ainda se faziam contas usando os numerais romanos, os muçulmanos incorporavam o sistema de numeração indiano, que vai de 0 a 9. Com base nessa inovação, o persa Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi desenvolveu a álgebra e a aritmética, enquanto que Omar Khayyam fundava as bases da geometria moderna e Sharaf al-Din al-Tusi descrevia o conceito de função, essencial para a engenharia. Aliás, quase todas as disciplinas de matemática que mais atormentam os estudantes de ensino fundamental e médio brasileiros, incluindo a trigonometria e geometria, foram delineadas dentro do Islã.
No campo da filosofia, Ibn Sina e Ibn Rushd, mais conhecidos como Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198), lideraram um amplo movimento de resgate do pensamento do grego Aristóteles. Em paralelo, eram criados hospitais, organizados internamente por setores especializados, incluindo as primeiras alas psiquiátricas de que se tem notícia. Por sua vez, Ibn Khaldun desenvolvia textos a respeito de sociologia, demografia e economia.
Enquanto na Europa se pensava que os olhos projetavam luz sobre os objetos, e por isso as pessoas enxergam, os cirurgiões islâmicos realizavam as primeiras cirurgias de correção de miopia – eles sabiam que a luz é que penetra nos olhos, assim como já entendiam que lesões na coluna ou nos membros podem ser causadas por problemas nos nervos.
A medicina era especialmente avançada. Apoiava-se nos preceitos de Ibn al-Haytham (965-1040), que previa a realização de experimentos padronizados, repetidos diversas vezes, em busca de resultados confiáveis e que se apliquem a diferentes populações – a base do método científico. Foi pensando assim que os médicos daquela região começaram a separar grupos de pacientes e grupos de controle, a fim de verificar o efeito de diferentes tratamentos médicos. Tudo isso aconteceu entre os séculos 8 e 13, o período em que o Islã alcançou sua Era de Ouro.
Centros culturais
Ao longo desses 500 anos, os muçulmanos resgataram clássicos das ciências e das artes das antigas culturas grega, romana, persa, chinesa, egípcia, indiana e fenícia. E não o fizeram nas horas vagas: criaram grandes centros de difusão e preservação, no qual trabalhavam, em tempo integral, especialistas muito bem remunerados – e não necessariamente adeptos do Islã, mas também cristãos e judeus.
No trabalho de resgate e tradução para o árabe e o persa, tiveram contato com o que havia sido produzido de mais sofisticado naquela vasta área do planeta, ao longo de um milênio. Para isso, se utilizaram de uma invenção que haviam conhecido no contato com os chineses, o papel em folhas, que formava livros como conhecemos hoje, e não rolos de pergaminhos, feitos de peles de cordeiro. Era um material mais grosso, que absorvia melhor a tinta, e, portanto, preservava o conteúdo por muito mais tempo.
O maior desses centros culturais e científicos estava em Bagdá. A Casa da Sabedoria, como era chamado o local, foi fundada no ano 825 e reunia centenas de pesquisadores de diferentes áreas. Também havia outros locais espalhados pelos territórios dominados pelos muçulmanos. Era uma área vasta, conquistada muito rapidamente a partir do século 7, quando o Profeta começou a reunir fiéis em torno dos ensinamentos que formariam o Corão.
A crença de que todo muçulmano deveria propagar a fé em Alá levou os seguidores de Maomé a realizar um vasto movimento de expansão territorial. Começando ainda nos últimos anos de vida do fundador da religião, entre 622 e 632, passaram pelas ações do Califado Rashidun (ou Ortodoxo), até 661, e as conquistas protagonizadas pelo Califado Omíada, até o ano de 750.
Partindo do convencimento das elites de Meca, uma cidade politeísta de onde partiram Maomé e seus primeiros seguidores, a Ummah, a comunidade islâmica, se expandiria rapidamente, pela via militar e missionária. Cem anos após a morte de seu fundador, o Islã já havia dominado os atuais Síria, Armênia e Egito, além do restante do norte da África. A conquista da Península Ibérica havia tido início em 711 e em 827 a Sicília pertencia aos muçulmanos. Naquele momento, o califado islâmico formava a segunda mais vasta civilização do planeta, atrás apenas da chinesa, com a qual mantinha intercâmbio.
“Se para os muçulmanos o mundo cristão era o Império Romano do Oriente, a cristandade não bizantina conheceu os muçulmanos principalmente por meio da invasão da Península Ibérica”, explica o mestre em história social André Leme Lopes no artigo O Conflito entre o Islã e o Ocidente: da Ascensão dos Árabes ao Ocaso Otomano. “A dinastia carolíngia, principalmente, se valeu de seu papel crucial na vitória na Batalha de Poitiers para, com o apoio do papa, ascender como o principal poder político da Europa ocidental.” Nessa batalha, em 732, o líder franco Carlos Martel derrotou conquistadores islâmicos e limitou seu avanço à Península Ibérica. Os carolíngios, que ganharam esse nome por causa dele, fortaleceram sua posição política no continente.
Escravos brancos
A expansão militar era acompanhada por uma ampla curiosidade cultural e pelo respeito às outras duas religiões monoteístas, o cristianismo e o judaísmo. Em dezenas de cidades ao longo dos territórios conquistados, cristãos e muçulmanos estudaram e trabalharam lado a lado. O comércio também se desenvolveu a partir das rotas formadas no Oriente Médio, antes mesmo do nascimento de Maomé.
Camelos atravessavam estradas de areia, tendo Bagdá como a grande capital comercial. Na medida em que controlaram toda a faixa de terra que alcança o norte da África, e na sequência passaram a se dirigir na direção da Índia, os árabes expandiram sua estrutura de rotas. Ocuparam então uma ampla avenida que conecta a China ao Mediterrâneo e passaram a controlar os caminhos por onde circulavam especiarias e tecidos – além de escravos.
As rotas muçulmanas eram utilizadas para transportar mão de obra capturada em diferentes pontos do território controlado pelo Islã. Era uma prática comum entre os árabes antes da ascensão da religião, mas o aumento do alcance territorial criou novos mercados. Brancos apreendidos no norte da África e na Península Ibérica eram bastante valorizados no Oriente Médio. Castrados, os homens serviam aos haréns dos maiores sultões muçulmanos. Um único califa, no século 10, podia manter mais de 10 mil eunucos, muitos deles nascidos onde hoje ficam Portugal e Espanha. Outros vinham da costa da Guiné, a mesma a partir de onde, séculos depois, os europeus comprariam negros para levar às Américas.
Chamada pelos árabes de Andaluzia, a Península Ibérica não se tornou apenas fonte de escravos. O enclave muçulmano dentro da Europa levou ao desenvolvimento de Córdoba, que por volta do século 10 havia se tornado o maior centro cultural e científico do velho continente. Por volta dessa época, a biblioteca real abrigava mais de 500 mil volumes e mais de 10 mil pessoas trabalhavam na construção do palácio do califa Al-Hakam 2o, que governou de 961 a 976.
Ali trabalhavam pesquisadores que desenvolveram tratados fundamentais de trigonometria, farmacologia, astronomia, agronomia e medicina. Entre os tradutores e pensadores conviviam cristãos e muçulmanos. Foi nessa época também que surgiram grandes feitos da arquitetura islâmica, como a Grande Mesquita de Damasco, a Mesquita de Ibn Tulan, na cidade do Cairo, e a Mesquita Azul de Córdoba. Famílias ricas europeias enviavam seus filhos para estudar em Córdoba.
Decadência
Mas por que os seguidores do Islã investiram tão pesado em educação, artes e ciência? “Poucas religiões da história da humanidade dependem tanto da ciência para realizar seus rituais”, respondeu o historiador David King no livro Astronomy in the Service of Islam. Todo o esforço empreendido tinha por objetivo alcançar o melhor conhecimento do mundo, tal qual fora criado, segundo a fé, por Alá.
Em muitos dos casos, a ciência tinha aplicações bastante práticas para os fiéis – para rezar na direção de Meca a partir de qualquer ponto do globo, como manda a tradição, é preciso conhecer geografia e astronomia. No entanto, mesmo em campos aparentemente mais neutros, havia justificativas religiosas para investir em pesquisas. “Qualquer um que estude anatomia vai ver aumentar sua fé na onipotência de Alá todo-poderoso”, declarou o filósofo Averróis.
Os meninos eram educados desde muito novos, dentro de madrassas (que só quer dizer “escola” em árabe) e com tutores particulares que atendiam em casa, começando pela alfabetização e pelo estudo do Corão. Depois podiam prosseguir cursando teologia, matemática, medicina ou direito. Uma das primeiras universidades do mundo, considerada a mais antiga ainda em funcionamento, é a de Al-Karaouine. Foi construída em 859, em Fez, no atual Marrocos.
Mas a Europa tomou a dianteira a partir do século 16. O Renascimento, aliás, foi diretamente influenciado pelos muçulmanos. “O encontro intelectual entre a Arábia e a Grécia Antiga foi um dos eventos mais importantes da história. Sua escala e suas consequências são enormes, não apenas para o Islã, mas para a Europa como um todo”, declarou ao jornal New York Times o professor aposentado de Harvard Abdelhamid Sabra, especialista na história das ciências desenvolvidas pelos árabes.
Quando do início da Revolução Industrial, no século 18, o velho continente já se via em estágio muito mais adiantado, em termos tecnológicos e científicos, do que os territórios muçulmanos, que não estavam nem perto de desenvolver nada parecido com navios movidos a vapor ou máquinas capazes de produzir em série. Por quê? “Ninguém jamais respondeu a essa pergunta satisfatoriamente”, afirmou Abdelhamid Sabra ao jornal americano.
É possível que a religião tenha estabelecido limites para a ciência – por exemplo, os pensadores árabes em geral se apegaram excessivamente a noções de astronomia que seriam posteriormente refutadas, como a ideia de que os corpos celestes permaneciam imóveis no espaço. Mas a redução do alcance militar também exerceu um papel importante.
Europeus à frente
Até que os cristãos assumissem para si a missão de tentar controlar Jerusalém pela via militar, os europeus eram autorizados pelos islâmicos a visitar os locais considerados sagrados pelo Vaticano. Mas, achacados constantemente na Terra Santa pelas Cruzadas, iniciadas no final do século 10 e que romperam o relativo equilíbrio com a civilização cristã, os muçulmanos ainda foram definitivamente expulsos da Península Ibérica em 1492. (Ainda assim, mesmo durante o período de confrontos constantes entre os dois lados monoteístas, havia casos de bom convívio, como o episódio ocorrido em 1219, durante a Quinta Cruzada, quando São Francisco de Assis entrou em campo de batalha, se deixou capturar pelos muçulmanos e foi levado diante do sultão do Egito, al-Malik al-Kamel. Francisco retornou à Europa convicto de que cristãos e islâmicos podiam restabelecer um relacionamento construtivo.)
Enquanto, no século 15, os europeus começavam a navegar por todo o planeta utilizando os conhecimentos desenvolvidos a partir de noções de geometria e astronomia fornecidas pelos árabes, o Islã passava por uma acomodação resultante da perda de territórios e de ataques militares sucessivos.
Já não existia a Casa da Sabedoria. Ela havia sido arrasada em 1258, resultado do cerco a Bagdá promovido por forças mongóis lideradas por Hulagu, neto de Gengis Khan, que saqueou e incendiou a cidade. Enfraquecida, essa civilização não contava mais com mecenas capazes de investir fortunas em centros acadêmicos.
As invasões mongóis, aliás, foram decisivas para a perda de territórios estratégicos, principalmente em áreas próximas das origens da religião muçulmana. A descentralização política e a perda de territórios deixaram um legado imenso e ainda não totalmente conhecido: existem em bibliotecas do norte da África e do Oriente Médio, milhares de manuscritos e artigos esperando ser relidos.
Depois da Idade Média, as relações se centraram no Império Otomano, uma superpotência que foi perdendo força. Seus vizinhos, como húngaros e austríacos, viviam em guerra. Os adversários deles, como a França, em 1536, e a Holanda, em 1570, chegaram a se aliar. Foi o colonialismo ocidental, principalmente após a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra, que deu origem à inimizade atual.