Mulheres – Anjos de saia
Longe do front ou empunhando armas, mulheres assumiram posições de risco contra o regime nazista empenhadas em salvar vidas, forjar documentos e denunciar as atrocidades dos alemães
Eduardo Szklarz
Em um episódio que ficou célebre, no inverno de 1943, em Berlim, um protesto de mais de 6 mil mulheres fez o governo nazista recuar e soltar 1700 judeus casados com alemãs. O ato ficou conhecido como Protesto de Rosenstrasse. Houve apenas um Rosenstrasse, mas outras grandes figuras femininas conseguiram feitos notáveis na luta contra o horror. Usando da influência dentro do Partido Nazista, confeccionando passaportes falsos, escondendo pessoas dentro de casas de oficiais alemães ou resgatando crianças em campos de concentração, algumas pagaram com a própria vida. Saiba quem foram elas.
Um grito na guilhotina
QUEM
PHIE SCHOLL
NASCIMENTO
FORCHTENBERG (ALEMANHA)
ONDE ATUOU
MUNIQUE
POR QUE É HEROÍNA?
FOI GUILHOTINADA POR DISTRIBUR PANFLETOS ANTINAZISTAS
Dia 22 de fevereiro de 1943. Silêncio na Corte Popular do Palácio de Justiça de Munique. No banco dos réus, a alemã Sophie Scholl, 21 anos, aguardava a sentença. O juiz Roland Freisler selou seu destino: pena de morte por alta traição ao 3º Reich. Seu irmão, Hans Scholl, e o amigo Christoph Probst receberam pena idêntica. Naquele mesmo dia, às 17 horas, os três estudantes perderam a vida na guilhotina. Sophie integrava a Rosa Branca, uma organização de resistência não violenta contra o nazismo. Em vez de empunhar armas, o grupo usava um mimeógrafo e uma máquina de escrever. Imprimia folhetos que denunciavam as atrocidades do regime. “Por que o povo alemão está tão apático em face desses crimes abomináveis?”, dizia um dos papéis. Outro anunciava: “Nosso povo está pronto para se rebelar contra a escravização nacional-socialista da Europa”. Os panfletos eram enviados por correio a alunos e professores de faculdades da Alemanha. Sophie e seus colegas mandavam as cartas de vários pontos do país. Tanto fizeram que atraíram a atenção da Gestapo.
“A Gestapo pensava que a Rosa Branca era uma organização enorme. Não sabia que tinha apenas 6 membros no núcleo principal”, diz a pesquisadora americana Kathryn J. Atwood no livro Women Heroes of World War II (inédito no Brasil). Além de Sophie, Hans e Christoph, o grupo central era formado por outros dois alunos da Universidade de Munique e um professor, Kurt Huber. Foi Huber que escreveu o sexto e último panfleto, no início de 1943. Foi quando os estudantes cometeram um erro fatal: distribuíram o panfleto pelos corredores da universidade e foram vistos pelo funcionário Jakob Schmidt, nazista de carteirinha que os dedurou à Gestapo. Os outros integrantes se salvaram por falta de provas. Durante o julgamento, sem autorização para falar, Sophie gritou: “Alguém tinha de começar! O que escrevemos e falamos é o que muitas pessoas pensam, mas não têm coragem de dizer em voz alta!”.
A condessa generosa
QUEM
MARIA VON MALTZAN
NASCIMENTO
MILICZ (POLÔNIA)
ONDE ATUOU
BERLIM
POR QUE É HEROÍNA?
ABRIGOU MAIS DE 60 JUDEUS EM SEU APARTAMENTO
Em 1943, o governo declarou que Berlim estava judenfrei (“livre de judeus”). No entanto, vários deles viviam escondidos pela cidade. Um dos refúgios era o apartamento da Maria von Maltzan, filha de um conde alemão. Ela havia se doutorado em ciências naturais em 1933, ano em que Hitler chegou ao poder. Desde então arriscava a própria pele para proteger judeus em fuga.
Os refugiados ficavam em seu apartamento por alguns dias até conseguirem um jeito de sair do país. Mas o namorado de Maria, o escritor judeu Hans Hirschel, mudou-se de mala e cuia para lá. Quando alguém chegava, Hans se ocultava no fundo falso de um sofá na sala. Maria não levantava muitas suspeitas porque era da fina-flor de Berlim, tinha acesso a informações da elite do Partido Nazista e sua posição privilegiada na sociedade a livrava de maiores problemas.
Até o que dia em que um oficial bateu à sua porta. Ao entrar no apartamento, ele olhou para o sofá e perguntou: “Como posso saber se alguém não está escondido aqui?” Maria decidiu correr o risco: “Se você está seguro de que tem alguém aí, vá em frente e atire. Mas, antes de fazer isso, deixe uma declaração por escrito garantindo que vai pagar pela restauração do sofá”. Deu certo. O oficial não disparou e saiu do apartamento.
Até a rendição alemã, em maio de 1945, ela continuou ajudando vítimas do nazismo. Fez documentos falsos e contrabandeou pessoas dentro de móveis para a Suécia. “Maria sozinha salvou mais de 60 judeus e inimigos políticos dos nazistas, além de ajudar no resgate de muitos outros”, diz a pesquisadora americana Kathryn J. Atwood. Depois da guerra a condessa se casou com Hans e trabalhou como veterinária em Berlim até morrer, em 1997.
Virou amante do major e salvou 12
QUEM
IRENE GUT
NASCIMENTO
KOZIENICE (POLÔNIA)
ONDE ATUOU
UCRÂNIA
POR QUE É HEROÍNA?
ESCONDEU 12 JUDEUS NA MANSÃO DE UM OFICIAL ALEMÃO
A enfermeira polonesa Irene Gut tinha 17 anos quando fugiu para a fronteira com a União Soviética. Voltou à cidade onde morava (Radom) em 1942, aos 20 anos, quando o major nazista Eduard Rugemer lhe ofereceu emprego de garçonete. Servia os oficiais e, nas horas vagas, contrabandeava comida para o gueto. Rugemer foi para a Ucrânia. Irene também foi enviada para lá, onde seria governanta de sua mansão. Ela escondeu 12 judeus na casa. O major sempre voltava do trabalho na mesma hora. Um dia, porém, chegou mais cedo e flagrou três judias na cozinha. Topou guardar segredo desde que ela virasse sua amante. A jovem cedeu. No fim da guerra Irene se uniu à resistência polonesa. Por sua valentia, recebeu homenagens do papa João Paulo 2º e do Museu do Holocausto de Jerusalém.
“Você me tirou do gueto”
QUEM
IRENA SENDLER
NASCIMENTO
OTWOCH (POLÔNIA)
ONDE ATUOU
GUETO DE VARSÓVIA
POR QUE É HEROÍNA?
LIVROU 2500 CRIANÇAS DO GUETO EM MALAS, BALDES E SACOLAS
Conhecida como “O Anjo de Varsóvia”, a enfermeira salvou mais de 2500 crianças da morte. Irena era administradora do Serviço Social de Varsóvia. Quando a guerra estourou, em 1939, começou a fazer documentos falsos, fornecer remédios, roupas e dinheiro para os judeus. Sua atuação passou a ser mais incisiva a partir de 1942, quando os nazistas enclausuraram centenas de milhares de judeus em uma área de 16 quadras. Horrorizada com o Gueto de Varsóvia, a enfermeira se tornou recruta da Zegota, movimento de resistência polonês.
Com livre trânsito nos campos de concentração, que visitava sempre com uma estrela de Davi no braço em solidariedade aos prisioneiros, Irena distribuía comida e medicamentos aos confinados. Usando como pretexto um surto de febre tifoide, que os alemães temiam que se expandisse além das fronteiras do gueto, conseguiu retirar as 2500 crianças “doentes” em ambulâncias da Zegota. Uma vez fora do gueto, as crianças eram escondidas como dava: em sacolas, maletas de ferramentas, baldes e cestos de lixo. Irena anotava o nome de suas famílias e enterrava em local seguro para que depois da guerra pudessem retornar a suas casas. E encontrava famílias não judaicas para cuidar delas. Usava o antigo tribunal à beira do Gueto de Varsóvia, conventos católicos e orfanatos como rotas de “contrabando” de crianças.
Em 1943 Irena foi presa pela Gestapo e torturada na prisão de Pawiak. Foi condenada à morte, mas escapou graças a um gordo suborno da Zegota. No pós-guerra, renegava o título de heroína: “Cada criança salva com a minha ajuda é a justificação da minha existência na Terra, e não um título de glória. Eu poderia ter feito mais. Esse lamento vai me seguir até a minha morte”. Foi premiada com a honraria máxima da Polônia, a Ordem de Águia Branca, com o título de Justo entre as Nações e indicada ao Prêmio Nobel da Paz. Depois que sua foto apareceu nos jornais, passou a receber várias ligações. “Um homem, um pintor, me telefonou e disse: ‘Eu lembro do seu rosto’, disse ele. ‘Foi você quem me tirou do gueto. Obrigado’.” O “Anjo de Varsóvia” morreu em 2008.
A líder sem roupa
QUEM
MARIE-MADELEINE FOURCADE
NASCIMENTO
MARSELHA (FRANÇA)
ONDE ATUOU
FRANÇA E INGLATERRA
POR QUE É HEROÍNA?
FOI A ÚNICA LÍDER FEMININA DA RESISTÊNCIA FRANCESA
Em tempos de guerra, o pudor não era prioridade. Marie-Madeleine Fourcade conseguiu escapar duas vezes de prisões nazistas – na última, já combatente veterana, saiu sem roupas. Sua história de luta começou em junho de 1940. A francesa, divorciada e mãe de dois filhos, não engoliu a rendição de seu país e abandonou o emprego em uma editora para ingressar na Resistência Francesa, na rede chamada Alliance. Quando o chefe da rede foi preso, em maio de 1941, assumiu o posto – foi a única líder mulher da Resistência. Sua unidade trabalhava com informação, observando e transmitindo para os ingleses movimentos e posições dos nazistas e colaboracionistas. Em agosto de 1941, impressionados com seus serviços, os ingleses supostamente enviaram um operador de rádio para auxiliá-la. Era uma armadilha: o operador era um agente nazista. Marie-Madeleine e vários membros de sua rede foram presos, mas ela conseguiu fugir em 10 de novembro de 1942 aproveitando uma distração dos nazistas. Depois disso, mandou os filhos para a Suíça e passou a viver na clandestinidade. Em 1943, os ingleses decidiram tirá-la da França em uma operação secreta, e ela passou a operar em solo britânico até pouco depois do Dia D, quando desembarcou de novo na França e voltou a espionar os nazistas. Foi presa novamente pela Gestapo, mas não se fez de rogada: tirou as roupas e, magra, conseguiu atravessar por entre as grades. Após a guerra, fundou associações de veteranos da resistência e participou dos julgamentos do colaboracionista Maurice Papon e do nazista Klaus Barbie.
Bala na faca
QUEM
ETA WROBEL
NASCIMENTO
LOKOV (POLÔNIA)
ONDE ATUOU
FLORESTAS POLONESAS
POR QUE É HEROÍNA?
ATUOU NA GUERRILHA POLONESA
Eta Wrobel atuou na resistência desde o início da invasão da Polônia. Começou criando passaportes falsos para judeus. Em 1942, quando o gueto de Lokov foi liquidado, conseguiu fugir com o pai para a floresta e ajudou a fundar uma brigada judaica. Dos 80 integrantes iniciais, só 7 eram mulheres. Eta se recusava a lavar e a cozinhar. Seu negócio era o combate. “Para nós, era difícil conseguir armas. Os russos tinham muitas, mas não queriam nos dar. Então nós roubávamos deles”, contou. Um dia, recebeu um tiro na perna e arrancou a bala com uma faca. Viveu no fogo cruzado até 1944. No mesmo ano, casou-se e mudou para os EUA, onde morreu em 2008.
A predadora dos ares
QUEM
MARINA RASKOVA
NASCIMENTO
MOSCOU (RÚSSIA)
ONDE ATUOU
VÁRIOS FRONTS
POR QUE É HEROÍNA?
ORGANIZOU AS DIVISÕES FEMININAS DA FORÇA AÉREA VIÉTICA
Em 22 de junho de 1941, Hitler rompeu o pacto de não agressão com Josef Stálin e invadiu a União Soviética. Tinha início a Operação Barbarossa, que contava com 3 milhões de soldados alemães. Em agosto, as forças do Führer haviam capturado 3800 tanques e feito prisioneiros mais de 870 mil soldados soviéticos. Mas a URSS virou a mesa, e não só graças aos homens de suas tropas. Muitas mulheres tiveram sinal verde para combater inspiradas no exemplo da piloto Marina Raskova. Nos anos 30, ela havia se tornado a primeira navegadora da Força Aérea Soviética. E colecionava aventuras, como um voo ininterrupto de mais de 26 horas que quase acabou em tragédia – o mau tempo obrigou a tripulação a fazer um pouso forçado. Ela e duas colegas ficaram dias à espera de resgate. Em fins de 1941, organizou três esquadrões formados inteiramente por mulheres – das mecânicas às oficiais. O de número 588 voava em missões noturnas e gerava enormes danos às divisões alemãs. Sua máquina de guerra era o caça Yakovlev Yak-1, que levava 3 metralhadoras e tinha um raio de ação de 600 quilômetros. Raskova também comandou o Regimento de Aviação 125. Vários países tinham mulheres pilotos, mas, segundo Robert Jackson, autor de Air Aces of WWII, a URSS foi a única a usá-las em combate. Marina morreu em 1943, em um pouso forçado provocado por uma falha mecânica. Tinha 30 anos. Recebeu uma medalha póstuma por sua bravura, caso raro entre as soviéticas.