O cavalheiro negro do czar
O africano Abram Petrovich Gannibal, que chegou à Rússia como escravo e virou governador, foi o primeiro intelectual negro da Europa
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Brokhaus Efron, St Petersburg, 1907
“Dispensado! Após 57 anos de serviço leal, sem razão ou recompensa!”, queixava-se o recém-ex-militar em uma carta a Catarina, a Grande, soberana do Império Russo. Como reparação, ele exigia uma promoção ao posto de marechal e pensão vitalícia. Seu pedido, no entanto, foi ignorado, e o jeito foi aceitar a aposentadoria forçada na sua casa de campo. Tudo bem: encerrar a vida como aristocrata rural era bem agradável. E, no caso do negro Abram Petrovich Gannibal, vindo da África para ser escravo na Rússia, lendário.
Nascido em 1696 na Etiópia, aos 7 anos o menino foi capturado e despachado para o sultão de Constantinopla, e logo revendido à corte de São Petersburgo – era moda entre os monarcas colecionar crianças exóticas. Inteligente, o menino conquistou o czar Pedro, o Grande, que arranjou sua alforria e se tornou seu padrinho – daí o sobrenome imperial, Petrovich.
Quando fez 20 anos, o cavalheiro negro foi enviado a Paris para concluir seus estudos e, nas horas vagas, espionar um pouco. Russo, negro e nobre, o paradoxo ambulante logo se enturmou com a galerinha alternativa da época: Diderot, Montesquieu e Voltaire eram seus amigos e o chamavam de “estrela negra do iluminismo”. Seu biógrafo, Hugh Barnes, crava: Abram foi o primeiro intelectual negro da Europa.
Formado em belas-artes e na arte da guerra, fez “estágio” em um conflito entre França e Espanha, de onde saiu capitão. A fama de estrategista lhe inspirou um novo sobrenome, Gannibal – em russo, Aníbal, um general africano que assombrara a Europa 2 mil anos antes.
A volta para a Rússia, em 1722, foi cheia de glórias – breves. Morto o padrinho, Abram recebeu uma missão supimpa: deixar nos trinques várias fortalezas na Sibéria, que, como ensina o anúncio de TV a cabo, é bem ruim. Foram 4 congelantes anos até que seus dons como engenheiro militar chamassem atenção e o tirassem do exílio.
Reintegrado à aristocracia, Gannibal ascendeu na hierarquia política, militar e diplomática. Assim como o Otello de Shakespeare, o “mouro de Petersburgo” havia feito ao Estado alguns serviços, e eles sabiam disso. Tanto que lhe deram, em 1741, um belo sítio na província de Pskov, com milhares de pinheiros e centenas de servos. O escravo africano havia se tornado um nobre russo dono de escravos. Comparando com o Brasil, é como se Zumbi virasse barão das Alagoas.
Após apelar e perder com a czarina Catarina, Gannibal terminou seus dias isolado no campo. Apesar da vida singular, na Rússia ele é só um antepassado de alguém mais famoso: bisavô de Alexandre Pushkin, pai da literatura russa.
Grandes momentos
• A história de Gannibal tem mais conexões literárias: o oficial russo que o levou da Turquia para São Peterburgo foi Pyotr Andreyevich Tolstói, bisavô do autor de Guerra e Paz.
• Promovido à nobreza, ele espalhou que era um príncipe africano. Verdade ou não, acreditava na história e criou um brasão de família com a imagem de um elefante.
• Alguns autores defendem que Gannibal se envolveu na conspiração que matou Pedro 3º e colocou Catarina, a Grande em seu lugar. Nessa versão, ele esperava uma grande recompensa e teria sido traído na última hora.