De Bagdá às Américas: como os nórdicos conquistaram o mundo
Os vikings não se limitaram às terras geladas do norte da Europa: interagiram com povos tão distantes quanto os bizantinos, e nem sempre em pé de guerra.
Em 16 de julho de 1999, os arqueólogos Jonas Ström e Kenneth Jonsson gravaram um pequeno quadro para a TV4 da Suécia. Denunciavam o roubo de relíquias arqueológicas numa fazenda na ilha de Gotlândia, ao sul do país, onde 150 moedas e objetos haviam sido achados pelo proprietário. Quando se despediram da equipe, resolveram pegar seus detectores de metais e continuar o trabalho. Vinte minutos depois, acharam mais moedas. Após três horas, o detector simplesmente travou: deu uma mensagem de “sobrecarregado” e se desligou sozinho. Ao longo dos próximos dias, com furor da mídia, tiraram do chão 14.295 moedas. Quatro delas nórdicas, uma bizantina, 23 da Pérsia. Todas as outras moedas eram árabes. E essa é a marca certeira de um tesouro viking. Neste caso, o maior já achado.
Antes de chegarmos lá, vamos ao que é bem estabelecido: os vikings foram responsáveis por imensa violência, é inegável. Seriam dois séculos de pilhagens e conquistas, começando pelo fatídico ataque ao mosteiro de Lindisfarne, na Inglaterra, em 793 – que possivelmente não foi o primeiro, mas alertou os cristãos para o perigo. Um ataque particularmente brutal, no qual os invasores não só roubaram, mataram e fizeram escravos, mas violaram todas as relíquias em que puseram as mãos, pisoteando-as alegremente. Um ataque que, pelas riquezas levadas, também parece ter incentivado os vikings a voltar.
E voltariam: no século seguinte, conduziriam um número desconhecido de ataques, não só contra os europeus, mas povos tão distantes quanto os mouros da Península Ibérica e Norte da África, persas no Mar Cáspio, até os nativos da América. A Inglaterra sofreria mais que qualquer lugar, tendo que enfrentar a primeira grande incursão militar viking, o Grande Exército Pagão, que em 865 conquistou a maioria do país. Todo o território cairia sob o comando nórdico em 1013, sob o sueco Canuto 2º, com uma dinastia nórdica mais duradoura estabelecida em outra conquista, pelo normando Guilherme 1º, em 1066.
Mas as pessoas não têm como viver só de ouro e prata, e os nórdicos não eram diferentes. O material que saqueavam não servia só para adornar as mansões dos reis e chefes tribais de volta à Escandinávia, mas eram material para comércio. E o mais útil em casa e mais fácil de negociar desse “extrativismo” eram escravos, apreciados em particular no Império Bizantino e entre os islâmicos.
Escravos brancos e negros: a cidade de Dublin, na Irlanda, foi fundada pelos vikings em 795 como um entreposto comercial de escravos. Após as primeiras incursões, os vikings estabeleceram um método simples para fazer negócios: encalhavam seus navios na praia e avaliavam a situação. Havia chance de confronto militar? Ou só monges e aldeões despreparados? Se fosse o segundo caso, seguia-se a pilhagem. No primeiro, comércio, numa tradição ancestral de toda a humanidade: espalhavam suas mercadorias no chão e esperavam as pessoas trazerem as suas.
Isso era escambo, o que era praticamente a única forma de comércio na Europa Ocidental desde o fim do Império Romano do Ocidente, em 476. O escambo tem uma desvantagem: só funciona se os dois lados concordam com o que vai ser trocado. Um queijo por um cálice só vale se ambos os lados estão interessados nesses itens. Assim, como acabavam com todo tipo de produto em mãos, os vikings reintroduziram o sistema monetário na Europa. E fizeram isso principalmente com dinares islâmicos, obtidos em pilhagens, mas também com comércio – e suas caravanas chegaram até Bagdá, e talvez ainda mais longe, à Pérsia.
Os nórdicos tinham produtos próprios: mel, trigo, estanho, peles, ossos de baleia, chifres de renas, marfim de morsa, âmbar e bacalhau, uma invenção culinária deles. Esses eram trocados pelas já citadas moedas e escravos, mas também vidros finos, seda, vinhos, armas e especiarias.
Essas transações pacíficas evoluíram para diplomacia, e os vikings criaram colônias por onde passaram: não só a já citada Dublin, como Kiev e York estão entre suas colônias. Também atuaram como mercenários para os cristãos bizantinos, na forma da Guarda Varangiana, recrutada a partir de Kiev em 894, e atuando até a Quarta Cruzada (1204), muito depois de sua conversão, como força de elite do Império Bizantino.
Os vikings estavam em todo lugar, mas provavelmente sua força mais decisiva na história seria um contingente que ganhou o direito de colonizar a Normandia, na França: os normandos. Em 911, Rollo, um senhor da guerra viking, líder da invasão na região, foi transformado em Duque da Normandia pelo rei Carlos 3º da França, que o adotou como vassalo. Era uma solução para os ataques dos próprios vikings, que famosamente haviam saqueado Paris em 845, liderados por Ragnar Lodbrok (a série Vikings retrata Ragnar e Rollo como irmãos, mas não tinham nenhuma relação e suas ações estão separadas por muitas décadas).
Rollo se converteu, e com ele os normandos. Nascia uma potência que acabaria por conquistar todas as ilhas britânicas (1066), o sul da Itália – começando pela Sicília tomada dos islâmicos (1091) –, fazer guerra de viking contra viking contra o ainda poderoso Império Bizantino (1040-1185), se tornar uma força na Primeira Cruzada (1099), e até estabelecer um país em outro continente: o Reino da África (1135-1160), ocupando territórios na atual Tunísia.
Depois da conquista da Inglaterra, sua história se confunde com a dos ingleses: os reis britânicos da dinastia normanda ainda eram formalmente vassalos dos reis franceses. Mas dominavam metade da França. A situação desembocaria na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), na qual reis ingleses clamaram por seus territórios como descendentes dos vikings.
O fim da Era Viking é marcado justamente por uma disputa interna: na Batalha de Hastings, em 1066, o norueguês Harald Hadrada, que havia invadido a Inglaterra à moda antiga, foi derrotado pelo normando Guilherme, o Conquistador. Ambos eram cristãos. Aos poucos, os nórdicos foram adotando a religião e costumes dos ex-inimigos, por diplomacia e trabalho missionário. Em 975, o rei Haroldo Dente-Azul, da Dinamarca (que batizou o dispositivo bluetooth criado pela empresa sueca Ericsson), foi o primeiro a declarar seu país cristão. A conversão de chefes isolados levaria séculos.
Nas Cruzadas do Norte, entre 1147 (data do primeiro ataque; oficialmente começou por ordem do papa em 1171) e 1293, suecos e dinamarqueses confrontaram pagãos do Mar Báltico: finlandeses, estonianos, lituanos, letões e povos da atual Polônia. Em vários casos, no lugar de tomar o território em nome da cristandade, simplesmente chegaram em seus barcos longos, saquearam tudo e deram meia-volta. Hábitos antigos são difíceis de eliminar.
Sem chifres, com lanças: guerra à moda do Norte
Viking não é o mesmo que nórdico: é uma mistura de pirata, guerreiro e comerciante. Quem ficava em casa era pastor, ferreiro, lavrador. Em combate, os vikings prezavam o ataque, atuando numa formação chamada svinfylking (“focinho de porco”), uma cunha para romper a linha inimiga, aproveitando a vantagem de ser maiores e mais motivados que seus adversários. Mas ficavam em desvantagem em combate prolongado, no qual a defesa conta mais. Também não possuíam cavalaria. Suas armas principais não eram, no começo, os famosos machados, mas lanças de 2 a 3 metros de comprimento.
O que valia para os outros, valia para eles: lanças permitiam um alcance muito maior, e alcance significa matar o inimigo antes que ele possa matar você. Espadas eram armas secundárias, caras e de grande status, reservadas a líderes. Até os famosos berserkers, guerreiros reais, que iam para a batalha em transe furioso, sem armadura, tática ou preocupação com a própria vida, foram retratados com lanças. O humilde machado, que servia para cortar lenha em casa, era a arma secundária mais comum, mas acabaria ganhando importância: é mais potente contra armadura e, por influência dos vikings, cavaleiros cristãos acabariam por adotá-lo. Os próprios vikings usavam armadura de tecido, couro, cota de malha, o que o dono pudesse pagar.
Elmos de ferro protegiam o rosto e absolutamente não tinham chifres. Isso é invenção de óperas alemãs do século 19. O moral do guerreiro nórdico era alto. Sua religião famosamente só dava acesso a Valhala, o paraíso, para quem morria em combate. Também acreditavam em destino, não o livre-arbítrio dos cristãos: se a morte já estava marcada, desviar-se dela era só covardia. Guerreiras mulheres (Skjaldmö) aparecem nas histórias nórdicas. Em 2017, a análise de um famoso “guerreiro”, descoberto em 1889, revelou que era uma mulher. Não é claro o quão comuns elas eram em campo.
Os primeiros europeus na América
Até 1963, quando um acampamento claramente viking foi encontrado em L’Anse Aux Meadows, na Ilha de Terra Nova, Canadá, todo mundo achava que a Saga de Eric, o Vermelho e a Saga da Groenlândia eram, ao menos em parte, mitológicas. Elas descrevem a colonização da Groenlândia por Eric, o Vermelho, em 985. Dessa parte ninguém nunca duvidou: os nórdicos continuaram por lá, vivendo principalmente do comércio de peles e marfim de morsa, até perderem contato com a Europa no século 15, às vésperas da viagem de Colombo.
A parte que acreditava-se ser mito é a viagem misteriosa feita pelo filho de Eric, Leif Ericsson, à terra que os vikings batizaram de “Vinlândia” (terra das uvas), por volta do ano 1000. Leif teria comandado uma expedição ao oeste e ao sul da Groenlândia na qual acabou entrando em conflito com os nativos e fundou um entreposto. Com outros líderes, mais três viagens ocorreriam nos anos seguintes, levando a mais conflito e, finalmente, um desentendimento entre eles que os fez desistir. O quanto as sagas são precisas, ninguém sabe, mas é inegável que os vikings visitaram o Canadá e se estabeleceram por ao menos 20 anos. Colombo afirmava ter visitado a Islândia, onde essas sagas foram escritas, em 1477. Até hoje se discute se a viagem aconteceu mesmo e, se aconteceu, não foi daí que ele teve a ideia de achar terras a Oeste.