O reino do pó: como era a vida de Pablo Escobar no auge do narcotráfico
O cartel de Medellín industrializou o narcotráfico e fez chover cocaína nos EUA. Seduziu boa parte da sociedade colombiana aliando projetos sociais com brutalidade sem limites. E alçou Escobar ao topo do mundo.
Você está numa picape Toyota e avança pela região do rio Magdalena, na Colômbia, rumo a uma fazenda que parece a Ilha da Fantasia. Tem uma festa rolando, com jogadores de futebol, políticos, empresários e estrelas da TV.
O dono da fazenda diz que é pecuarista. Você e os outros convidados sabem que a fortuna dele vem das drogas. Todo mundo sabe. Até o presidente da Colômbia. Mas ninguém parece se incomodar.
Na entrada da fazenda você vê um avião Piper PA-18 alçado sobre um arco. Logo atrás um cartaz diz: “Bem-vindos à verdadeira aventura selvagem”. O motorista da Toyota passa por um parque com réplicas de dinossauros e um zoológico com 1.200 animais, incluindo uma arara azul contrabandeada do Brasil por 100 mil dólares.
A “Terra do Nunca” colombiana tem o tamanho de 3.000 campos de futebol e oferece 6 piscinas, 20 lagos artificiais, 70 motos, estábulo, posto de gasolina, heliportos, pista de pouso e o maior circuito de motocross da América Latina. A casa principal possui sala de TV pra 30 pessoas, sala de jantar pra 60, salão de jogos como Pac-Man e 3 geladeiras onde cabem 8 pessoas cada. Tudo isso é mantido por 1.700 empregados.
De repente, o dono sai da casa principal cercado por guarda-costas armados com submetralhadoras Uzi. Ele saúda os visitantes na beira da piscina e manda trazer um garçom que foi pego roubando talheres de prata.
Amarra os pés e as mãos do sujeito e o empurra na piscina. Você observa o garçom debatendo-se em vão enquanto engole água. Ninguém se mexe.
Após alguns minutos, o sujeito perde a consciência. A água encharca seus pulmões e explode as células do sangue. O coração para de bater. Ficou só o silêncio. “Isso é o que acontece àqueles que roubam Pablo Escobar”, diz o anfitrião.
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Bem-vindo à Fazenda Nápoles, epicentro do Cartel de Medellín – a mais violenta e sofisticada organização de narcotráfico dos anos 80.
Para falar a verdade, o Cartel de Medellín não era exatamente um cartel porque não controlava o preço da cocaína. Funcionava mais como um sindicato do crime que bombeava um volume cavalar da droga aos EUA e deixava o mercado definir o preço. “O Cartel de Medellín não foi só um fornecedor letal de narcóticos e caos, mas também um negócio brilhante. Bastante parecido com uma multinacional, só que fora da lei”, diz o jornalista americano Peter S. Green, do site Cocainenomics.
No caso, Escobar era o CEO da empresa. Um “CEO carismático, poderoso e exigente”, como disse Javier Peña, ex-agente da DEA envolvido na caçada ao narco. Sem poder recorrer a tribunais para fazer valer seus contratos, a multinacional da coca seguia uma única lei: a lealdade ao Patrão. Quem a violasse era punido pela tropa de assassinos de Escobar.
A organização também investia dinheiro para subornar juízes, políticos e militares. Quem recusasse a propina tinha uma opção: duas balas na cabeça.
Mas há quem discorde do talento de Pablo em gerir seus negócios. “Escobar não era um empresário genial. Era simplesmente mais violento e cruel que a maioria das pessoas que participavam do negócio”, diz o jornalista americano Mark Bowden, autor do livro Killing Pablo. “Assim, ele pôde concentrar a maior parte dos lucros do tráfico que saía da Colômbia.”
A formação do cartel
Escobar deixou a prisão em 1976, depois de ser preso transportando cocaína, com uma lição em mente: nunca mais pegaria estrada com a droga. Contrataria terceiros para isso. O plano era simples. Ele importava pasta-base peruana escondida em caminhões, processava a cocaína na Colômbia e a exportava aos EUA usando “mulas”, que a ocultavam em malas de fundo falso, perucas, sapatos ou dentro do estômago envoltas em camisinha. Pablo também mandava a droga em estepes de avião que eram abandonados no aeroporto de Miami. Um caminhão de lixo recolhia os pneus e os levava até um lixão, onde eram resgatados por seus homens.
Era fácil “coroar” os carregamentos (enviá-los com sucesso aos EUA) porque quase não havia controle nos aeroportos. Tio Sam estava mais preocupado em debelar o comunismo do que em combater o narcotráfico. Para ter mais capital de giro, Escobar reuniu outros traficantes e ofereceu um seguro pelos envios. “Se a cocaína caísse nas mãos dos agentes gringos, meu irmão cobria o preço integral da droga. Mas cobrava 35% do valor quando a carga chegava ao destino”, diz Roberto Escobar.
Foi assim que Pablo ganhou um dinheiro inicial sem precisar investir muito. Só que a essa altura o negócio era pequeno, coisa de 10 ou 20 quilos por envio. As coisas só mudaram quando ele se aliou ao maior plantador de coca da Bolívia, Roberto Suárez Gómez. Gómez trazia a pasta-base boliviana de avião e a processava em “cozinhas” (laboratórios de refino) nas selvas de Urabá.
O próximo passo foi se aliar ao traficante Carlos Lehder, um colombiano filho de alemão que cultuava Hitler e havia erguido uma estátua de John Lennon em Armenia, sua cidade natal. Lehder tinha feito contato com criminosos dos EUA quando ficou preso lá no início dos anos 70. Um deles era o traficante George Jung, que também acabara de ser solto. Jung conhecia um cabeleireiro que distribuía cocaína ao jet set de Manhattan Beach, na Califórnia. Assim, o esquema ficou redondo.
Em 1977, Escobar e Lehder dividiram o primeiro carregamento de 50 quilos de cocaína com os irmãos Jorge Luis, Juan David e Fabio Ochoa, também de Medellín, e com Pablo Arroyave e Pablo Correa, que na época formavam com Escobar a gangue Los Pablos.
“Em 3 semanas, depois de pegar sua parte, o cabeleireiro entregou US$ 2,2 milhões a Jung, conforme o combinado: US$ 44.000 por quilo”, diz o jornalista colombiano Luis Cañón, autor de El Patrón: Vida y Muerte de Pablo Escobar. “Lehder recebeu US$ 1,8 milhão e dividiu com os emissários de Escobar, Ochoa, Arroyave e Correa.”
O esquema cresceu com a entrada do piloto americano Barry Kane, outro contato de Jung. Em seu avião particular, Kane levou 250 quilos de cocaína de Escobar e Ochoa até a Flórida, com escala nas Bahamas. Bingo: numa única operação aérea de 4 horas, Pablo e seus sócios embolsaram US$ 10 milhões.
Mas o grande salto veio em 1978, quando Lehder comprou praticamente toda a ilha de Norman’s Cay, nas Bahamas, a 80 km da Flórida. A partir dessa época, os aviões saíam de Medellín, reabasteciam na ilha e cruzavam a zona pantanosa de Everglades, na Flórida, onde lançavam pacotes de drogas que eram levados de lancha até Miami.
Foi assim que começou a chover – literalmente – pó branco nos EUA. “Os pacotes de cada narco tinham uma marca especial. Os de Pablo quase sempre exibiam o Rei de Ouros”, diz Cañón.
Uma vez nos EUA, a cocaína era entregue por homens de Escobar aos “atacadistas” – gente de provada lealdade, como o cabeleireiro de Los Angeles. Eles então vendiam aos varejistas, em geral latinos: cubanos e dominicanos em Miami, porto-riquenhos em Nova York e mexicanos na Califórnia. Assim a cocaína conquistou os EUA.
Na Colômbia, o narcotráfico não incomodava a população geral. O consumo era visto como problema dos países ricos, especialmente dos EUA. O próprio presidente Alfonso López Michelsen, eleito em 1974, permitiu que o Banco Central abrisse um guichê onde os funcionários trocavam os dólares da maconha sem fazer perguntas. Era a chamada ventanilla siniestra (“guichê sinistro”). “López não tinha intenção de proibir o que muita gente considerava uma erva inócua”, diz o historiador James D. Henderson. “E, se fumar a cannabis cultivada na Colômbia gerava problema para os gringos, melhor.”
O guichê continuou funcionando com a ascensão da cocaína. Mas em 1978 a guerra entre traficantes acabou matando mais de 100 pessoas em Miami, e o problema não pôde mais ser ignorado. Pressionado pelos EUA, o presidente colombiano Julio Cesar Turbay autorizou a derrubada de narcoaviões e assinou um tratado de extradição com os EUA para quem fosse pego envolvido no crime. Os narcos não deram bola. Estavam no auge. Se achavam intocáveis. E eram mesmo.
O rei do povo
Em 1 de dezembro de 1980, Pablo apagou 31 velinhas com mais dinheiro do que jamais poderia sonhar. Mas, para ele, já não bastava mais ser o homem mais rico e poderoso da Colômbia – ele queria também ser o mais amado. Por isso, começou a construir casas, igrejas, campos de futebol e até um bairro inteiro para pessoas que viviam num lixão. Conhecido como Bairro Pablo Escobar, o lugar até hoje é um feudo dos seus seguidores.
Pablo distribuía dinheiro nas inaugurações e fazia discursos defendendo a autogestão. Usou os projetos sociais para lançar o movimento Civismo em Marcha, que incentivava o plantio de árvores, a atenção médica aos excluídos e a iluminação de quadras de futebol. “A ideologia de nosso movimento é o civismo, o nacionalismo e os programas sociais, ecológicos e esportivos”, disse Pablo numa entrevista à TV local.
Com sua fortuna inestimável, ele inclusive se ofereceu para saldar a dívida externa da Colômbia. Não à toa, virou o ídolo dos pobres.
O capo também usava a Fazenda Nápoles para fazer proselitismo. Abriu o zoológico ao público, com entrada grátis. Todo fim de semana, cerca de 25 mil veículos passeavam entre dromedários, elefantes e outros animais trazidos da África e do zoo de Dallas.
Os visitantes também apreciavam o carro em que o famoso casal de ladrões Bonnie e Clyde teria morrido, em 1934, com 167 tiros na lataria. Mas na verdade o carango era uma fusão de 2 automóveis: um Ford 1936 e um Toyota que Fernando (irmão mais novo de Pablo) dirigia quando morreu num acidente. O próprio Pablo tinha feito os furos. Um dia sacou a metralhadora e ordenou aos guarda-costas que também disparassem no chassis. Foi quando apareceu um zelador assustado. “Don Pablo, saí do carro há apenas um minuto”, afirmou. “Costumo dormir nele após o meu turno!”
Apesar da aparência inócua e de entretenimento, Nápoles não era só diversão. A fazenda era também o centro de operações do Cartel de Medellín e o campo de treinamento dos assassinos de Escobar. Até mesmo o zoo tinha uma finalidade secreta. “Os excrementos de elefantes, rinocerontes e búfalos eram usados para envolver pacotes de cocaína”, diz Cañón. “Desse modo, os cães farejadores eram afugentados nos controles policiais. Evitam se aproximam ao sentir o cheiro de um animal mais forte.”
Mas Pablo também gastou seu dinheiro na cidade grande: acumulou mais de 500 imóveis em Medellín. Inclusive o Edifício Mónaco, de oito andares, onde viveria nos anos seguintes com a família e alguns seguranças. Sentia-se seguro ali – do mesmo jeito que nos EUA, onde também colecionava mansões.
Acredite: apesar de a DEA (a agência anti-drogas) americana persegui-lo, Escobar costumava frequentar a Disney com a família. “O mais incrível é que papai entrava nos EUA sem se esconder. Chegava à aduana com milhões de dólares em maletas, mostrava o passaporte e lhe diziam: ‘Bem-vindo, Sr. Escobar'”, recorda Juan Pablo.
Em maio de 1981, Tata fez uma foto de Pablo com o filho em frente à Casa Branca. Os três foram inclusive ao museu do FBI, onde Pablo mostrou documento falso mas Tata e Juan Pablo usaram os verdadeiros. Tudo sem problema algum.
Morte aos sequestradores?
Não poderia ser diferente: com tanta opulência, os narcos acabaram virando o alvo de sequestradores. Em julho de 1981, informantes do Exército alertaram Escobar que o grupo guerrilheiro M-19 planejava raptar os mafiosos para cobrar resgate.
Por mais estranho que pareça, Pablo não odiava o M-19. O grupo já havia ocupado a embaixada da República Dominicana, roubado a espada de Simón Bolívar e afanado 5 mil armas de uma guarnição militar. Como Pablo já tinha sido sequestrador também, ele admirava a ousadia da turma rival.
Mas agora Escobar não queria provar do próprio veneno. Assim, convocou quatro chefes do M-19 – Pablo Catatumbo, Martha Correa, Luis Bernal e Elvensio Ruiz – para uma reunião secreta. “A coisa é simples, senhores”, disse Escobar. “Vocês não se metem comigo e eu não me meto com vocês.” Mostrou uma lista com os nomes e os esconderijos de 14 membros da célula do grupo em Medellín. Advertiu que podia exterminá-los num piscar de olhos, graças à ajuda dos serviços de inteligência.
Mas Catatumbo e seus homens não se intimidaram. Em novembro de 1981, sequestraram Martha Nieves Ochoa, irmã de Jorge Luis, parceiro de Pablo, exigindo US$ 12 milhões de resgate. Como reação, Escobar convocou uma reunião na Fazenda Nápoles com mais de 200 narcos.
A reunião deu origem ao grupo Morte aos Sequestradores (MAS), a primeira facção paramilitar financiada por narcos e apoiada pelo Exército. Os assassinos de Escobar integraram as operações de busca vestidos com uniforme militar, enquanto aviões jogavam panfletos sobre estádios avisando que os Ochoa não pagariam resgate.
Em poucos dias o MAS já contava com 2.000 integrantes e 25 guerrilheiros capturados. Na base da tortura, conseguiu pistas para estourar possíveis cativeiros – mas nenhum sinal de Martha. Escobar então recorreu ao ex-presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez, que fez contato com a inteligência do Exército panamenho, que intercedeu junto aos chefes do M-19 escondidos no país. Deu certo.
O M-19 libertou Martha em troca de US$ 1,2 milhão (os Ochoa negaram ter pagado essa quantia) e da libertação dos 25 combatentes. “Isso não desencadeou uma guerra entre meu pai e o M-19”, diz Juan Pablo. “Ao contrário: nos meses seguintes, surgiria uma aliança entre eles que faria estragos no país.”
Os homens de confiança
A criação do MAS foi um divisor de águas para Escobar, que emergiu do sequestro reconhecido pelos pares como o “Patrão”, o capo de todos os capos. O episódio também serviu para consolidar a estrutura do Cartel de Medellín. A “diretoria” era formada por Pablo, Gustavo, Lehder e os irmãos Ochoa, além dos traficantes Fernando “El Negro” Galeano, Gerardo “Kiko” Monkada e o Mexicano – um sujeito calado e tão tosco que ao lado dele Escobar parecia uma donzela. Lehder frequentava as reuniões do Cartel vestido de camisa verde oliva, calça camuflada, gorro, faca tipo Rambo e pistola Colt. Às vezes aparecia com granadas e um fuzil de assalto G-3.
O cartel também contava com uma ala militar: um pequeno grupo de jovens assassinos, os sicários, oriundos dos bairros carentes de Medellín. “Eles subcontratavam outros assassinos entre os milhares de jovens que cresciam em meio a um ódio visceral contra a sociedade. Estavam dispostos a tudo para trabalhar sob as ordens do Patrão, com a secreta esperança de ter o mesmo sucesso financeiro”, diz Virginia Vallejo, na época a principal apresentadora da TV colombiana e amante do capo, no livro Amando a Pablo, Odiando a Escobar.
Pablo gostava muito dos sicários, mas não confiava em nenhum. Como diz Virginia, ele sabia que um mercenário sempre venderá a mão armada, a informação e a alma a quem pagar melhor. Isso explica por que Escobar nunca escolheu alguém para ocupar o cargo de vice-comandante do seu exército de capangas letais.
O Cartel também possuía uma ala financeira, formada por Roberto Escobar, Carlos Aguilar (o “Mugre”, também sicário) e alguns contadores, além de meia dúzia de homens de confiança encarregados de contar os maços de notas e ocultá-los em eletrodomésticos despachados de Miami a Bogotá. Era assim que o lucro das drogas retornava à Colômbia, com a devida gentileza dos funcionários da aduana.
Ninguém sabe ao certo quanto o Cartel faturava – registros detalhados não combinam bem com enormes operações ilegais. Especialistas estimam que, no auge, a organização ganhava US$ 18 bilhões por ano, mas pode ter sido muito mais. Calcula-se que 10% da fortuna anual acabava perdida, devorado por ratos nos esconderijos subterrâneos ou destruído pela umidade. Certo é que Escobar gastava US$ 2.500 dólares por mês só em elásticos para amarrar os maços de notas, como admitiu Roberto. Era dinheiro para muitas vidas.