O segredo do vôo 2068
Quase 40 anos antes da queda do Boeing da Gol, outro desastre aéreo comovia a nação com o drama do resgate dos sobreviventes ¿ todos militares ¿ na selva
Texto Ana Maria Peres
Quase 40 anos antes da queda do Boeing da Gol, outro desastre aéreo comovia a nação com o drama do resgate dos sobreviventes – todos militares – na selva. O que só agora se descobriu é que eles estavam em missão secreta para capturar Che Guevara.
Em junho de 1967, enquanto o Brasil vivia sob a ditadura militar de direita, o guerrilheiro argentino Ernesto “Che” Guevara fomentava a revolução socialista em algum pedaço (então) ignorado do continente. No dia 15 daquele mês, a base de apoio à navegação aérea de Cachimbo, Pará, foi invadida por cerca de 100 índios. Os oficiais e os funcionários, assustados, pensaram que aquilo poderia significar um ataque. Na tentativa de explicar a visita inesperada, a Força Aérea criou uma teoria conspiratória que desencadeou equívocos rocambolescos e uma das maiores tragédias da aviação brasileira – ocorrida numa área próxima de onde o vôo 1907 da Gol caiu com 155 pessoas. Se a presença dos índios era um ataque, o alvo deveria ser o regime militar. Assim, a mente por trás de tudo estaria a serviço do comunismo – eis por que o Che divide a frase de abertura deste parágrafo com os militares brasileiros.
Logo após avistar os índios, o comandante do avião que sobrevoava a pista deu um rasante, obrigando todos a sair em disparada. O quartel-general da 1ª Zona Aérea, em Belém do Pará, foi avisado e convocou uma tropa armada de 23 militares, além de um índio aculturado e um funcionário do Serviço de Proteção ao Índio. O grupo tinha a missão de chegar ao local o mais rápido possível. Embarcou no avião C-47 2068, enviado às pressas, à noite e com um instrumento de orientação quebrado. A nave acabou se perdendo sobre a floresta e caiu. O saldo da expedição foi a morte de 20 pessoas e o resgate dramático dos 5 sobreviventes.
A informação sobre os erros desse episódio permaneceu trancada nos arquivos da Aeronáutica. Até que, há alguns anos, os cineastas Eduardo Sigaud e Marcos Mirtes, da produtora Ação Cinematográfica, resolveram resgatar o caso e filmar o documentário 2068 – O Milagre da Selva, sob a direção de Fernando Severo. Viajaram pelo Brasil em busca de depoimentos dos sobreviventes e de oficiais que se envolveram com aquela missão, direta ou indiretamente, e também vasculharam reportagens e documentos da época. Descobriram que uma das razões para a urgência daquele vôo foi a suspeita de que Che Guevara estava na Amazônia brasileira, possivelmente treinando índios (veja no boxe à esquerda a verdadeira trajetória do guerrilheiro antes de ser assassinado na Bolívia). “Alguns sobreviventes revelaram essa teoria, mas ninguém a provou, inclusive porque até hoje não se sabe quem deu a ordem de decolagem imediata. Infelizmente, a maioria morreu sem saber por que, acreditando apenas que deveria dar a vida para salvar a dos companheiros”, afirma Eduardo Sigaud, que teve a idéia do documentário.
A única pessoa que não foi encontrada pelos cineastas foi o comandante do pelotão na época, o tenente Luiz Velly, que sobreviveu ao acidente. Em entrevista à SUPER, ele foi categórico: a expedição caçava Che Guevara. Segundo Velly, com exceção do alto escalão, realmente ninguém sabia dos verdadeiros rumores por trás daquele vôo. “Fui notificado pelo Serviço Nacional de Informações [SNI] que poderia haver cubanos na região fornecendo treinamento de guerrilha”, afirma. “Por isso, fomos mandados para lá com uma ordem de Missão de Segurança Nacional. Tudo era possível: eu poderia fazer uma guerra se quisesse.”
A viagem
Os homens escalados para a missão de emergência se apresentaram no campo da 1ª Zona Aérea, em Belém. O avião decolou às 14h10 com destino a Cachimbo, com parada para reabastecimento em Jacareacanga. Pouco antes da escala, o radiotelegrafista percebeu que um dos dois goniômetros (parte do radiocompasso, sistema que orienta a rota do avião) estava falhando. Ainda assim conseguiram pousar às 18 horas. Como o grupo teria de chegar a Cachimbo à noite, tentou-se trocar o instrumento com o de outra aeronave – mas o comandante desta recusou o trato, pois havia oficiais de alta patente a bordo.
Devido à escassez de elementos de orientação, vôos noturnos sobre a Amazônia com bimotores eram proibidos à época. Por esse motivo, o comandante da aeronave consultou o quartel-general em Belém, para saber se eles poderiam prosseguir no amanhecer do dia seguinte. Os responsáveis, cujos nomes continuam desconhecidos, ordenaram que o avião prosseguisse à noite, apesar do evidente perigo.
Logo, o comandante anunciou o plano de vôo: “Aeronave FAB C-47 2068 do 1º/2º Grupo de Aviação, com decolagem prevista para as 21h15, saindo de Jacareacanga com destino a Cachimbo, com uma velocidade de 270 km/h, no nível de 7 mil pés de altitude, na aerovia G-6, tempo de vôo estimado em 1 hora e 40 minutos, combustível para 8 horas de vôo, em missão militar, com 25 pessoas a bordo”.
Após 1h20 de vôo normal, houve uma pane total no radiocompasso – pois o outro goniômetro também quebrou –, e eles se perderam. Estava tudo escuro e o único meio de orientação era a carta de navegação. Mais de 3 horas de vôo se passaram, deu meia-noite e meia, e nada. O radiotelegrafista chegou a pedir, via rádio, que o destacamento de Cachimbo acendesse uma fogueira, para ver se o encontrava. Mas o comandante resolveu voltar para Jacareacanga: solicitou à base de lá que mandasse outro avião, o 2086, sobrevoar a pista, para que ele pudesse ver suas luzes e assim se orientar. Seu pedido foi atendido, e por duas horas a aeronave ficou voando em círculos. Não adiantou. Então, às 2h30 do dia 16 de junho, o comandante decidiu se dirigir para Manaus, no Amazonas. O radiotelegrafista Godinho passava as informações de vôo para as bases de Jacareacanga, Cachimbo e Manaus, mas eles não conseguiam captar o retorno das mensagens porque a bateria do 2068 também estava em pane.
Lá pelas 4 horas da manhã, encontraram um rio. Quando o piloto abriu a carta de navegação para tentar identificá-lo, ela foi sugada pela janela. Diante da proximidade do fim do combustível, a solução foi aliviar a carga: todo o armamento foi jogado para fora, com exceção de uma metralhadora ponto 30, cujo tripé não passou pela porta. Os passageiros da frente inflaram um bote para fazer as vezes de air bag. Por volta das 5 horas, o combustível acabou: o avião caiu nas árvores, a asa esquerda enroscou numa delas e a parte traseira foi impulsionada para a frente, girando 180 graus. Quem pôde pulou fora. A aeronave se partiu ao meio, pegou fogo, e 18 pessoas morreram na hora.
Sobrevivência na selva
Em meio ao pânico e à gritaria, 7 oficiais conseguiram se arrastar para longe do fogo, desmaiaram e acordaram ao amanhecer. Ao abrir os olhos, a sensação foi das piores: além da visão dos corpos pendurados nas árvores, estavam todos com sérias lesões. O capitão médico Paulo Fernandes sofreu fratura exposta no tornozelo esquerdo e quebrou a bacia; o tenente Luiz Velly também fraturou a bacia; o sargento Raimundo Botelho quebrou a rótula esquerda e ficou com ferimentos graves em todo o corpo; o sargento Gilberto Barbosa ficou com um pedaço de metal fincado no joelho e fraturou a perna em 3 lugares; o cabo Ivan Pinheiro de Brito teve queimaduras de 3º grau na testa e na perna, com ossos à mostra; o cabo Nelson Barros ficou com coxa e costas queimadas, além de um braço quebrado; e o cabo Geraldo Calderara perdeu a perna esquerda, do joelho para baixo.
Uma nova jornada começara ali.
A probabilidade de achar um avião caído no meio da selva amazônica é mínima: as árvores, de 50 metros de altura, rapidamente encobrem o que foi parar lá embaixo. Depois do entardecer, o breu é total. Cientes disso e sentindo dores terríveis no corpo, os sobreviventes passaram os primeiros dias sem água nem comida: bebiam apenas lama e lambiam o sereno que se acumulava na parte externa dos destroços do avião.
Delírios e pesadelos passaram a ser constantes, e algumas coincidências misteriosas aconteceram. Logo no 2º dia, o sargento Botelho afirma que teve a visão de uma mulher de rosto inchado e cor amarela, desdentada, rindo escancaradamente e andando em direção ao cabo Calderara. No 3º dia, o cabo não resistiu à hemorragia e morreu.
A cauda do 2068 ficou quase intacta e acabou se tornando o abrigo do grupo, diminuindo o risco de ataques de bichos – apesar da presença constante dos urubus, que, aos poucos, foram comendo os mortos. O médico Paulo Fernandes e o tenente Velly não conseguiam andar. Por isso, eles dormiram no sereno, sob chuvas, até o 5º dia, quando os outros tiveram forças para carregá-los até o avião, no qual permaneceram deitados durante o resto do tempo. O tenente Velly e o sargento Barbosa chegaram a comer larvas que havia em alguns troncos, mas logo foram aconselhados pelo doutor Paulo, como era chamado, a procurar água potável primeiro, porque comer sem líquido só aumentaria a sede.
Foi então que Botelho, Barbosa, Barros e Brito se organizaram para localizar água: cada um andou para um lado. Barbosa, que caminhou na direção sul – apoiando-se em galhos como muletas –, encontrou uma poça meio amarela, com alguns peixinhos, a 50 metros de distância. O médico deu aval para o consumo. Foi o mecânico Botelho que teve a idéia de filtrá-la, utilizando a raiz de uma palmeira silvestre ao lado da poça: Barbosa voltou lá e cavou um buraco com um facão, desviando a água para criar outra poça, enquanto folhas e sujeiras ficavam presas nas raízes.
O transporte dessa água ficou a cargo de quem não tinha quebrado a perna – cabo Barros e cabo Brito. O reservatório do vaso sanitário do avião, cilíndrico, virou balde e, assim, a sede foi resolvida – um ia buscar água pela manhã; o outro, ao entardecer. Poucos achados nos destroços foram consumidos de maneira racionada, ao longo dos dias: 3 pacotinhos de açúcar em cubos, dois pacotes de café solúvel, uma goiabada queimada, algumas latas de salsicha queimadas, uma lata de aveia e balas. Também encontraram duas latas que continham substância inflamável e improvisaram um fogareiro. Com elas, Botelho fez café e sopa de aveia queimada, uma única vez.
No 7º dia, o cabo Barros começou a piorar muito, com febre alta e sangramentos por todo o corpo, resultado do atrito de galhos e folhas contra suas queimaduras nas viagens para buscar água. De repente, parou de se movimentar e deixou de comer porque não conseguia abrir a boca. Barbosa perguntou se ele havia tomado a vacina antitétano. “Não”, respondeu Barros. “Fiquei com medo da injeção.” Coincidentemente, durante um cochilo, Botelho novamente viu aquela mulher sinistra, chamando alguém em sua direção, exatamente no local em que o avião tinha batido. No 11º dia, Barros morreu de tétano.
O resgate
A essa altura, a imprensa brasileira já tinha divulgado que todos os desaparecidos no acidente estavam mortos. O caso foi intensamente explorado pela mídia e se tornou uma comoção nacional. Cerca de 34 aeronaves e 250 homens se empenharam na busca, que foi coordenada pelo Salvaero (Serviço de Salvamento Aéreo) e realizada por dois esquadrões de vôo mais um esquadrão de pára-quedistas. Foi a maior operação de busca bem-sucedida já realizada pela Força Aérea.
Desde 24 de junho, 8º dia, os sobreviventes passaram a escutar os roncos dos motores dos aviões de busca. A cada vez que o barulho era escutado, desesperadamente eles acionavam o Gibson Girl: um rádio encontrado no avião caído, cuja antena foi improvisada com restos de fios elétricos, apoiados em galhos de árvores. Mas o Gibson Girl pouco influenciou no destino da tripulação. Em 26 de junho, 10º dia, Barbosa usou a última bala disponível e deu um tiro para cima, afastando os urubus para chamar a atenção das buscas. Funcionou. Um aceno de cima pôs todo mundo a chorar. Devido à necessidade de mais combustível e ao risco da descida, o avião foi embora. No dia seguinte, foi enviado um helicóptero. A equipe desceu de rapel meia hora depois da morte do cabo Barros.
Durante 3 dias, o grupo de pára-quedistas montou um acampamento na selva, forneceu assistência médica e abriu uma clareira enorme para que os helicópteros chegassem mais perto e pudessem içá-los, deitados numa maca. Foi a primeira vez que se usou helicóptero para resgate, e ainda por cima, na selva, o que tornou o caso mais histórico. Somente no dia 29, 13º dia, foi possível retirar os sobreviventes do meio da selva. Mas nem isso foi simples: antes de chegar ao Hospital Central da Aeronáutica, no Rio de Janeiro, os feridos precisaram voar de helicóptero para a cidadezinha de Jubará, no Amazonas, e de lá para Manaus, num avião Hércules. Por tudo isso, o dia 26 de junho se tornou o Dia da Aviação Militar de Busca e Salvamento no Brasil.
A rota até o desastre
O avião C-47 2068 da Força Aérea Brasileira decolou de Belém em direção a Cachimbo, no sul do Pará, com escala na base de Jacareacanga. Mas uma pane no sistema de orientação fez com que a nave se perdesse: o piloto ainda tentou voltar para Jacareacanga e, num último esforço, rumar para Manaus. O avião que levava os militares, no entanto, ficou sem combustível e caiu no meio da selva equatorial, no estado do Amazonas.
Che em São Paulo
Che Guevara nunca pisou no Pará, mas passou rapidamente pelo Brasil. Em novembro de 1966, vindo de Cuba, o guerrilheiro desembarcou em São Paulo. “Ele estava disfarçado de delegado da OEA [Organização dos Estados Americanos], usando passaporte falso, trajes de burocrata e com o cabelo raspado”, afirma o historiador Luiz Bernardo Pericás, autor do livro Che Guevara e a Luta Revolucionária na Bolívia. “De lá, seguiu de avião para La Paz e depois para a região de Ñancahuazú, no sul da Bolívia.” Guevara havia deixado suas funções no governo de Fidel Castro em 1965 e passado uma temporada lutando na República Democrática do Congo, na África. De lá, retornou a Cuba, onde preparou um grupo que tentaria fazer a revolução socialista na América do Sul, começando pela Bolívia. Mas o guerrilheiro foi morto pelo Exército boliviano no povoado de La Higuera, em 9 de outubro de 1967. Toda essa história só foi tornada pública depois da captura de Guevara. Antes disso, seu paradeiro era um mistério para quase todo mundo – incluindo os militares brasileiros. “Diziam que ele havia sido fuzilado por Fidel, lutava no Vietnã ou até organizava guerrilhas no Brasil”, Tudo mentira, claro.”
Para saber mais
2068, O Milagre da Selva – Documentário dirigido por Fernando Severo (ainda sem previsão de lançamento nos cinemas).
https://www.aerolex.com.br/1967.htm – Diário do sargento Barbosa, escrito durante os dias na selva.
Che Guevara e a Luta Revolucionária na Bolívia – Luiz Bernardo Pericás, Xamã, 1997